Com 2.825 pontos de incêndio, Pantanal tem pior outubro da história, indicam dados do Inpe
Recorde foi batido a 3 dias do fim do mês.
Número mais alto anterior para o mês era de 2002, quando foram
registrados 2.761 pontos de fogo no bioma. Polícia investiga origem
criminosa após encontrar indícios de relação do fogo com fazendas.
O Pantanal já tem o pior mês de outubro em focos de incêndio da história: desde o dia 1° até a quarta-feira (28), foram registrados 2.825 pontos de fogo no bioma, segundo dados mais recentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
O recorde até então para o mês era de 2002, quando haviam sido registrados 2.761 focos. O monitoramento do Inpe começou em 1998.
As polícias Civil e Federal investigam a suspeita de ação criminosa e
apontam que há indícios da relação do fogo com fazendas. Já há
indicação de que produtores rurais de ao menos quatro propriedades
estejam ligados com a destruição de 25 mil hectares.
Os focos de outubro também já haviam ultrapassado, 15 dias antes do fim do mês, o total visto no mesmo período do ano passado.
As altas de outubro vêm depois de o bioma ter a pior quantidade de
incêndios mensais na história – para qualquer mês – em setembro. Antes
disso, nos primeiros 17 dias de setembro, os recordes para aquele mês já
haviam sido ultrapassados.
O bioma também registrou o pior julho e o segundo pior agosto da
história; em setembro, este ano se tornou o pior em número de pontos de
fogo no Pantanal. Até 2018, o bioma era o mais preservado do país, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Antes do mês passado, o acumulado mais alto havia sido registrado em 2005, com 12.536 focos em todo o ano (veja gráfico acima). A alta neste ano já é de 68%.
Chuva não indica fim da seca
O Pantanal
enfrenta a sua pior seca em 47 anos – o que contribui para o
alastramento do fogo. O bioma pantaneiro é a maior planície alagada do
mundo, mas, quando não chove, a planície não alaga, o que permite que o
fogo se espalhe.
A chuva vista recentemente na região (veja vídeo acima) fez os números de focos de incêndio caírem bastante em alguns dias, mas especialistas alertam que o Pantanal deve demorar a se recuperar.
“Não vai ser uma chuva que vai
transformar a condição de seca. Os impactos causados por essa longa
estiagem vão atuar ainda algum tempo na região”, afirma o pesquisador
Marcelo Parente Henriques, da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais
(CPRM), empresa pública brasileira.
O solo – que oscila entre vegetação e sedimento, segundo Henriques –
vira uma biomassa que fica como uma turfa apodrecida, “um excelente
material para queima”, diz o especialista.
A Noruega está financiando um conjunto de dados de satélite
exclusivo sobre as florestas tropicais do mundo, como a Amazônia
brasileira — o que pode representar um “divisor de águas” na luta contra
o desmatamento.
O mapa, com imagens de alta resolução, cobre 64 países, inclusive o Brasil, será atualizado mensalmente.
Seu diferencial é que poderá ser acessado por qualquer pessoa e gratuitamente.
O governo norueguês está financiando o projeto por meio de sua Iniciativa Internacional para o Clima e as Florestas (NICFI).
O conjunto de dados deve ser “uma enorme ajuda na luta contra o desmatamento“, de acordo com Sveinung Rotevatn, ministro do Clima e Meio Ambiente da Noruega.
“Há muitas partes do mundo onde imagens
de alta resolução simplesmente não estão disponíveis, ou onde estão
disponíveis — as ONGs, comunidades e universidades nesses países não
podem pagá-las porque são muito caras”, diz ele à BBC.
“Então, decidimos pagar a conta do mundo, basicamente”, acrescenta. O
NICFI concedeu um contrato de US$ 44 milhões (R$ 250 milhões) a Airbus,
Planet e Kongsberg Satellite Services (KSAT) pelo acesso a fotos e
conhecimento especializado.
A gigante aeroespacial europeia Airbus está abrindo seu arquivo de imagens Spot desde 2002.
A Planet, sediada nos Estados Unidos, opera a maior constelação de
satélites de imagem em órbita atualmente. A empresa sediada em San
Francisco, na Califórnia, obtém uma imagem completa da superfície
terrestre diariamente (se as nuvens permitirem) e fornecerá a maior
parte dos dados para o mapa mensal daqui para frente.
A KSAT unirá as informações e fornecerá suporte técnico aos usuários. Imagens de satélite são importantes para o combate ao desmatamento.
Um vídeo divulgado pela Planet mostra, por exemplo, um trecho da Amazônia brasileira sendo sistematicamente derrubado ao longo de um período de três anos.
Para o CEO da Planet, Will Marshall, o novo projeto resume a missão de sua empresa.
“Nossa missão, quando criamos a empresa, era ver mudanças em todo o
planeta e ajudar as pessoas a tomarem decisões mais inteligentes. E o
exemplo canônico para nós foram as florestas”.
“(Nós prevíamos) uma resolução de 3 m por pixel e uma revisão diária.
Você precisa ser capaz de ver o que está acontecendo com cada árvore
individualmente e precisa dessa revisão rápida para interromper o desmatamento no ato, em vez de apenas contar as árvores perdidas em o fim do ano.”
A Planet vai usar seus satélites Dove para verificar alterações no
solo de até 3,7 m de diâmetro. Uma nova iteração dessas espaçonaves está
sendo lançada com sensores de câmera que têm o dobro do número de
bandas espectrais, aumentando sua capacidade de avaliar a saúde das
árvores.
A empresa franqueou o acesso a seu portal Explorer no dia 22 de
outubro ao público em geral — basta preencher um cadastro rápido em seu
site: www.planet.com.
Os dados também podem ser obtidos por meio do Global Forest Watch. “É importante lembrar que muito do desmatamento que estamos vendo em muitos países é desmatamento ilegal”, diz Rotevatn.
“Portanto, não são os governos que pressionam pelo desmatamento
ou mesmo o endossam, em geral. Pelo contrário, são atores ilegais; e os
próprios governos precisam de mecanismos para ver onde estão os
problemas, onde precisam aplicar a lei e para onde as coisas estão indo
na direção certa.”
Segundo Will Marshall, da Planet, “este projeto funcionará em escala
global, ou na escala de 64 países — mas local o suficiente para que suas
informações possam fortalecer a ação em campo. Estamos tentando
conseguir isso de uma forma que seja tão democratizante quanto possível,
para que qualquer pessoa possa utilizá-lo. Não é necessário um
doutorado em processamento de imagens de satélite para saber o valor dele.”
Quase a metade do
rebanho fica na Amazônia; pelo menos 33 mil desses animais pertencem a
pecuaristas multados pelo Ibama por desmatamento do bioma;
prefeituráveis declaram R$ 618 milhões em reses ao TSE e protagonizam
histórias de corrupção e violência
Por Alceu Luís Castilho e Luís Indriunas
O gado vai às urnas. Nas eleições de 15 de novembro, 1.014 candidatos
a prefeito declararam nada menos que 308.364 cabeças de gado, conforme
pesquisa feita pelo De Olho nos Ruralistas na base de dados do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE). São 304 cabeças de gado para cada candidato
pecuarista. Tomando-se os cerca de 20 mil prefeituráveis em 5.570
municípios, a média é de 16,2 animais por político — bem mais que a
média brasileira, de pouco mais de um boi por habitante.
A pecuária foi o tema escolhido pelo observatório para estrear a
série O Voto que Devasta. Ao longo das próximas semanas serão esmiuçadas
as conexões entre os políticos que querem ser prefeitos e histórias
pouco republicanas, relacionadas à destruição de biomas — em especial a
Amazônia — e a outros conflitos socioambientais em todo o território
brasileiro.
Não foi um tema escolhido à toa. Os estudos que mostram o papel da
pecuária na destruição da Amazônia se refletem nos dados sobre
políticos. Das 308 mil cabeças de gado declaradas por aqueles 1.014
candidatos a prefeito, 144.096 (47%) ficam nos estados da Amazônia
Legal. E nada menos que 33.259 (23% desse subtotal) pertencem a vinte
políticos multados nos últimos anos, pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), por desmatamento na
Amazônia.
Confira, entre os que declararam possuir gado, a lista dos candidatos
pecuaristas a prefeito multados pelo Ibama nos últimos anos:
Somente um desses políticos, o candidato em Iporá (GO), mora em
município que não faz parte de um dos nove estados que compõem a
Amazônia Legal.
Outros cinco desses políticos foram multados em um desses estados e
informaram ser pecuaristas, mas não declararam nenhuma cabeça de gado.
Outros cinco autuados pelo Ibama declararam ser produtores agropecuários
— igualmente sem informar ao TSE uma única cabeça. Ou seja, a lista de
candidatos punidos por desmatamento, quase todos eles na Amazônia,
conflui com a lista de candidatos pecuaristas. A refletir, portanto, não
somente uma concentração de poder econômico.
PECUÁRIA É RESPONSÁVEL DIRETA PELO DESMATAMENTO
Há uma relação direta entre pecuária e devastação ambiental. Segundo o
pesquisador Paulo Barreto, do Instituto do Homem e do Meio Ambiente na
Amazônia (Imazon), um dos maiores especialistas mundiais no tema, dois
terços da área desmatada na região amazônica são destinados ao pasto,
que vem ocupando espaço num longo processo histórico. De acordo com
dados do Mapbiomas, a área para pecuária na região amazônica aumentou 74% em trinta anos.
A dinâmica envolvendo a criação de gado no Brasil passa por uma série
de etapas que vão desde a grilagem de terra, seguindo pelo corte de
árvores de valor comercial até a queima da mata para plantio do pasto. E
muitos entre os candidatos pecuaristas assinam essa devastação — para
além das multas registradas pelo Ibama.
Candidato em São Félix do Xingu (PA), João Cleber de Souza Torres
(MDB) é um exemplo eloquente desse processo. Ele está à frente de duas
listas entre os postulantes às 5.570 prefeituras de todo o país:
primeiro colocado na lista de maior rebanho, 11.855 cabeças de gado,
segundo o TSE, e segundo maior multado pelo Ibama por desmatamento
ilegal, pelo critério do valor das autuações.
Ele já foi acusado de grilagem e de ser responsável pela morte de trabalhadores rurais no município. De quebra, em 2014, andou pela lista suja do trabalho escravo.
E ainda sobra espaço para um suposto envolvimento em esquema de
lavagem de dinheiro com compra de fazendas e gado, recheado por ameaças
aos denunciantes. As acusações vieram a público com a Operação Reis do Gado,
da Polícia Federal. O candidato de São Félix do Xingu, município que
disputa com Corumbá (MS) a liderança em rebanho do país, foi preso
durante a operação, que indiciou vários integrantes da família do
ex-governador Marcelo Miranda, do Tocantins.
O observatório falará mais sobre João Cleber e sobre São Félix do
Xingu — misto de capital da pecuária e da ilegalidade fundiária — em uma
das próximas reportagens da série, nesta quinta-feira (29).
CONFIRA A LISTA DOS CANDIDATOS COM MAIS BOIS
O prefeito de São Félix do Xingu não está sozinho nas acusações de
corrupção. O segundo lugar entre os maiores rebanhos (10.576 cabeças de
gado) e o primeiro lugar em valores (R$ 29.612.800) ficam com Juracy
Freire, ex-prefeito de Porteirinha (MG), que administrou o município em
duas ocasiões e tenta voltar ao cargo.
Confira a lista dos candidatos a prefeito que, conforme a base disponível no TSE, informaram possuir mais bois:
O Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG)
acusou Juracy Freire de improbidade administrativa durante seu primeiro
mandato (2001 a 2004) por comprar equipamentos, combustíveis e merenda
escolar de suas empresas e de seus familiares, em processos licitatórios
fraudulentos — com a utilização de funcionários de suas fazendas como
laranjas.
Em 2013, ele foi condenado por superfaturamento na construção de
moradias com recursos da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Os dados
da Justiça Eleitoral mostram que a fortuna de Juracy mais que
quadruplicou nos últimos doze anos. De R$ 10,9 milhões, em 2008, para R$
43 milhões, em 2020.
Em terceiro lugar no tamanho do rebanho, com 9.770 cabeças de gado, e
quinto entre os valores declarados (R$ 14.124,8395), o candidato Odilon
Ferraz Alves Ribeiro (PSDB), de Aquidauana (MS), foi um dos alvos da Operação Vostok, da Polícia Federal, ao lado do principal líder do PSDB estadual, o governador do Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja.
O grupo de 22 denunciados é acusado de participar de um esquema de
redução ilegal de impostos, com a emissão de notas frias, que garantia o
pagamento de propina a políticos. As denúncias surgiram nas delações
feitas por diretores da J&F — a holding da JBS. Apenas Zelito teria
emitido notas fiscais frias no total de R$ 1.758.701,00. A defesa do irmão de Odilon fala em vendas regulares.
Ao site Midiamax,
Odilon rechaça a ligação com o grupo, apesar das doações, e defende o
irmão: “Tenho certeza que meu irmão vai provar sua inocência. Não sou
investigado e espero que esse processo se encerre logo e a verdade
prevaleça”.
Um trabalho desenvolvido por pesquisadores das universidades alemãs de Bonn e Freiburg e do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea),
de 2013, apontava que o aumento de denúncias por auditores fiscais de
casos de corrupção como fraudes em licitações não garantiu a inibição de
uma prática correlata: o desmatamento ilegal.
Os pesquisadores identificaram um aumento de 11% no desmatamento nos
municípios com administradores afastados ou denunciados por fraudes. A
conclusão foi a de que “há mudança de atividades ilícitas e corruptas
para esferas menos fáceis de serem observadas pelos auditores federais”.
Os pesquisadores disseram que é preciso adotar “outras abordagens
multidimensionais” para o efetivo e amplo sucesso dessas ações de
combate.
QUANTIDADE DE GADO É AINDA MAIOR QUE A INFORMADA
A fortuna em gado declarada pelos candidatos à Justiça Eleitoral soma R$ 618.276.300,19, valor 3,6 vezes maior que o corte de R$ 184 milhões
do orçamento do Ministério do Meio Ambiente anunciado para 2021.
Somente o que eles declararam possuir em gado nos estados da Amazônia
Legal (46% do total informado pelos pecuaristas) já ultrapassa esse
valor: R$ 283.261.024,65.
Só que 135 candidatos a prefeito declararam R$ 56.974.496,06 em gado,
mas não apontaram a quantidade de animais. Ou seja, aquelas 308 mil
cabeças de gado são apenas uma amostra. Se tomarmos o preço de R$ 2 mil
por boi, o mais incidente entre os próprios candidatos, podemos inferir
que eles possuem outras 28.500 reses. Ou seja, apenas os prefeituráveis
de todo o país (sem contar os candidatos a vice e a vereador) devem
possuir um rebanho que se aproxima de 350 mil cabeças.
Para se ter uma ideia dessa dimensão, Portugal — todo o país — possui
1,68 milhão de cabeças de gado. O Brasil tem um dos maiores rebanhos
bovinos do mundo: segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) em 2019, são 215 milhões de reses. Quase uma por habitante — tivesse cada brasileiro uma cabeça de gado para chamar de sua.
E a quantidade de bois nas mãos de candidatos a prefeitos certamente é
maior: alguns deles se declararam pecuaristas, mas omitiram seus
rebanhos nas suas declarações à Justiça Eleitoral. Não informaram nem
quantos bois têm, nem o valor. Sem falar em outros candidatos conhecidos
pela criação de gado, mas que não estão incluídos em nenhuma dessas
condições anteriores — a não ser pelo fato de que também não informaram
ao eleitor brasileiro quantas reses possuem.
Central no avanço da pecuária (e do desmatamento ilegal no Brasil), o
Pará lidera o ranking dos candidatos que declararam os maiores valores
em gado, com sete representantes. Em seguida vêm Goiás, com cinco, Minas
Gerais, com quatro, Mato Grosso (outra fronteira decisiva na Amazônia),
Mato Grosso do Sul e Tocantins com dois cada um.
Confira a lista:
ESTUDO MOSTRA RELAÇÃO ENTRE REELEIÇÃO E DESMATAMENTO
Outro estudo feito em relação ao poder local e o desmatamento aponta
que os municípios em que prefeitos da Amazônia tentam a reeleição há um
crescimento nos níveis de desmatamento durante o ano de campanha.
Segundo a pesquisadora Sharon Pailler, da Clark University
(EUA), entre 2002 e 2012, nos municípios onde um prefeito concorria à
reeleição, havia um aumento da taxa de desmatamento entre 8 e 10%.
Nas eleições desse ano, essa proporção pode ser ainda mais acentuada,
acredita Paulo Barreto, do Imazon: “O discurso atual do governo federal
criou um senso de impunidade que vem se refletindo nas atitudes contra a
floresta dos governos locais”. A criação pelo governo Bolsonaro dos
“núcleos de conciliação” para avaliar as multas ambientais dos órgãos
federais ampliou a impunidade: nenhuma multa foi aplicada desde a entrada em vigor do decreto, em agosto de 2019.
Um estudo de 2019 do Imazon aponta
que a maioria dos prefeitos evita entrar em confronto com os
proprietários de terra, ignorando a possibilidade ampliar a arrecadação e
a fiscalização a partir da atualização de dados para a cobrança do
Imposto Territorial Rural (ITR), que, desde 2003, tem seu valor
revertido para os cofres municipais. A principal omissão é não atualizar
os valores das terras o que deixa a arrecadação muito aquém do possível
com valores até seis vezes menores.
É nessa toada que o prefeito de Novo Progresso (PA), Ubiraci Soares
Silva (PL), o Macarrão, procura a reeleição e vai disputar com o seu
ex-aliado, o vice-prefeito Gelson Luiz Dill (MDB), o 20º candidato com
maior rebanho no Brasil. Ambos são fazendeiros e têm um histórico de multas ambientais que inclui a invasão da Floresta Nacional do Jamanxim.
Novo Progresso foi um dos palcos do dramático “Dia do Fogo”, quando, em
agosto de 2019, autoridades e fazendeiros orquestraram uma queimada
coletiva para atrapalhar a fiscalização dos órgãos ambientais.
Um
observatório jornalístico sobre o agronegócio: seu poder político e
econômico, seus impactos sociais e ambientais. Conheça histórias de luta
dos povos do campo no boletim De Olho na Resistência. É grátis! Inscreva-se agora!
Série “O Voto que
Devasta” detalha, nas próximas semanas, a relação dos candidatos a
prefeito com o ambiente, o território e os povos do campo; as eleições
municipais mostram um país muito mais rural do que é percebido pela
grande imprensa
Por Alceu Luís Castilho
O gado vai às urnas. A soja vai às urnas. A madeira vai às urnas.
Assim começa o vídeo de divulgação da série “O Voto que Devasta”, que
estreou nesta quarta-feira (28) com uma reportagem sobre a relação muito
particular entre os candidatos a prefeito e a pecuária. Esses políticos
são donos dos bois, donos de uma quantidade significativa do território
brasileiro — e protagonistas de conflitos sociais, infrações
ambientais, entre outras práticas que configuram o sistema político
brasileiro, intrinsecamente ruralista.
A série continua nas próximas semanas com uma radiografia desse
protagonismo político no campo. Os candidatos a prefeito (a prioridade
foi dada à eles, diante dos candidatos a vice-prefeitos e às Câmaras
Municipais) possuem madeireiras e multas, possuem centenas de milhares
de hectares e tratores, eles declaram empresas agropecuárias e têm
determinados apoios políticos. Quais? De que forma os ruralistas (e não
somente os prefeitos) afirmam seu poder no campo a partir das eleições
municipais?
Para esta cobertura
eleitoral o observatório montou sua maior equipe desde sua criação, em
setembro de 2016 — justamente quando se aproximavam as últimas eleições
municipais. Naquele ano a série, focada nos municípios que mais desmatam
no país, se chamou O Arco Político do Desmatamento.
Em 2020, a base territorial se amplia, mas com idêntica preocupação em
relação às fronteiras do desmatamento, as mesmas fronteiras da
agropecuária no Brasil. Da madeira ao gado, da soja à cana — ou a
qualquer monocultura de plantão.
A definição de uma equipe de quinze pessoas para o projeto, em
outubro e novembro, foi possível graças a três apoios institucionais. Um
deles, do Instituto Clima e Sociedade (ICS). Outro, do Rainforest Jornalism Fund,
em seu braço amazônico, administrado pelo Pulitzer Center. O terceiro, o
apoio dos assinantes, que, desde o início do projeto, por meio da
campanha De Olho nos Mil Parceiros, permitem que a redação tenha um ponto de partida. E que o agronegócio, neste país, seja sistematicamente fiscalizado.
Um
observatório jornalístico sobre o agronegócio: seu poder político e
econômico, seus impactos sociais e ambientais. Conheça histórias de luta
dos povos do campo no boletim De Olho na Resistência. É grátis! Inscreva-se agora!
Com maior rebanho do
Brasil e vice-campeão em devastação, São Félix do Xingu e arredores
atraem políticos de diversas partes do país envolvidos com grilagem,
invasão de terras, multas ambientais e até acusações de assassinato
Por Luís Indriunas e Alceu Luís Castilho
A
região do município de São Félix do Xingu (PA), uma das mais devastadas
áreas do Arco do Desmatamento, reúne políticos com os mais diversos
problemas com a Justiça. Eles saem de vários cantos do país, como Mato
Grosso, Paraná e outros municípios do Pará. São pecuaristas com
histórico de grilagem, multas ambientais, corrupção, invasão de terras
devolutas e acusações de assassinato. Entre os diversos políticos, cinco
deles, que disputam uma vaga de prefeito nestas eleições, somam R$
10.903.474,50 em multas ambientais.
O levantamento é o segundo da série O Voto que Devasta,
do De Olho nos Ruralistas, sobre as conexões entre os políticos que
querem ser prefeitos e histórias relacionadas à destruição de biomas —
em especial na Amazônia — e a outros conflitos socioambientais em todo o
território brasileiro.
Na primeira reportagem, o observatório mostrou que 1.014 candidatos a
prefeito nas eleições de 2020 declaram ter 308.364 cabeças de gado, uma
média de 304 cabeças para cada um. A cifra é muito acima da média
nacional, de praticamente um boi por habitante: “Mil candidatos a prefeito declaram 308 mil cabeças de gado“.
MULTAS DE POLÍTICOS NO MUNICÍPIO REPRESENTAM 63% DO ORÇAMENTO LOCAL
No caso da região de São Félix do Xingu, o ex-prefeito e candidato no
próprio município João Cleber de Souza Torres (MDB) acumula acusações
de grilagem, corrupção e exploração de trabalho escravo; Celso Lopes
Cardoso (PSDB), candidato de Tucumã (PA), e Aldecides Milhomen (DEM), de
Alto Boa Vista (MT), estão envolvidos em acusações de homicídios e
agressões. Os candidato de Califórnia (PR) Paulo Wilson Mendes (PSL), o
Paulinho Moisés, e o de Água Azul do Norte Isvandires Martins Ribeiro
(PSDB) foram autuados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por desmatamento.
O levantamento do observatório junto às bases do Ibama e do Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) mostra que, apenas em multas ambientais nos
limites de São Félix, trinta políticos (entre prefeitos, ex-prefeitos,
ex e atuais vereadores, assessores de deputados e parentes próximos de
políticos) acumularam, entre 2006 e 2018, R$ 129.649.935,50, o que
representa 62,5% do orçamento
municipal aprovado para 2020, de R$ 207.606.700. Para o ambiente, o
orçamento municipal previa pouco mais de R$ 8 milhões. Como é comum, a grande maioria dessas multas expedidas pelo Ibama não foi paga e muitas estão na fase de recursos junto ao órgão ou na Justiça.
São Félix do Xingu possui o maior rebanho bovino do país, com 2,2
milhões de cabeças de gado, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). É o segundo município com maior área devastada na
Amazônia entre junho de 2019 e julho de 2020, segundo o Instituto do
Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).
Em um ano, foram destruídos 540 km² de floresta no município. Além
disso, São Félix acumula ainda diversas pistas clandestinas usadas por
garimpeiros e traficantes internacionais de drogas.
E dezenas de estradas abertas irregularmente por fazendeiros e
madeireiros. É nesse ambiente que dezenas de políticos e assessores de
políticos colecionam suas terras — e multas.
MPF INVESTIGOU EX-PREFEITO POR ASSASSINATO DE CAMPONESES
Um dos postulantes à prefeitura, o ex-prefeito João Cleber é dono do maior rebanho do Brasil declarado pelos candidatos nestas eleições,
com 11.855 cabeças de gado, somando R$ 9.458.128, e uma fortuna
acumulada de R$ 15.233.128. Além das multas ambientais, que somam R$
6.723.574,50, João Cleber coleciona acusações dos mais diversos tipos
num histórico que remonta a mais de vinte anos de atividades políticas —
nem sempre republicanas.
Em 2003, um relatório do Ministério Público Federal (MPF)
o apontava como principal mandante da morte de sete trabalhadores
rurais e um comerciante na Vila Taboca, em São Félix do Xingu. Segundo
os procuradores, ele e seu irmão Francisco Torres de Paula Filho
promoviam invasão e grilagem de terras públicas na região, com a
retirada de madeira e a ocupação com gado.
Ao longo do tempo e sem a efetiva punição, João Cleber continuou
atuando, mas os crimes foram mudando. Em 2014, João Cleber esteve na lista suja de trabalho escravo, pelas péssimas condições dadas aos trabalhadores da fazenda Bom Jardim.
No mesmo ano, veio a primeiro multa do Ibama de R$ 6.635.000. Seu
irmão, proprietário da Agropecuária Barra do Baú, entrou na lista em
2014 com multas que somavam R$ 11.270.400. Ao todo, a empresa do irmão
de João Cleber soma R$ 17.980.000 em autuações ambientais.
Essa ligação fraterna e política fez de Francisco um grande doador
para a campanha do irmão. Ele foi responsável por 70% do valor total
doado a João Cleber nas eleições de 2018 para deputado estadual, quando
não conseguiu se eleger.
Ter pessoas com a ficha suja entre seus doadores não é uma prática
incomum para João Cleber. No mesmo ano, o madeireiro Paulo Lins Candido
doou R$ 2 mil para o candidato. Dono da madeireira Rio Xingu, o
empresário já foi multado em duas ocasiões pelo Ibama.
Outro exemplo de doador com conduta suspeita ocorreu na primeira
campanha de João Cleber para prefeito, em 2012. Ele recebeu R$ 100 mil
de Gabriel Augusto Camargos, que entrou um ano depois na lista dos
fazendeiros que exploravam trabalho escravo. Além das más condições de trabalho, capangas de Camargos ameaçavam de morte seus funcionários.
Entre as notícias de corrupção envolvendo seu nome, João Cleber está
sendo investigado por participar de um grande esquema de fraude e desvio
de mais de R$ 200 milhões de recursos públicos envolvendo a família do
ex-governador do Tocantins, Marcelo Miranda. Chamada de Operação Reis do Gado, a investigação da Polícia Federal iniciou com o testemunho de Alexandre Fleury, utilizado como laranja pela família Miranda.
Na deflagração das ações, em novembro de 2016, mais uma vez João
Cléber esteve acompanhado do irmão. Ambos foram conduzidos
coercitivamente. Eles são acusados de ameaçar Fleury para que ele não
testemunhasse. Os dois irmãos foram considerados pelos policiais
federais homens de confiança de Luiz Pereira Martins, conhecido como
Luiz Pires, que fazia parte do chamado “núcleo empresarial” do esquema.
Conforme as investigações, Luiz Pires era o responsável pela
engenharia financeira das fraudes, garantindo a lavagem do dinheiro
público com a compra de gado e fazendas.
Mais recentemente, em abril de 2018, João Cleber voltou a ser preso. Dessa vez, em razão da Operação Tetrarca, da Polícia Civil
do Pará, quando foi acusado de desvios de recursos públicos junto com o
ex-secretário de Finanças, Evani Geraldo de Oliveira e outros
servidores. Segundo a polícia, eles partilhavam o montante de recursos
desviados do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), taxa paga
às prefeituras quando há mudança de titularidade de um imóvel.
CELSO LOPES E MILHOMEN SÃO ACUSADOS DE ENCOMENDAR HOMICÍDIOS
Em 2010, Celso Lopes, candidato a prefeito de Tucumã, foi multado em
R$ 2.544.000 pelo Ibama por desmatamento em São Félix do Xingu. Os
valores são muito maiores do que ele diz ter em patrimônio atualmente. O
candidato declarou R$ 1.459.377,36 em bens para a Justiça Eleitoral
este ano. Em eleições anteriores ele informou valores muito maiores. Em
2012, quando foi candidato à reeleição e perdeu, sua fortuna era de R$
12.530.000. Na declaração anterior, o pecuarista informou à Justiça ter
1.090 cabeças de gado, num total de R$ 910 mil, que não estão mais na
declaração deste ano.
Além das agressões ao ambiente, Celso Lopes é notório pela violência
contra adversários políticos. Em 2003, ele cumpriu pena sob acusação de
ter mandado matar o vereador Adão Lote (PSB), assassinado por dois pistoleiros, quando tomava banho em casa.
Treze anos depois, em 2016, quando tentava novamente ser prefeito de
Tucumã, o candidato agrediu com chutes e pontapés o técnico em
informática Delcides Martins Coelho, segundo o Jornal do Tocantins,
simplesmente porque o eleitor disse que não votaria nele.
Esse jeitão, digamos, truculento pode ser visto em vídeo publicado no Youtube no
qual o prefeito queixa-se da atuação de policiais rodoviários federais,
insultando-os com palavrões e acusando-os de cobrar propina.
Outro grande proprietário de terras multado em São Félix e envolvido
em homicídio é o candidato de Alto Boa Vista (MT) Aldecides Milhomem de
Cirqueira (DEM), que declarou R$ 4.250.000,00 de patrimônio, mas que
está sub-júdice, assim como sua candidatura. Isso porque o ex-prefeito
do município foi preso em São Félix, em maio de 2019, acusado de mandar matar dois vigias da fazenda que disputa judicialmente com a ex-mulher.
A falta de limites de Milhomen para conquistar terras afeta os povos
tradicionais. Ele e seu irmão Antonio são acusados de instalarem seis
fazendas, num total de 2.200 hectares, na Terra Indígena Marãiwatsédé,
que fica nos limites de São Félix e Alto Boa Vista. As antigas fazendas
na TI foram objeto de desintrusão durante o governo Dilma Rousseff, por
ficarem em território Xavante.
CANDIDATOS TOMARAM POSSE DE TERRAS DEVOLUTAS
Há políticos sem acusações de crimes ambientais diretamente
relacionados aos seus nomes nem envolvidos em casos de violência, mas
que aproveitam a desordem fundiária predominante em São Félix do Xingu
para se apossarem de terras devolutas, do Estado. É o caso de dois
estreantes nas eleições do município, ambos candidatos à prefeitura.
Um deles, Reis Evaristo Reis (Cidadania), tomou posse de 2.179
hectares de uma gleba que pertencia a União. Reis é comerciante que atua
em diversos ramos, como bombonière, vidraçaria e utilidades domésticas,
além de ter declarado 2.179 hectares de terras rurais, no valor de R$ 1
milhão, e 150 cabeças de gado, num total de R$ 270 mil. Sua fortuna
declarada é de R$ 2.294.123,10.
Outro novato na política eleitoral é Marcelo Batista Ferreira (PT).
Sua ascendência remonta a ocupação desenfreada da região. O candidato
tem 7.650 hectares em terras devolutas, num valor de R$ 779.250,76, e
4.098 cabeças de gado, declaradas por R$ 409.800. Grande parte desses
bens é herança do seu pai, Jesus Batista Ferreira. O velho Ferreira foi
autuado em 2003, por manter treze trabalhadores em regime de trabalho escravo em uma de suas fazendas, hoje nas mãos do candidato.
Nessa lista também está o candidato à reeleição em Tucumã Miguel
Marques Machado (DEM), que tem patrimônio declarado de R$ 5.513.852,02,
sendo R$ 1.558.760,26 em terras devolutas.
Viadutos projetados para animais silvestres. Não são simples
passarelas, mas estruturas de concreto, largas e com vegetação. A ideia é
reduzir o impacto da fragmentação do habitat e o risco de
atropelamentos, fatores responsáveis por extinção de espécies e alta
mortandade da fauna.
O recém-inaugurado viaduto vegetado (em inglês, overpass) sobre a BR-101, na área de ocorrência do ameaçado mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia)
no estado do Rio de Janeiro, chamou a atenção para a possibilidade do
aumento da implantação dessas estruturas no Brasil. Somente outros três
desses viadutos, sendo dois em uma mesma linha férrea, existem em
território nacional. “A função primária dos viadutos vegetados é
restabelecer a conexão entre os ambientes dos dois lados da rodovia ou
ferrovia e aumentar a possibilidade de travessias seguras, sobretudo
para animais que de outra forma evitariam cruzar a via”, explica o
biólogo e coordenador do Núcleo de Ecologia de Rodovias e Ferrovias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NERF-UFRGS), Andreas Kindel.
Uma das principais consequências da construção de rodovias e
ferrovias para a fauna é a fragmentação de seu habitat, gerando o
chamado “efeito barreira”. Para algumas espécies, a clareira gerada pela
estrada, o ruído, a poluição e o movimento de veículos inibem e até
impedem a circulação dos animais por um ambiente que já foi uma paisagem
única, não dividida. É o que acontece com algumas espécies de aves que
vivem no sub-bosque de florestas (região logo abaixo das copas das
árvores maiores), anfíbios que habitam solo forrado com folhas e alguns
pequenos mamíferos que frequentam as copas das árvores (dossel), como
roedores e marsupiais. “Esses animais evitam as estradas. Raríssimos são
os registros de atropelamentos desses grupos”, explica Kindel.
Essa barreira pode isolar populações de espécies, gerando cruzamentos
entre animais aparentados (consanguinidade) e uma consequente
dificuldade de adaptação às mudanças ambientais. O chamado fluxo gênico
que possibilita haver variação genética dentro da população de uma
espécie é fundamental para sua sobrevivência.
Outro problema é a possibilidade de separar os animais de fontes de
água e alimento, bem como causar problemas para processos migratórios.
Populações de determinadas espécies também podem ficar restritas em
áreas que não têm a capacidade de sustentá-las, gerando uma disputa
interna entre os animais.
Evitar atropelamentos, que segundo o Centro Brasileiro de Ecologia de
Estradas (CBEE) são responsáveis pela morte de 475 milhões de animais
silvestres no Brasil todos os anos, é uma função secundária dos viadutos
vegetados. Kindel afirma que as cercas são ferramentas mais efetivas,
pois impedem a interação entre veículos e animais. “Viadutos vegetados e
outros tipos de passagens de fauna, sozinhos, não reduzem a mortalidade
ou reduzem muito pouco”, salienta o pesquisador.
De acordo com Kindel, os viadutos são construídos em contextos
bastante específicos, em geral quando a implantação da rodovia ou
ferrovia envolve corte do relevo, como os morros. O projeto dessas
estruturas deve levar em consideração a sua proximidade das formações
vegetais remanescentes a serem conectadas, a garantia da manutenção
dessa cobertura vegetal nativa das áreas ligadas, evitando o risco da
expansão agrícola, da urbanização ou de outras infraestruturas
inviabilizarem o ganho das áreas religadas, além de preferencialmente
desfragmentar corredores de vegetação de abrangência regional e não
somente local.
Mas para que os viadutos vegetados realmente funcionem, é necessária a
instalação de um sistema com cercas para guiarem os animais até a
estrutura. Elas impedem o acesso da fauna à rodovia ou aos trilhos e
direcionam o deslocamento até o ponto de travessia. Se o trecho superior
do viaduto tiver uma cobertura vegetal com as mesmas características de
vegetação do entorno, há grande chance de ele ser utilizado.
Ajudando os micos-leões-dourados
O viaduto vegetado construído na altura do km 218 da BR-101, em Silva
Jardim (RJ), foi concluído no início de agosto. Ele é resultado de
intensa mobilização da Associação Mico-Leão-Dourado (AMLD), que a partir
de 2012 se empenhou para conseguir a implantação de medidas que
reduzissem os impactos da duplicação da rodovia ao ameaçado
mico-leão-dourado e demais espécies da fauna da região.
A construção da BR-101 na década de 1950 ajudou no processo de
fragmentação do habitat dos micos-leões-dourados. Atualmente, na altura
de Silva Jardim, por exemplo, de um lado da pista está a Reserva
Biológica de Poço das Antas e do outro vários fragmentos de Mata
Atlântica conservados em fazendas, reservas particulares do patrimônio
natural (RPPNs) e o Parque Estadual dos Três Picos. Se para os micos,
primatas que preferencialmente se deslocam pelas árvores, já era difícil
atravessar a rodovia estreita, imagine após a duplicação.
O secretário-executivo da AMLD, Luis Paulo Ferraz, lembra que o
contrato de concessão para a iniciativa privada do trecho da rodovia
onde foi construído o viaduto, que incluía a duplicação da via, não
incorporou os custos ambientais da obra. Ainda segundo o ambientalista,
os estudos de impacto ambiental não levaram em consideração a realidade
local e sequer citaram o mico-leão-dourado, espécie símbolo da Mata
Atlântica que só existe naquela região.
A proposta de construção de um viaduto vegetado surgiu em 2014,
quando a AMLD organizou um encontro técnico com pesquisadores, gestores
das unidades de conservação da região e da Arteris Fluminense,
concessionária responsável pela rodovia. A duplicação terminou antes
mesmo que qualquer estrutura para a fauna fosse construída.
“O principal problema foi a resistência da concessionária à ideia do
viaduto face aos custos envolvidos”, afirma Ferraz. A Arteris Fluminense
teria contratado consultorias para pesquisar alternativas e questionar a
eficiência de um viaduto vegetado para aquele contexto. A Agência
Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) teria sido outro foco de
resistência pois, segundo o ambientalista, demonstrou preocupação com a
possiblidade de que esse tipo de estrutura, considerada cara, passe a
ser exigida com mais frequências pelos órgãos ambientais.
O viaduto vegetado saiu do campo das ideias somente após o Ministério
Público Federal ingressar, em 2016, com uma ação civil pública para
exigir que as condicionantes ambientais do processo de licenciamento da
duplicação da rodovia fossem efetivamente executadas. A obra começou em
2018 e, de acordo com a Arteris Fluminense, nela foram investidos R$ 9
milhões. Um outro viaduto, na altura do km 240, está previsto para ser
construído após serem feitos monitoramentos para verificar os resultados
do primeiro.
Além do viaduto, a Arteris Fluminense construiu em um trecho de 72
quilômetros da BR-101, entre Rio Bonito e Casimiro de Abreu, 15
passagens de fauna subterrâneas (que passam por baixo da rodovia), 10
estruturas que ligam copas de árvores situadas em lados opostos da
estrada, nove passagens sob pontes, mais de 30 quilômetros de cercas e
um sistema de sinalização para motoristas indicando a presença de
animais silvestres na região. Ou seja, todas as estruturas fazem parte
de um planejamento maior que busca minimizar os impactos da rodovia
duplicada e do tráfego diário de cerca de 20 mil veículos.
O viaduto possui 54 metros de comprimento e 20 metros de largura.
Nele foram plantadas mudas de árvores nativas da região, que ainda têm
de crescer para criar o ambiente propício às travessias. Além do
mico-leão-dourado, a preguiça-de-coleira (Bradypus torquatus), a onça-parda (Puma concolor), tatus, cachorros-do-mato e tamanduás-mirins (Tamandua tetradactyla) estão entre as espécies que deverão ser beneficiadas pela obra.
Atualmente, a população estimada de micos-leões-dourados é de 2.500
animais. A AMLD defende que para a espécie deixar de correr risco de
extinção, sua população deve ser de pelo menos dois mil animais vivendo
livremente em 25 mil hectares de florestas protegidas e conectadas. O
viaduto vegetado é parte da estratégia de conexão de fragmentos de
matas. “A consolidação da conexão florestal em Poço das Antas era
fundamental”, afirma Ferraz.
Na Serra do Mar paulista
O outro viaduto vegetado em rodovia existente no Brasil foi
construído na altura do quilômetro 25,8 da SP-99 (rodovia dos Tamoios),
que liga São José dos Campos a Caraguatatuba, no estado de São Paulo. A
estrutura, concluída em junho de 2018, foi erguida durante a duplicação
da estrada, em um local chamado Serrinha, exatamente onde houve o corte
de um morro.
De acordo com a empresa do governo paulista Dersa (Desenvolvimento
Rodoviário S/A), responsável pelo projeto de duplicação da estrada, o
viaduto vegetado, sete passagens de fauna inferiores (que passam por
baixo da pista) e uma passagem feita com cabos entre copas de árvores
foram projetados para reduzir atropelamentos após a realização de
campanhas de monitoramento de fauna na região.
A Concessionária Tamoios, que administra a rodovia, não informou
dados sobre a utilização pelos animais da estrutura, que custou R$ 2,4
milhões.
Em Santa Catarina, ainda é projeto
Além do segundo viaduto vegetado planejado para a BR-101 na região do
mico-leão-dourado, no Rio de Janeiro, outra estrutura dessa deverá ser
construída em breve no Brasil. Com projeto pronto, mas sem contrato de
execução, ele será implantado na altura do quilômetro 54,5 da rodovia
BR-280, em Santa Catarina.
De acordo com o Departamento Nacional de Infraestrutura de
Transportes (DNIT), o viaduto reconectará um fragmento de floresta
atlântica de cerca de 10 km² junto à cidade de Guaramirim com outro bem
maior que chega até as proximidades de São Bento do Sul e ao trecho
paranaense da Serra do Mar. Ele terá 40 metros de comprimento e 11
metros de largura. No local, onde passará a nova pista duplicada da
rodovia, hoje existe uma pequena rua.
O viaduto vegetado, que não tem data para início ou conclusão das
obras, é parte do projeto de redução de impactos para a região que prevê
também a construção de passagens de fauna subterrâneas com cercas para
guiar os animais até elas. Nas matas próximas foram registrados animais
vertebrados de 101 espécies, como gato-do-mato-pequeno (Leopardus guttulus), cachorro-do-mato (Cerdocyon thous), vários morcegos, corujas, tatus, pássaros, cobras e anfíbios.
Na ferrovia, os primeiros do Brasil
No Pará, dois viadutos vegetados foram implantados no ramal
ferroviário de 101 quilômetros que liga uma das minas de minério de
ferro da Vale, em Canaã dos Carajás, à estrada de ferro Carajás, em
Parauapebas. Eles foram concluídos em 2017 por exigência do processo de
licenciamento ambiental, sendo os primeiros instalados no país. As duas
estruturas foram cobertas com gramíneas e receberam pequenos arbustos de
espécies da região para reproduzir o ambiente do entorno, além de
cercas direcionadoras.
Os dois viadutos integram um conjunto de estruturas que inclui também
30 passagens de fauna de outros tipos, como as subterrâneas. A Vale
informou ter registrado 2.194 ocorrências de travessias de animais nesse
sistema de passagens entre 2016 e 2019.
Um dos viadutos vegetados sobre linha férrea no Pará – Foto: Vale
O biólogo e pesquisador em impactos de ferrovias sobre a fauna, Rubem
Dornas, lembra que as linhas férreas podem ter um efeito barreira ainda
maior para animais de pequeno porte. Além da clareira ser um inibidor
para animais de algumas espécies, os trilhos são obstáculos verticais
que podem ser intransponíveis para cágados, jabutis e alguns anfíbios,
por exemplo. “Os animais encontram os trilhos e, na tentativa de
atravessar, podem ter que percorrer vários quilômetros até descobrirem
um local com espaço entre a brita e trilho ou uma passagem de nível, que
geralmente é para carros. Nesse trajeto, suspeita-se que um grande
número deles morra por inanição ou superaquecimento”, explica.
Novidades no Brasil, os viadutos vegetados já são construídos há
décadas em diversos países da Europa, nos Estados Unidos, Canadá e
Austrália. Na América Latina, a primeira experiência com esse tipo de
estrutura é da Argentina.
Viaduto na Motorway 9, perto de Niemegk, Alemanha – Foto: Igor Pfeifer Coelho
O viaduto vegetado argentino foi construído entre 2008 e 2010 sobre a
rodovia RN-101, na província de Missiones – Estado onde situa-se as
cataratas do Iguaçu, na divisa com o Brasil. A estrada localiza-se ao
lado de um grande bloco de mata atlântica bem conservada que inclui o
Parque Nacional Iguazú e o Parque Provincial Urugua-í. “Os motivos que
motivaram a sua construção foi a localização em um corredor biológico no
qual, desde 2002, trabalhamos na sua restauração e na criação de
reservas naturais privadas”, explica o pesquisador do Instituto de
Biologia Subtropical da Universidade Nacional de Misiones (IBS/CONICE) e
da ONG Centro de Investigaciones del Bosque Atlántico (CeIBA), Diego
Varela.
A iniciativa tem resultado positivo. Varela, que avalia a eficiência
do viaduto desde 2011, afirma que ano após ano o número de espécies
utilizando a estrutura tem aumentado, sendo 24 de mamíferos de médio e
grande porte já foram registradas nela. Na região há onças-pintadas (Panthera onca), onças-pardas (Puma concolor), jaguatiricas (Leopardus pardalis), antas (Tapirus terrestres), queixadas (Tayassu pecari), catetos (Tayassu tajacu), veados-mão-curta (Mazama nana) e veados-mateiros (Mazama americana).
Dois novos viadutos estão em construção na rodovia RP-19, que corta ao meio o Parque Provincial Urugua-í.
O viaduto vegetado da Argentina foi o primeiro da América Latina – Foto: Diego Varela
Em unidades de conservação e envolvendo uma única rodovia, a
experiência canadense no Parque Nacional Banff é considerada uma
referência. São 44 passagens de fauna selvagem, sendo seis viadutos
vegetados e 38 passagens subterrâneas, e 82 quilômetros de cercas na
rodovia Trans-Canada que corta a área protegida. Esse conjunto de
medidas começou a ser planejado em 1981, quando o governo canadense
resolveu duplicar a estrada, e foi pensado principalmente para atender
animais de grande porte, como alces, cervos e ursos. Pesquisas indicaram
ter ocorrido uma redução de mais de 80% de atropelamentos de fauna
quando consideradas todas as espécies afetadas.
Viaduto vegetado no Parque Nacional Banff, no Canadá – Foto: Igor Pfeifer Coelho
Na Holanda, um grande programa de reconexão de fragmentos de áreas
com vegetação nativa, que inclui viadutos vegetados, foi iniciado em
1990. O trabalho identificou 1.126 pontos de desfragmentação em
rodovias, ferrovias e canais hidroviários. Entre 2005 e 2018, 175 desses
locais foram alvo de intervenções várias. Atualmente, há 30 viadutos
vegetados e outros 20 planejados.
Em artigo publicado em julho na revista científica Landscape Ecology,
pesquisadores holandeses afirmam que a redução do tamanho dos
fragmentos com vegetação nativa, bem como a diminuição da qualidade
desses habitat, aumenta as extinções locais de pequenas populações de
animais. Outro problema causado pelo isolamento dessas áreas é a
dificuldade dessas espécies colonizarem novos fragmentos.
Esse problema motivou a implantação do programa de desfragmentação
holandês. Por outro lado, os autores do artigo citam pesquisas que
destacam uma ausência de análises de custo-benefício das medidas de
desfragmentação de estradas, bem como dos efeitos delas sobre as
populações de animais silvestres.
Kindel afirma que os viadutos vegetados associados a cercas são
adequados para minimizar danos de rodovias em operação, mas não devem
ser utilizados para viabilizar estradas em planejamento. “Se a estrada
não se justifica, e isso tem de ser avaliado com indicadores sólidos,
ela nem deveria ser cogitada. Essa virada de mesa ainda não foi feita no
Brasil, embora vários mecanismos, inclusive de financiamento, já
demandem essas informações”, explica o coordenador do NERF. O ideal é
evitar a fragmentação e quando for necessária a implantação de
estruturas que reduzam os impactos negativos sobre a fauna, que sejam
parte de um planejamento amplo para toda uma região e não intervenções
pontuais.