Quando alguém passa num concurso do Ministério Público Federal,
costuma estrear no que se considera os piores postos, aqueles para onde
os procuradores em geral não levam a família e saem na primeira
oportunidade. Um destes que são descritos como um “inferno na Terra” nos
corredores da instituição é Altamira, no Pará, uma coleção de conflitos
amazônicos à beira do monumental rio Xingu.
Em 2012, Thais Santi –
nascida em São Bernardo do Campo e criada em Curitiba, com breve
passagem por Brasília nos primeiros anos de vida – foi despachada para
Altamira. Ao ver o nome da cidade, ela sorriu. Estava tão encantada com a
possibilidade de atuar na região que, no meio do curso de formação,
pegou um avião e foi garantir apartamento, já que as obras da
hidrelétrica de Belo Monte tinham inflacionado o mercado e sumido com as
poucas opções existentes. Thais iniciava ali a sua inscrição na
tradição dos grandes procuradores da República que atuaram na Amazônia e
fizeram História.
Ela já teve a oportunidade de deixar Altamira três vezes, a primeira
antes mesmo de chegar lá. Recusou todas. Junto com outros procuradores
do MPF, Thais Santi está escrevendo a narrativa de Belo Monte. Ou
melhor: a narrativa de como a mais controversa obra do PAC, o Programa
de Aceleração do Crescimento dos governos Lula-Dilma, um empreendimento
com custo em torno de R$ 30 bilhões, poderá ser julgada pela História
como uma operação em que a Lei foi suspensa. E também como o símbolo da
mistura explosiva entre o público e o privado, dada pela confusão sobre o
que é o Estado e o que é a
Norte Energia S.A.,
a empresa que ganhou o polêmico leilão da hidrelétrica. Fascinante do
ponto de vista teórico, uma catástrofe na concretude da vida humana e de
um dos patrimônios estratégicos para o futuro do planeta, a floresta
amazônica.
A jovem procuradora, hoje com 36 anos, conta que levou quase um ano
para ver e compreender o que viu – e outro ano para saber o que fazer
diante da enormidade do que viu e compreendeu. Ela se prepara agora para
entrar com uma ação denunciando que Belo Monte, antes mesmo de sua
conclusão, já causou o pior: um etnocídio indígena.
Nesta entrevista, Thais Santi revela a anatomia de Belo Monte.
Desvelamos o ovo da serpente junto com ela. Ao acompanhar seu olhar e
suas descobertas, roçamos as franjas de uma obra que ainda precisa ser
desnudada em todo o seu significado, uma operação que talvez seja o
símbolo do momento histórico vivido pelo Brasil. Compreendemos também
por que a maioria dos brasileiros prefere se omitir do debate sobre a
intervenção nos rios da Amazônia, assumindo como natural a destruição da
floresta e a morte cultural de povos inteiros, apenas porque são
diferentes. O testemunho da procuradora ganha ainda uma outra dimensão
no momento em que o atual governo, reeleito para mais um mandato, já
viola
os direitos indígenas previstos na Constituição para implantar usinas em mais uma bacia hidrográfica da Amazônia, desta vez a do Tapajós.
Thais Santi, que antes de se tornar procuradora da República era
professora universitária de filosofia do Direito, descobriu em Belo
Monte a expressão concreta, prática, do que estudou na obra da
filósofa alemã Hannah Arendt
sobre os totalitarismos. O que ela chama de “um mundo em que tudo é
possível”. Um mundo aterrorizante em que, à margem da legalidade, Belo
Monte vai se tornando um fato consumado. E a morte cultural dos
indígenas é naturalizada por parte dos brasileiros como foi o genocídio
judeu por parte da sociedade alemã.
A entrevista a seguir foi feita em duas etapas. As primeiras três
horas no gabinete da procuradora no prédio do Ministério Público Federal
de Altamira. Sua sala é decorada com peças de artesanato trazidas de
suas andanças por aldeias indígenas e reservas extrativistas. Na mesa,
vários livros sobre a temática de sua atuação: índios e populações
tradicionais. Entre eles, autores como os antropólogos Eduardo Viveiros
de Castro e Manuela Carneiro da Cunha.
A sala é cheirosa, porque as
funcionárias do MPF costumam tratar Thais com mimos. Carismática, ela
costuma produzir esse efeito nas pessoas ao redor. Dias antes da
entrevista, participou da comemoração dos 10 anos da Reserva
Extrativista Riozinho do Anfrísio, na Terra do Meio. Thais dormiu numa
rede na porta do posto de saúde que sua ação ajudou a implantar, a
alguns metros de onde acontecia um forró que durou a noite inteira. O
sono era interrompido ora por casais mais animados em sua ênfase
amorosa, ora por um atendimento de emergência no posto de saúde.
Impassível, Thais acordou no dia seguinte parecendo tão encantada com
todos, como todos com ela. “Noite interessante”, limitou-se a comentar.
A entrevista é interrompida pela chegada afetuosa de uma funcionária
trazendo primeiro café e água, depois peras. É bastante notável, nas
respostas de Thais, o conhecimento teórico e a consistência de seus
argumentos jurídicos. Embora visivelmente apaixonada pelo que faz, em
sua atuação ela se destaca por ser conceitualmente rigorosa e cerebral.
Mas, na medida em que Thais vai explicando Belo Monte, sua voz vai
ganhando um tom indignado. “Como ousam?”, ela às vezes esboça,
referindo-se ou à Norte Energia ou ao governo. Como ao contar que, ao
votar na última eleição, deparou-se com uma escola com paredes de
contêiner, piso de chão batido, as janelas de ferro enferrujado, as
pontas para fora, a porta sem pintura, nenhum espaço de recreação e nem
sequer uma árvore em plena Amazônia. Uma escola construída para não
durar, quando o que deveria ter sido feito era ampliar o acesso à
educação na região de impacto da hidrelétrica.
A segunda parte da entrevista, outras três horas, foi feita por
Skype. Reservada na sua vida pessoal, quando Thais deixa escapar alguma
informação sobre seu cotidiano, suas relações e seus gostos, de imediato
pede off. “Não tenho nem Facebook”, justifica-se. Dela me limito a
dizer que acorda por volta das 5h30 da manhã, que faz yoga e que todo
dia vai admirar o Xingu. Em seu celular, há uma sequência de fotos do
rio. Uma a cada dia.
A senhora chegou em Altamira no processo de implantação de Belo Monte. O que encontrou?
Thais Santi – Encontrei aqui a continuação do que eu
estudei no meu mestrado a partir da (filósofa alemã) Hannah Arendt.
Belo Monte é o caso perfeito para se estudar o mundo em que tudo é
possível. A Hannah Arendt lia os estados totalitários. Ela lia o mundo
do genocídio judeu. E eu acho que é possível ler Belo Monte da mesma
maneira.
O que significa um mundo em que tudo é possível?
Santi – Existem duas compreensões de Belo Monte. De
um lado você tem uma opção governamental, uma opção política do governo
por construir grandes empreendimentos, enormes, brutais, na
Amazônia.
Uma opção do governo por usar os rios amazônicos, o recurso mais
precioso, aquele que estará escasso no futuro, para produzir energia.
Essa opção pode ser questionada pela academia, pela população, pelos
movimentos sociais. Mas é uma opção que se sustenta na legitimidade do
governo. Podemos discutir longamente sobre se essa legitimidade se
constrói a partir do medo, a partir de um falso debate. Quanto a esta
escolha, existe um espaço político de discussão.
Mas, de qualquer
maneira, ela se sustenta na legitimidade. Pelo apoio popular, pelo
suposto apoio democrático que esse governo tem, embora tenha sido
reeleito com uma diferença muito pequena de votos. Agora, uma vez
adotada essa política, feita essa escolha governamental, o respeito à
Lei não é mais uma opção do governo. O que aconteceu e está acontecendo
em Belo Monte é que, feita a escolha governamental, que já é
questionável, o caminho para se implementar essa opção é trilhado pelo
governo como se também fosse uma escolha, como se o governo pudesse
optar entre respeitar ou não as regras do licenciamento. Isso é brutal.
O Ministério Público Federal já entrou com 22 ações nesse
sentido. Por que a Justiça Federal não barra essa sequência de
ilegalidades?
O Governo pode escolher fazer Belo Monte, mas não pode escolher desrespeitar a Lei no processo de implantação da hidrelétrica
Santi – Lembro que, quando eu trabalhava com meus
alunos, discutíamos que há um conflito entre dois discursos. De um lado,
há um discurso fundado na Lei, preso à Lei, e do outro lado o discurso
de um Direito mais flexível, mais volátil, em que o operador tem a
possibilidade de às vezes não aplicar a Lei. Eu dizia a eles que esses
discursos têm de estar equilibrados, nem para o extremo de um legalismo
completo, nem para o outro, a ponto de o Direito perder a função, de a
Lei perder a função.
Hoje, se eu desse aula, Belo Monte é o exemplo
perfeito. Perfeito. Eu nunca imaginei que eu viria para o Pará, para
Altamira, e encontraria aqui o exemplo perfeito. Por quê? Quando eu peço
para o juiz aplicar regra, digo a ele que essa regra sustenta a
anuência e a autorização para a obra e que, se a regra não foi cumprida,
o empreendimento não tem sustentação jurídica. E o juiz me diz: “Eu não
posso interferir nas opções governamentais” ou “Eu não posso interferir
nas escolhas políticas”. É isso o que os juízes têm dito. Portanto, ele
está falando da Belo Monte da legitimidade e não da Belo Monte que se
sustenta na legalidade.
Assim, Belo Monte é o extremo de um Direito
flexível. É o mundo em que a obra se sustenta nela mesma. Porque a
defesa do empreendedor é: o quanto já foi gasto, o tanto de
trabalhadores que não podem perder o emprego. Mas, isso tudo não é
Direito, isso tudo é Fato. A gente se depara com a realidade de uma obra
que caminha, a cada dia com mais força, se autoalimentando. A
sustentação de Belo Monte não é jurídica. É no Fato, que a cada dia se
consuma mais. O mundo do tudo é possível é um mundo aterrorizante, em
que o Direito não põe limite. O mundo do tudo possível é Belo Monte.
O mundo do tudo é possível é um mundo aterrorizante, onde o Direito não põe limites
E como a senhora chegou a essa conclusão?
Santi – Eu levei quase um ano para entender o que
estava acontecendo com os indígenas no processo de Belo Monte. Só fui
entender quando compreendi o que era o Plano Emergencial de Belo Monte.
Eu cheguei em Altamira em julho de 2012 e fui para uma aldeia dos Arara
em março, quase abril, de 2013. Eu sabia que lideranças indígenas
pegavam a gasolina que ganhavam aqui e vendiam ali, trocavam por bebida,
isso eu já sabia. Mas só fui sentir o impacto de Belo Monte numa aldeia
que fica a quase 300 quilômetros daqui. Brutal. Só compreendi quando
fui até as aldeias, porque isso não se compreende recebendo as
lideranças indígenas no gabinete. Eu vi.
O que a senhora viu?
Santi – O Plano Emergencial tinha como objetivo
criar programas específicos para cada etnia, para que os indígenas
estivessem fortalecidos na relação com Belo Monte. A ideia é que os
índios se empoderassem, para não ficar vulneráveis diante do
empreendimento. E posso falar com toda a tranquilidade: houve um desvio
de recursos nesse Plano Emergencial. Eu vi os índios fazendo fila num
balcão da Norte Energia, um balcão imaginário, quando no plano estava
dito que eles deveriam permanecer nas aldeias. Comecei a perceber o que
estava acontecendo quando fiz essa visita à terra indígena de Cachoeira
Seca e conheci os Arara, um grupo de recente contato. E foi um choque.
Eu vi a quantidade de lixo que tinha naquela aldeia, eu vi as casas
destruídas, com os telhados furados, chovendo dentro. E eles dormiam
ali. As índias, na beira do rio, as crianças, as meninas, totalmente
vulneráveis diante do pescador que passava.
Quando Belo Monte começou,
esse povo de recente contato ficou sem chefe do posto. Então, os índios
não só se depararam com Belo Monte, como eles estavam sem a Funai dentro
da aldeia. De um dia para o outro ficaram sozinhos. Os Arara estavam
revoltados, porque eles tinham pedido 60 bolas de futebol, e só tinham
recebido uma. Eles tinham pedido colchão boxe para colocar naquelas
casas que estavam com telhado furado e eles não conseguiram. Esse grupo
de recente contato estava comendo bolachas e tomando refrigerantes,
estava com problemas de diabetes e hipertensão. Mas o meu impacto mais
brutal foi quando eu estava tentando fazer uma reunião com os Arara, e
uma senhora, talvez das mais antigas, me trouxe uma batata-doce para eu
comer. Na verdade, era uma mini batata-doce. Parecia um feijão. Eu a
peguei, olhei para a menina da Funai, e ela falou: “É só isso que eles
têm plantado. Eles não têm nada além disso”. Esse era o grau de atropelo
e de desestruturação que aquele plano tinha gerado. Era estarrecedor.
Qual era a cena?
Santi – Era como se fosse um pós-guerra, um
holocausto. Os índios não se mexiam. Ficavam parados, esperando,
querendo bolacha, pedindo comida, pedindo para construir as casas. Não
existia mais medicina tradicional. Eles ficavam pedindo. E eles não
conversavam mais entre si, não se reuniam. O único momento em que eles
se reuniam era à noite para assistir à novela numa TV de plasma. Então
foi brutal. E o lixo na aldeia, a quantidade de lixo era impressionante.
Era cabeça de boneca, carrinho de brinquedo jogado, pacote de bolacha,
garrafa pet de refrigerante.
A cena na aldeia dos Arara de Cachoeira Seca, índios de recente
contato, era a de um pós-guerra, um holocausto, com lixo para todo lado
Isso foi o que eles ganharam da Norte Energia?
Santi – Tudo o que eles tinham recebido do Plano Emergencial.
Era esse o Plano Emergencial, o que deveria fortalecer os indígenas para que pudessem resistir ao impacto de Belo Monte?
Santi – Tudo o que eles tinham recebido do Plano
Emergencial. O Plano Emergencial gerou uma dependência absoluta do
empreendedor. Absoluta. E o empreendedor se posicionou nesse processo
como provedor universal de bens infinitos, o que só seria tolhido se a
Funai dissesse não. A Norte Energia criou essa dependência, e isso foi
proposital. E se somou à incapacidade da Funai de estar presente, porque
o órgão deveria ter sido fortalecido para esse processo e, em vez
disso, se enfraqueceu cada vez mais. Os índios desacreditavam da Funai e
criavam uma dependência do empreendedor. Virou um assistencialismo.
Como a senhora voltou dessa experiência?
Santi – Eu dizia: “Gente, o que é isso? E o que
fazer?”. Eu estava com a perspectiva de ir embora de Altamira, mas me
dei conta que, se fosse, o próximo procurador ia demorar mais um ano
para entender o que acontecia. Então fiquei.
O Plano Emergencial foi usado para silenciar os indígenas, únicos
agentes que ainda tinham voz e visibilidade na resistência à
hidrelétrica
E o que a senhora fez?
Santi – Eu não sabia entender o que estava
acontecendo. Pedi apoio na 6ª Câmara (do Ministério Público Federal, que
atua com povos indígenas e populações tradicionais), e fizemos uma
reunião em Brasília. Chamamos os antropólogos que tinham participado do
processo de Belo Monte na época de elaboração do EIA (Estudo de Impacto
Ambiental), para que pudessem falar sobre como esses índios viviam
antes, porque eu só sei como eles vivem hoje. Um antropólogo que
trabalha com os Araweté contou como esse grupo via Belo Monte e não teve
ninguém sem nó na garganta. Os Araweté receberam muitos barcos, mas
muitos mesmo.
O Plano Emergencial foi isso. Ganharam um monte de
voadeiras (o barco a motor mais rápido da Amazônia), e eles continuavam
fazendo canoas. Para os Araweté eles teriam de sobreviver naqueles
barcos, esta era a sua visão do fim do mundo. E até agora eles não sabem
o que é Belo Monte, ainda acham que vai alagar suas aldeias. A Norte
Energia é um provedor de bens que eles não sabem para que serve. Outra
antropóloga contou que estava nos Araweté quando o Plano Emergencial
chegou. Todas as aldeias mandavam suas listas, pedindo o que elas
queriam, e os Araweté não tinham feito isso, porque não havia coisas que
eles quisessem. Eles ficavam confusos, porque podiam querer tudo, mas
não sabiam o que querer. E aí as coisas começaram a chegar. Houve até um
cacique Xikrin que contou para mim como foi. Ligaram para ele de
Altamira dizendo: “Pode pedir tudo o que você quiser”. Ele respondeu:
“Como assim? Tudo o que me der na telha?”. E a resposta foi: “Tudo”. O
cacique contou que pediram tudo, mas não estavam acreditando que iriam
receber. De repente, chegou. Ele fazia gestos largos ao contar: “Chegou
aquele mooonte de quinquilharias”. Tonéis de refrigerante, açúcar em
quantidade. Foi assim que aconteceu. Este era o Plano Emergencial.
E o que aconteceu com os índios depois dessa intervenção?
Santi – As aldeias se fragmentaram. Primeiro, você
coloca na mão de uma liderança, que não foi preparada para isso, o poder
de dividir recursos com a comunidade. A casa do cacique com uma TV de
plasma, as lideranças se deslegitimando perante a comunidade. Ganhava
uma voadeira que valia 30, vendia por oito. Fora o mercado negro que se
criou em Altamira com as próprias empresas. O índio ficou com dinheiro
na mão e trocou por bebida. O alcoolismo, que já era um problema em
muitas aldeias, que era algo para se precaver, aumentou muito. Acabou
iniciando um conflito de índios com índios, e aumentando o preconceito
na cidade entre os não índios. O pescador, para conseguir uma voadeira,
precisa trabalhar muito. E a comunidade passou a ver o índio andando de
carro zero, de caminhonetes caríssimas, bebendo, houve casos de
acidentes de trânsito e atropelamento. Então, como é possível? Acho que
nem se a gente se sentasse para fazer exatamente isso conseguiria obter
um efeito tão contrário. Os índios se enfraqueceram, se fragmentaram
socialmente, a capacidade produtiva deles chegou a zero, os conflitos e o
preconceito aumentaram.
Belo Monte é um etnocídio indígena
A senhora acha que essa condução do processo, por parte da Norte Energia, com a omissão do governo, foi proposital?
Santi – Um dos antropólogos da 6ª Câmara tem uma
conclusão muito interessante. No contexto de Belo Monte, o Plano
Emergencial foi estratégico para silenciar os únicos que tinham voz e
visibilidade: os indígenas. Porque houve um processo de silenciamento da
sociedade civil. Tenho muito respeito pelos movimentos sociais de
Altamira. Eles são uma marca que faz Altamira única e Belo Monte um caso
paradigmático. Mas hoje os movimentos sociais não podem nem se
aproximar do canteiro de Belo Monte. Há uma ordem judicial para não
chegar perto. Naquele momento, os indígenas surgiram como talvez a única
voz que ainda tinha condição de ser ouvida e que tinha alguma
possibilidade de interferência, já que qualquer não índio receberia
ordem de prisão. E o Plano Emergencial foi uma maneira de silenciar essa
voz. A cada momento que os indígenas vinham se manifestar contra Belo
Monte, com ocupação de canteiro, essa organização era, de maneira muito
rápida, desconstituída pela prática de oferecer para as lideranças uma
série de benefícios e de bens de consumo. Porque os indígenas têm uma
visibilidade que a sociedade civil não consegue ter. Vou dar um exemplo.
Houve uma ocupação em que os pescadores ficaram 40 dias no rio, na
frente do canteiro, debaixo de chuva, e não tiveram uma resposta. Aquele
sofrimento passava despercebido. E de repente os indígenas resolvem
apoiar a reivindicação dos pescadores, trazendo as suas demandas também.
E, de um dia para o outro, a imprensa apareceu. Os indígenas eram a voz
que ainda poderia ser ouvida e foram silenciados.
Com as listas de voadeiras, TV de plasma, bolachas, Coca-Cola?
Santi – No caso das ocupações de canteiro não eram
nem as listas. No caso da ocupação que aconteceu em 2012, até hoje eu
não entendo qual é o lastro legal que justificou o acordo feito. As
lideranças saíram da ocupação e vieram para Altamira, onde negociaram a
portas fechadas com a Norte Energia. Cada uma voltou com um carro, com
uma caminhonete. E isso também para aldeias que sequer têm acesso por
via terrestre. Então eu acho que não tem como entender o Plano
Emergencial sem dizer que foi um empreendimento estratégico no sentido
de afastar o agente que tinha capacidade de organização e condições de
ser ouvido. É preciso deixar clara essa marca do Plano Emergencial de
silenciar os indígenas.
A mistura entre o empreendedor e o Estado é uma das marcas de Belo Monte
O que é Belo Monte para os povos indígenas do Xingu?
Santi – Um etnocício. Essa é a conclusão a que
cheguei com o Inquérito Civil que investigou o Plano Emergencial. Belo
Monte é um etnocídio num mundo em que tudo é possível.
E o Ministério Público Federal vai levar à Justiça o etnocídio indígena perpetrado por Belo Monte?
Santi – Certamente. É necessário reavaliar a
viabilidade da usina no contexto gerado pelo Plano Emergencial e pelas
condicionantes não cumpridas.
A ditadura militar massacrou vários povos indígenas, na
década de 70 do século 20, para tirá-los do caminho de obras
megalômanas, como a Transamazônica. Aquilo que a História chama de “os
elefantes brancos da ditadura”. Agora, como é possível acontecer um
etnocídio em pleno século 21 e na democracia? Por que não se consegue
fazer com que a lei se aplique em Belo Monte?
Thais – Eu virei uma leitora dos Estudos de Impacto
Ambiental (EIAs). E os estudos mostraram uma região historicamente
negligenciada pelo Estado, com povos indígenas extremamente vulneráveis
por conta de abertura de estradas e de povoamentos. Então, Belo Monte
não iria se instalar num mundo perfeito, mas num mundo de conflitos
agrários, na região em que foi assassinada a Irmã Dorothy Stang, com
povos indígenas violentados pela política estatal e com diagnóstico de
vulnerabilidade crescente. É isso o que os estudos dizem.
O diagnóstico,
então, mostra que Belo Monte seria um acelerador, Belo Monte aceleraria
esse processo a um ritmo insuportável e os indígenas não poderiam mais
se adaptar. Ou seja, Belo Monte foi diagnosticado para os indígenas como
uma obra de altíssimo risco. Isso no EIA. Não é de alto impacto, é de
altíssimo risco à sua sobrevivência étnica. Com base nesse diagnóstico,
os estudos indicam uma série de medidas mitigatórias indispensáveis para
a viabilidade de Belo Monte. A Funai avaliou esses estudos, fez um
parecer e falou a mesma coisa: Belo Monte é viável desde que aquelas
condições sejam implementadas.
E o que aconteceu?
Santi – Para explicar, precisamos falar daquela que
talvez seja a questão mais grave de Belo Monte. Para Belo Monte se
instalar numa região dessas, o Estado teve que assumir um compromisso.
Você não pode transferir para o empreendedor toda a responsabilidade de
um empreendimento que vai se instalar numa região em que está constatada
a ausência histórica do Estado
. Existe um parecer do
Tribunal de Contas dizendo que a obra só seria viável se, no mínimo, a
Funai, os órgãos de controle ambiental, o Estado, se fizessem presentes
na região. Belo Monte é uma obra prioritária do governo federal. Se o
Ministério Público Federal entra com ações para cobrar a implementação
de alguma condicionante ou para questionar o processo, mesmo que seja
contra a Norte Energia, a União participa ao lado do empreendedor. A
Advocacia Geral da União defende Belo Monte como uma obra governamental.
Só que Belo Monte se apresentou como uma empresa com formação de S.A.,
como empresa privada. E na hora de cobrar a aplicação de políticas
públicas que surgem como condicionantes do licenciamento? De quem é a
responsabilidade? Então, na hora de desapropriar, a Norte Energia se
apresenta como uma empresa concessionária, que tem essa autorização, e
litiga na Justiça Federal. Na hora de implementar uma condicionante, ela
se apresenta como uma empresa privada e transfere a responsabilidade
para o Estado. Essa mistura entre o empreendedor e o Estado é uma das
marcas mais interessantes de Belo Monte
. E não só isso.
Há as instâncias de decisão. O Ministério do Meio Ambiente define a
presidência do Ibama. A presidência da República define o Ministério do
Meio Ambiente. Da Funai, a mesma coisa. Então é muito difícil entender
Belo Monte, porque a gente tem um empreendimento que é prioritário e ao
mesmo tempo a empresa é privada. Ser privada significa contratar o
Consórcio Construtor Belo Monte
(Andrade Gutierrez, Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, OAS e
outras construtoras com participações menores) sem licitar. Ela diz que
não vai fazer, que não cabe a ela fazer. E ninguém manda fazer. Então, a
gente tem uma situação em que o empreendedor se coloca como soberano,
reescrevendo a sua obrigação. Por exemplo: entre as condicionantes,
estava a compra de terra, pela Norte Energia, para ampliação da área dos
Juruna do KM 17, porque eles ficariam muito expostos com a obra. A
Norte Energia fez a escolha da área. Mas quando a Funai disse para a
Norte Energia que comprasse a área, a empresa respondeu: “Não, já cumpri
a condicionante. Já fiz a escolha da área, é responsabilidade do
governo comprar a área”. E a Funai silenciou. E o Ibama nem tomou
conhecimento. Houve uma reunião, e eu perguntei à Funai: “Vocês não
cobraram a Norte Energia para que cumprisse a condicionante? Quem tem
que dizer o que está escrito é a Funai e não a Norte Energia”. E se a
Norte Energia diz “não”, a Funai tem que dizer “faça”, porque existem
regras. Conseguimos que a Norte Energia comprasse a área por ação
judicial. Mas este é um exemplo do processo de Belo Monte, marcado por
uma inversão de papéis. A Norte Energia reescreve as obrigações se
eximindo do que está previsto no licenciamento. Quem dá as regras em
Belo Monte? O empreendedor tem poder para dizer “não faço”? Veja, até
tem. Todo mundo pode se negar a cumprir uma obrigação, desde que use os
mecanismos legais para isso. Se você não quer pagar pelo aluguel, porque
o considera indevido, e eu quero que você pague, o que você faz? Você
vai conseguir lá em juízo, você vai recorrer da decisão. Mas não aqui.
Aqui a Norte Energia diz: “Não faço”.
As empreiteiras que fizeram os estudos de viabilidade são hoje meras
contratadas da Norte Energia, sem nenhuma responsabilidade
socioambiental
E o governo se omite por quê?
Santi – Não cabe a mim dizer. Há em Belo Monte
questões difíceis de entender. O que justifica uma prioridade tão grande
do governo para uma obra com impacto gigantesco e com um potencial de
gerar energia nada extraordinário, já que o rio não tem vazão em parte
do ano? O que que justifica Belo Monte? É inegável que há uma zona
nebulosa. Veja o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte, veja
quem assina. (Aponta os nomes das empresas: Andrade Gutierrez, Camargo
Corrêa, Odebrecht...). E, na hora do leilão, eles não participaram do
leilão. Surge uma empresa criada às pressas para disputar o leilão. Essa
empresa, a Norte Energia, constituída como S.A., portanto uma empresa
privada, é que ganha o leilão, que ganha a concessão. E as empreiteiras
que participaram dos estudos de viabilidade? Formaram o Consórcio
Construtor Belo Monte (CCBM), que é um contratado da Norte Energia. E a
Norte Energia, por sua vez, mudou totalmente a composição que ela tinha
na época do leilão. Hoje, com muito mais aporte de capital público.
Então, as empreiteiras que fizeram os estudos de viabilidade e de
impacto ambiental hoje são meras contratadas, sem nenhuma
responsabilidade socioambiental no licenciamento. Os ofícios que
enviamos para a CCBM nunca são para cobrar nada, porque não há nenhuma
condicionante para elas, nenhuma responsabilidade socioambiental. Com
essa estrutura, os recursos de Belo Monte não passam por licitação. O
que é Belo Monte? Eu realmente não sei. Não é fácil entender Belo Monte.
É a História que vai nos mostrar. E, quem sabe, as operações já em
curso (da
“Lava Jato”, pela Polícia Federal,
que investigam a atuação das empreiteiras no escândalo de corrupção da
Petrobrás) tragam algo para esclarecer essa nebulosidade.
No caso dos indígenas, estava previsto o fortalecimento da
Funai, para que o órgão pudesse acompanhar o processo. Em vez disso, a
Funai passou por um processo de enfraquecimento, articulado também no
Congresso, pela bancada ruralista, que continua até hoje....
O Plano Emergencial foi transformado num balcão de negócios em que os indígenas foram jogados no consumismo dos piores bens
Santi – Eu visitei a aldeia Parakanã, na terra
indígena Apyterewa. Quando eu cheguei lá, eu não acreditei nas casas que
estavam sendo construídas. Meia-água, de telha de Brasilit. Uma do lado
da outra, naquele calor. Eu perguntei para o funcionário da Funai como
eles permitiram, porque os Parakanã também são índios de recente
contato. E eles não ficavam nas casas, ficavam num canto da aldeia. Aí a
gente foi para os Araweté, também construindo. A aldeia estava cheio de
trabalhadores. Aquelas meninas andando nuas. Os pedreiros ouvindo
música naqueles radinhos de celular. Eu perguntei à Funai: “Como que
vocês permitem?”. A Funai não estava acompanhando as obras, não sabia
quem estava na aldeia nem de onde tinha vindo aquele projeto de casa. A
Funai tinha que acompanhar os programas e ela não está acompanhando.
Estava previsto o fortalecimento da Funai e aconteceu o contrário. No
Plano de Proteção Territorial estava prevista uma espécie de orquestra
para proteger as terras indígenas. Haveria 32 bases, se não me engano,
em locais estratégicos, já que proteger o território é condição para
proteger os indígenas. Esse plano é uma das condicionantes mais
importantes de Belo Monte.
Na verdade, Belo Monte seria impensável sem a
proteção dos territórios indígenas. E protegeria também as unidades de
conservação, freando o desmatamento, porque teria ali Polícia Federal,
Ibama, ICMBio, Funai, todos juntos. E isso com previsão de contratação
de 120 funcionários para atuar nessa proteção. E isso tinha que
anteceder a obra. Daí, em 2011 vem o pedido de Licença de Instalação,
já, e o plano não tinha começado. A Funai anuiu com a Licença de
Instalação desde que o plano fosse implementado em 40 dias.
E diz:
“Enfatizamos que o descumprimento das condicionantes expressas nesse
ofício implicará a suspensão compulsória da anuência da Funai para o
licenciamento ambiental do empreendimento”. É com isso que eu me deparo.
No final de 2012, os indígenas cobraram a implementação desse plano em
uma ocupação dos canteiros de obra, e ficou claro que sequer havia
iniciado a construção das bases. A partir daí, a Norte Energia passou a
simplificar e reescrever o plano. A Funai não tinha força para cobrar a
implantação da condicionante, mas não anui com o que a Norte Energia
passa a fazer. Propusemos uma ação no dia 19 de abril de 2013, que era
Dia do Índio, para que cumprissem a condicionante.
E que se aplicasse o
que estava escrito: que o não cumprimento implicará a suspensão
compulsória da anuência da Funai para o licenciamento. O juiz deferiu a
liminar quase um ano depois, já em 2014. Mas qual a resposta do
Judiciário? Que suspender a anuência da Funai ao licenciamento seria
interferir nas opções políticas do governo. Resultado: hoje a gente está
virando 2014 para 2015 e a Proteção Territorial não está em execução.
Foi a última informação que eu recebi da Funai. O plano ainda não
iniciou.
Essa é a situação hoje?
Santi – O Plano Emergencial era um conjunto de
medidas antecipatórias indispensáveis à viabilidade de Belo Monte.
Envolvia o fortalecimento da Funai, um plano robusto de proteção
territorial e o programa de etnodesenvolvimento. O fortalecimento da
Funai não foi feito. O plano de proteção não iniciou. E o plano de
etnodesenvolvimento? Foi substituído por ações do empreendedor à margem
do licenciamento, por meio das quais os indígenas foram atraídos para
Altamira, para disputar nos balcões da Norte Energia toda a sorte de
mercadoria, com os recursos destinados aos programas de fortalecimento.
Como é possível?
Santi – Eu realmente acho que existe uma tragédia
acontecendo aqui, que é a invasão das terras indígenas, é a desproteção.
A gente vê a madeira saindo. As denúncias que recebemos aqui de
extração de madeira na terra indígena Cachoeira Seca, na terra indígena
Trincheira Bacajá, elas são assustadoras. E eu realmente me pergunto:
como? A pergunta que eu tinha feito para o juiz nesse processo era isso:
“Belo Monte se sustenta no quê, se essa condicionante, que era a
primeira, não foi implementada?”. Belo Monte se sustenta no fato
consumado. E numa visão equivocada de que, em política, não se
interfere. Como se aquela opção política fosse também uma opção por
desrespeitar a Lei. O fato é que Belo Monte, hoje, às vésperas da
Licença de Operação, caminha sem a primeira condicionante indígena. Eu
te digo: é estarrecedor.
Belo Monte caminha, portanto, à margem da Lei?
Santi – Essa ação da Norte Energia se deu à margem
do licenciamento. Se os estudos previram que Belo Monte seria de
altíssimo risco, e trouxeram uma série de medidas necessárias, e o que o
empreendedor fez foi isso... A que conclusão podemos chegar? Se
existiam medidas para mitigar o altíssimo risco que Belo Monte trazia
para os indígenas, e essas políticas não foram feitas, e em substituição
a elas o que foi feito foi uma política marginal de instigação de
consumo, de ruptura de vínculo social, de desprezo à tradição, de forma
que os indígenas fossem atraídos para o núcleo urbano pelo empreendedor e
jogados no pior da nossa cultura, que é o consumismo.
E no consumismo
dos piores bens, que é a Coca-Cola, que é o óleo... Ou seja: todos os
estudos foram feitos para quê? Tanto antropólogo participando para, na
hora de implementar a política, o empreendedor criar um balcão direto
com o indígena, fornecendo o que lhe der na telha? O que aconteceu em
Belo Monte: o impacto do Plano Emergencial, que ainda não foi avaliado,
até esse momento, foi maior do que o próprio impacto do empreendimento. A
ação do empreendedor foi avassaladora. Então, de novo, qual é o impacto
de Belo Monte? O etnocídio indígena.
E o que fazer agora?
A Defensoria Pública da União não estava presente em Altamira,
enquanto milhares de atingidos eram reassentados sem nenhuma assistência
jurídica
Santi – Hoje Belo Monte é uma catástrofe. Eu demorei
um ano para ver, um ano para conseguir compreender e agora eu vou te
dizer o que eu acho. Se a Lei se aplicasse em Belo Monte, teria que ser
suspensa qualquer anuência de viabilidade desse empreendimento até que
se realizasse um novo estudo e fosse feito um novo atestado de
viabilidade, com novas ações mitigatórias, para um novo contexto, em que
aconteceu tudo o que não podia acontecer.
É possível afirmar que a Norte Energia agiu e age como se estivesse acima do Estado?
Santi – A empresa se comporta como se ela fosse
soberana. E é por isso que eu acho que a ideia aqui é como se a Lei
estivesse suspensa. É uma prioridade tão grande do governo, uma obra que
tem que ser feita a qualquer custo, que a ordem jurídica foi suspensa. E
você não consegue frear isso no poder judiciário, porque o Judiciário
já tem essa interpretação de que não cabe a ele interferir nas políticas
governamentais. Só que o poder judiciário está confundindo legitimidade
com legalidade. Política se sustenta na legitimidade e, feita uma
opção, o respeito à Lei não é mais uma escolha, não é opcional. E aqui
virou. E quem vai dizer para o empreendedor o que ele tem que fazer?
Além da questão indígena, há também a questão dos
reassentamentos. Em novembro, o Ministério Público Federal de Altamira
fez uma audiência pública para discutir o reassentamento de moradores da
cidade, que foi muito impactante. Qual é a situação dessa população
urbana com relação à Belo Monte?
Santi – De novo, como no caso dos indígenas, nós
temos uma obra de um impacto enorme, numa região historicamente
negligenciada, e o Estado tinha que estar instrumentalizado para que
Belo Monte acontecesse. E quando nós nos demos conta, a obra está no seu
pico – e sem a presença de Defensoria Pública em Altamira. Até 2013,
havia uma pessoa na Defensoria Pública do Estado, que acompanhava a
questão agrária, uma defensora atuante com relação à Belo Monte, mas que
precisava construir uma teoria jurídica para atuar, porque ela era uma
defensora pública do Estado e as ações de Belo Monte eram na Justiça
Federal. Depois, todos foram removidos e não veio ninguém substituir.
Isso na Defensoria Pública Estadual. Mas e a federal?
Santi – A Defensoria Pública da União nunca esteve presente em Altamira.
Nunca? Em nenhum momento?
Santi – Não. E a Defensoria Pública do Estado também não estava mais.
A população estava sendo removida por Belo Monte sem nenhuma assistência jurídica? As pessoas estavam sozinhas?
Estamos assistindo diariamente ao impacto brutal de Belo Monte no Xingu, e o governo já se lança numa nova empreitada no Tapajós
Santi – Sim. É incompreensível que, em uma obra que
cause um impacto socioambiental como Belo Monte, a população esteja
desassistida. Num mundo responsável, isso é impensável. E acho que para
qualquer pessoa com um raciocínio médio isso é impensável. Então fizemos
uma audiência pública para que todos pudessem realmente ser escutados.
Porque um dia chegou na minha sala uma senhora muito humilde. Poucas
vezes eu tinha me deparado com uma pessoa assim, por que ela veio
sozinha e já era uma senhora de idade. E eu não conseguia entender o que
ela falava.
Eu não conseguia. Ela estava desacompanhada, desesperada, e
eu falei pra ela assim: “A senhora espera lá fora, que eu vou resolver
algumas coisas aqui, e eu vou com a senhora pessoalmente na empresa”.
Porque o reassentamento, como ele é feito? A Norte Energia contratou uma
empresa que faz o papel de intermediária entre a Norte Energia e as
pessoas. Chama-se Diagonal. Então cheguei na empresa com ela.
É uma
casa, as pessoas ficam do lado de fora, naquele calor de 40 graus,
esperando para entrar. E, uma a uma, vão sendo chamada para negociar.
Essa senhora foi lá negociar a situação dela. E ofereceram para ela uma
indenização. E ela não queria uma indenização, ela queria uma casa. E
ela diz: “Eu não quero a indenização, eu quero uma casa!”. Neste
momento, ela está falando com um assistente social da empresa. E aí, se
ela não concorda com o que está sendo oferecido, o advogado da empresa
vai explicar a ela por que ela não tem direito a uma casa. E se ela
continuar não concordando, esse processo vai para a Norte Energia. Para
mim, isso já foi uma coisa completamente estranha.
A palavra não é
estranha... Eu diria, foi uma coisa interessante. Porque a Norte Energia
funciona como uma instância recursal, da indignação da pessoa contra
uma empresa que é uma empresa contratada por ela. Então a revolta das
pessoas é contra a empresa Diagonal. Aí o caso da pessoa vai para a
Norte Energia, e a Norte Energia vai com seu corpo de advogados – 26
advogados contratados só para esse programa – fazer uma avaliação e
explicar para a pessoa as regras que são aplicadas. E que, se essa
pessoa não aceitar, ela tem um prazo para se manifestar. E, se ela não
se manifestar nesse prazo, ou se ela não concordar, o processo vai ser
levado para a Justiça, e a Norte Energia vai pedir a emissão da posse.
A
senhora vai ter que sair de qualquer jeito e discutir em juízo esses
valores. Veja a situação com que eu me deparei. Primeiro: a senhora não
tinha nenhuma condição nem de explicar a história dela, ela tinha
dificuldades de falar. Porque o tempo deles é outro, a compreensão de
tudo é outra. A gente está falando de pessoas desse mundo aqui, que não é
o mundo de lá, é o mundo de cá. E que eu mesma não tinha capacidade de
entender.
Então, essa pessoa, que tem dificuldade para se expressar,
como ela vai dialogar sozinha, na mesa do empreendedor, com advogados e
pessoas que estão do lado de lá? Naquele momento eu tive a compreensão
de que, primeiro, existia uma confusão de papéis ali, porque a Norte
Energia se apresentava como instância recursal, mas fazia o papel dela. A
outra empresa também fazia o papel dela. Quem estava ausente era o
Estado. Quem estava ausente era quem tinha que acompanhar essa pessoa.
Então, quem estava se omitindo ali era o Estado. Para mim era
inadmissível que aquela senhora estivesse sozinha negociando na mesa do
empreendedor. Na audiência pública apareceu outra senhora que assinou,
mas contou chorando que não sabia ler. Assinou com o dedo. Assinou uma
indenização, mas queria uma casa. Isso resume a violência desse
processo. Há muitos casos. Muitos. E tudo isso estava acontecendo porque
a Defensoria Pública da União não estava aqui. Uma das funções da
audiência pública foi chamar o Estado. A Defensoria Pública é uma
instituição que está crescendo, que se fortalece, e eu acho que ela não
pode deixar à margem uma realidade com risco de grande violação de
direitos humanos, como é Belo Monte.
Como se explica um empreendimento desse tamanho, com milhares de remoções, sem a presença da Defensoria Pública da União?
Santi – Como você imagina uma obra com o impacto de
Belo Monte sobre 11 terras indígenas, com o impacto que já ficou claro,
com alto risco de destruição cultural, sem a Funai estruturada? Como a
Funai está em Altamira com o mesmo número de servidores que ela tinha em
2009? Como não foi feita uma nova sede da Funai? Como não foi
contratado um servidor para a Funai? E o ICMBio? Temos aqui seis
unidades de conservação na área de impacto do empreendimento. Entre
essas unidades, só a Estação Ecológica da Terra do Meio tem três milhões
de hectares. Se você me perguntar hoje quantos gestores o ICMBio tem
nessas unidades eu vou te dizer: a unidade da (Reserva Extrativista)
Verde para Sempre está sem gestor.
A unidade do Iriri está sem gestor,
foi contratado um cargo em comissão. Ou seja, não existe servidor do
ICMBio pra cuidar dessa unidade do Iriri. Para a resex Riozinho do
Anfrísio também foi contratado um servidor extraquadro. Para o Parque
Nacional da Serra do Padre também. A gente tem Belo Monte com um impacto
no seu ápice, no momento da maior pressão antrópica já prevista, com as
unidades de conservação sem gestor. E o impacto, o desmatamento, é uma
prova disso. Na Resex Riozinho do Anfrísio a extração ilegal de madeira
já atravessou a unidade e chegou nos ribeirinhos. É uma região que está
numa efervescência de impacto.
E o concurso público realizado para o
ICMBio só previu a contratação de analistas para o Tapajós, onde o
ICMBio precisa hoje fazer uma avaliação positiva para que sejam
autorizados os empreendimentos das hidrelétricas lá. Eu não consigo
entender como o Estado se lança a outro empreendimento sem responder
pelo que está acontecendo aqui. Eu te falo isso porque você me pergunta
como é possível a Defensoria Pública não estar aqui. Para mim, isso não é
um susto, porque eu estou acompanhando outras instituições
absolutamente indispensáveis no licenciamento de Belo Monte e totalmente
defasadas. E o ICMBio é uma prova disso.
E os gestores que têm aqui do
ICMBio são extremamente atuantes. Mas, sozinhos, eles não dão conta.
Como é possível uma pessoa responder pelos três milhões de hectares da
estação ecológica? E sem nenhum apoio? O que eu posso dizer é que, nas
investigações que fizemos aqui com relação à Belo Monte, a realidade é a
ausência do Estado. Num mundo em que tudo é possível, a gente consegue
viver com uma realidade em que 8 mil famílias vão ser reassentadas sem
que a Defensoria Pública da União tivesse sido acionada para vir para
Altamira. Belo Monte é o mundo em que o inacreditável é possível.
Voltando ao início dessa entrevista, qual é a analogia que a
senhora faz entre os estudos de Hannah Arendt sobre os totalitarismos e
essa descrição que a senhora fez até aqui sobre o processo de Belo
Monte?
A mineradora canadense Belo Sun prenuncia um ciclo de exploração dos
recursos naturais da Amazônia em escala industrial, sobrepondo impactos
na região
Santi – Vai ficando mais claro, né? Quando eu
coloquei para você que a Lei está suspensa, ou seja, as regras, os
compromissos assumidos, as obrigações do licenciamento, na verdade eu
pensava no Estado de Exceção. Eu entendo que essa realidade que eu
descrevo é a realidade de um Estado de Exceção.
Mas, como é possível que tudo seja possível?
Santi – Quando você assiste ao governo se lançar a
um novo empreendimento, desta vez no Tapajós, com outro impacto brutal,
sem responder pelo passivo de Belo Monte, o que vem à mente? E a gente,
nesse dia a dia de Belo Monte, assistindo a esse impacto, assistindo ao
desmatamento, assistindo à questão dos indígenas, ao sofrimento da
população local, assistindo às pessoas morrendo porque o hospital está
superlotado, assistindo aos indígenas completamente perdidos... E então a
gente vê o governo se lançar a um novo empreendimento. A pergunta que
vem é essa: como é possível? Belo Monte não acabou.
Quando, um ano
atrás, a então presidente da Funai (Maria Augusta Assirati) deu uma
entrevista (à BBC Brasil) falando de Belo Monte, ela disse a seguinte
frase: "Nenhum dos atores envolvidos estava preparado para a
complexidade social, étnica e de relações públicas que foi Belo Monte”.
Quando eu leio uma frase como essa, e a gente assiste ao governo
brasileiro usar Belo Monte como campanha política na época das eleições,
e se lançar a um novo empreendimento, eu me pergunto: o que dizer a um
governo que diz que não estava preparado para Belo Monte? Belo Monte não
acabou. Se você tem responsabilidade, a sua responsabilidade não acaba
porque a tragédia aconteceu. Ou seja, o passivo de Belo Monte, no Xingu,
fica, e o governo vai começar uma nova empreitada no Tapajós? E qual é a
prova de que essa nova empreitada não vai causar um passivo como este? A
prova tem que ser feita aqui em Belo Monte.
A Funai tem que estar
estruturada aqui. As terras têm que estar protegidas aqui. A população
tem que ter sido removida com dignidade aqui. Então, quando você me
pergunta de Hannah Arendt, eu lembro dessa frase da presidente da Funai.
Quando Arendt conclui o julgamento do nazista (em seu livro “Eichmann
em Jerusalém”), ela diz o seguinte: “Política não é um jardim de
infância”. E ela estava analisando o genocídio. Eu não tenho dúvida de
dizer que aqui a gente está analisando um etnocídio, e política não é um
jardim de infância. Então, a ação do Ministério Público aqui é a de
responsabilizar, até onde for possível. Um dia essas ações vão ser
julgadas. Belo Monte um dia será julgada.
A maioria das ações que o Ministério Público Federal está
propondo, há anos, esbarram nos presidentes dos tribunais. Por quê? Qual
é a sua hipótese?
Santi – Belo Monte é uma obra “sub judice”. Vai ser
julgada pelo Supremo Tribunal Federal. São 22 ações, com conteúdos
extremamente diversificados. A postura do Poder Judiciário de que o
fundamento jurídico, o mérito da ação, fique suspenso de análise com
base na decisão política, que é a suspensão de segurança, é uma decisão
que não precisa de respaldo na Lei, ela busca respaldo nos fatos. A
suspensão de segurança é um mecanismo extremamente complicado, porque
ele abre o Direito.
Acho que é importante aqui fazer um parêntese para explicar
aos leitores que o mecanismo jurídico de “suspensão de segurança” é um
resquício da ditadura. Ele impede qualquer julgamento antecipado de uma
ação, que poderia ser pedido por conta da urgência, da relevância e da
qualidade das provas apresentadas. É concedido pela presidência de um
tribunal, que não analisa o mérito da questão, apenas se limita a
mencionar razões como “segurança nacional”. Assim, quando o mérito da
ação é finalmente julgado, o que em geral leva anos, uma obra como Belo
Monte já se tornou fato consumado. Quais são as justificativas para o
uso de suspensão de segurança em Belo Monte?
Numa sociedade de consumo, desde que se preserve o eu hegemônico de cada um, a morte cultural de um povo não dói
Santi – Em Belo Monte as justificativas são a
necessidade da obra, o prazo, o cronograma, os valores, o quanto custa
um dia de obra parada ou a quantidade de trabalhadores que dependem do
empreendimento. Com esses fundamentos muito mais fáticos, empíricos e
políticos, o mecanismo da suspensão de segurança permite a suspensão da
decisão jurídica liminar que se obtém nas ações judiciais. E, com isso,
as decisões acabam perdendo a capacidade de transformação. Com uma
ressalva com relação à Belo Monte: as pessoas de direito privado não
podem requerer a suspensão de segurança. A Norte Energia não poderia
pedir. Quem faz isso, então, é a Advocacia Geral da União, que atua ao
lado da Norte Energia nas ações judiciais. Ainda, a interpretação desse
mecanismo vem permitindo que ele se sobreponha a todas as decisões – e
não apenas as liminares – até o julgamento pela instância final. É um
mecanismo que tem previsão legal, mas é um mecanismo extremamente
complicado, porque pode se sustentar em fatos. E o Direito que se
sustenta em fatos é o Direito que se abre ao mundo em que tudo é
possível.
O Ministério Público Federal não questiona a opção política do
governo por Belo Monte, mas questiona o devido processo de
licenciamento. A gente questiona a legalidade, não a legitimidade dessa
opção. Mas o fato é que essa legitimidade é obtida sem o espaço de
diálogo. E hoje eu realmente acho que a sociedade deveria refletir e
discutir essa opção de interferência nos rios da Amazônia. Nós já
sabemos o impacto que o desmatamento vem causando, a gente sabe o valor
da água, a gente sabe o valor da Amazônia. Por isso, entendo que essas
decisões que podem se sustentar em fatos são perigosas para o Estado
democrático de Direito, já que os fatos nem sempre têm respaldo
democrático.
Na sua opinião, com tudo o que a senhora tem testemunhado, qual será o julgamento de Belo Monte no futuro?
Santi – Ah, eu acho que essa pergunta é um pouco
complicada. Sinceramente, eu acho que essa questão da legitimidade de
Belo Monte tem que ser discutida num debate público. Eu me coloco como
procuradora da República. Estou falando da minha leitura jurídica desse
processo. Agora, se perguntar para a Thais, pessoa, o que ela acha que
vai acontecer com Belo Monte, eu te diria que há perguntas que precisam
ser feitas. Será que o modo de vida dessa região poderia ser suportado
por outras fontes de energia?
Eu não tenho dúvida que sim. Na região,
quem precisa de Belo Monte são as indústrias siderúrgicas, e uma
mineradora canadense (Belo Sun) que vai se instalar e extrair ouro em
escala industrial, na região de maior impacto de Belo Monte. Então, quem
depende dessa energia é essa empresa e outras que virão. E isso é uma
coisa que tem me assustado muito com relação à Belo Monte. Uma das
consequências de Belo Monte é essa possibilidade de extração de recursos
minerais em escala industrial na Amazônia. E a disputa por esses
recursos já começou. Fico extremamente preocupada com a possibilidade de
instalação de um empreendimento minerário desse porte na região do
epicentro de impacto de Belo Monte, sem que tenha sido feito o estudo do
componente indígena e sem a avaliação do Ibama. Vai haver ali uma
sobreposição de impactos.
É bem séria e controversa, para dizer o mínimo, a instalação
dessa grande mineradora canadense, Belo Sun. Qual é a situação hoje?
Santi – Esse projeto minerário prenuncia um ciclo de
exploração dos recursos naturais da Amazônia em escala industrial, que
se tornará viável com Belo Monte. É também o prenúncio de um grave
risco. De que grandes empreendimentos venham sobrepor seus impactos aos
da hidrelétrica, sem a devida e competente avaliação. Com isso, os
impactos de Belo Monte acabam por se potencializar a uma dimensão
extraordinária. E o pior, as ações mitigatórias indispensáveis ao
atestado de viabilidade da hidrelétrica perigam perder a eficácia, caso
não haja um cauteloso controle de sobreposição de impactos. Se a geração
de energia por Belo Monte depende do desvio do curso do rio Xingu, e a
viabilidade da hidrelétrica para os povos indígenas da região depende de
um robusto monitoramento para que se garanta a reprodução da vida no
local, como um projeto de alto impacto localizado no coração do trecho
de vazão reduzida do rio Xingu pode obter atestado de viabilidade sem
estudos de impacto sobre os povos indígenas?
E, se quem licencia Belo
Monte é o Ibama, que é o órgão federal, e quem tem atribuição
constitucional de proteger os povos indígenas é a União, como esse
licenciamento poderia tramitar perante o órgão estadual? São essas
questões que o Ministério Público Federal levou ao Poder Judiciário,
sendo que hoje há uma sentença anulando a licença emitida, até que se
concluam os estudos sobre os indígenas. Decisão que está suspensa até
que seja julgado o recurso da Belo Sun pelo Tribunal Regional Federal em
Brasília. Há também uma decisão recente impondo ao Ibama que participe
de todos os atos desse licenciamento perante o órgão estadual. Mas,
quando você me pergunta o que vai ser Belo Monte no futuro, acho que a
grande questão de Belo Monte vai ser: para quem Belo Monte? Por que Belo
Monte?
Há uma caixa preta em Belo Monte?
Hannah Arendt lia os estados totalitários. Ela lia o mundo do genocídio judeu. É possível ler Belo Monte da mesma maneira
Santi – As questões nebulosas de Belo Monte, o fato
de a obra ser uma prioridade absoluta, são questões que a História vai
contar, e eu espero que conte rápido.
Como é viver em Altamira, no meio de todos esses superlativos?
Santi – Na verdade, a realidade me encanta. Mesmo
trágica. Entende? Por mais que a gente tenha vontade de chorar, ela é
impressionante. Eu me surpreendo a cada dia com as coisas que acontecem
aqui, seja pelo tamanho das áreas, já que estamos falando de milhões de
hectares, de grilagem de terra de 200 mil hectares, de desmatamento de 1
mil hectares. Tudo é da ordem do inimaginável. Então eu acabo tendo
muito essa posição de uma intérprete da realidade. Quando eu decidi
ficar em Altamira, algumas pessoas falaram: “Nossa, parabéns pelo ato de
desprendimento!”. Mas, para mim, ficar em Altamira é um privilégio.
Conhecer as populações tradicionais é um privilégio. Poder receber um
cacique, aqui, é um privilégio.
Então, a minha relação com Altamira é de
que cada dia eu me curvo mais. Quando eu falo "eu me curvo mais" é no
sentido de ficar mais humilde diante das pessoas daqui. Há um momento do
dia em que o sol provoca uma espécie de aura dourada na Volta Grande do
Xingu. Eu vou ao rio porque eu quero ver isso. E cada dia é diferente.
Ele nunca está igual. Quando eu vejo o rio, eu só tenho a agradecer a
possibilidade de ele existir. É como esses índios, como esses
ribeirinhos. Obrigada por serem diferentes, por me mostrar um mundo
diferente do que eu estava acostumada em Curitiba. Eu acho tão bonito o
menino que toma banho no barril, aí a mãe penteia o cabelinho dele pro
lado, coloca ele na garupa da bicicleta, e leva ele na bicicleta. Eu
adoro ver...
Eu adoro observar. No meu dia a dia eu vivo esse
encantamento pela região, sabendo que daqui pra lá a gente tem uma
floresta que atravessa a fronteira do Brasil e que é maravilhosa. E que é
o que, no futuro, vai ser a coisa mais valiosa. Como eu trabalho com a
questão de Belo Monte, me vem no fundo esse sentimento de tristeza por
conhecer a audácia do homem de mexer naquilo, de desviar esse rio.
Quando a encontrei numa reserva extrativista, dias atrás, a
senhora brincou que sentia um pouco de inveja dos ribeirinhos. Como é
isso?
Santi – É que eu acho que o trabalho deles é mais
importante do que o meu. Eu realmente acho. Se você tem um olhar para o
outro como se ele fosse um pobre, como se fosse um desprovido, a nossa
atuação é muito limitada. Hoje eu tenho um olhar para eles de que eu
tenho o direito de que eles continuem vivendo assim. Porque eles
conhecem uma alternativa. Então, eu hoje sinto que é um direito nosso,
do mundo de cá, e não só deles.
É essa a dimensão que eu te falo. Eu
agora reescrevo e recompreendo o meu trabalho, porque ele ganha uma
outra dimensão sob essa perspectiva. Ou seja: o Ministério Público
protege as populações indígenas e tradicionais não só porque elas têm
direitos, mas também porque é importante para o conjunto da sociedade
que o modo de vida delas continue existindo. Elas têm o direito de se
desenvolver a partir delas mesmas, e não segundo o que a gente acha que é
bonito. E nós, nossos filhos, precisamos desse outro modo de vida,
precisamos que vivam assim. Por isso, também, o processo de Belo Monte
com relação aos indígenas é tão doloroso.
A senhora mencionou que seria importante que a sociedade
fizesse um debate público sobre a interferência do Estado nos rios da
Amazônia. Por que a senhora acha que a sociedade não está fazendo? Ou,
dito de outro modo: por que as pessoas não se importam?
Santi – Essa é a pergunta mais difícil. Acho que a
Amazônia não interessa só ao Brasil, interessa para o mundo todo. E esse
impacto tem que ser discutido até a última possibilidade das fontes
alternativas. O que eu quero dizer é: se a política do governo se
sustenta numa legitimidade que depende da aceitação popular com relação à
utilização dos rios da Amazônia como fonte geradora de energia, esse
debate tem que ser feito. E hoje eu acredito que é um momento
importante, porque o Brasil está vivendo a falta de água. E essa falta
de água está sendo relacionada ao desmatamento da Amazônia. E o
desmatamento da Amazônia aumentou, a gente sabe disso.
As pessoas vêm
aqui relatar o que está saindo de caminhão com madeira. É um relato que
já é público, e o Brasil tem hoje, talvez, o bem mais precioso do mundo,
que é a Amazônia. É por isso que esse debate é importante, porque tem
que ser dada à população o espaço mais livre possível de debate, de
diálogo, sobre o que se pretende fazer com seu bem mais precioso. Com o
risco, inclusive, de que seja tirado dela. Por isso que é realmente
importante que se discuta isso. Acho que quando eu não vivia aqui, eu
não tinha a dimensão. A gente sabe de longe, mas eu não tinha a dimensão
do que estava acontecendo. É muito grande. Primeiro tira a madeira mais
nobre, aí desmata, aí vem o gado. Inclusive a carne...
Eu não como
carne há muitos anos. Eu já tinha uma opção por ser vegetariana. Mas,
agora, depois que eu vejo o que precisa para criar um boi, e o quanto
isso interfere na região amazônica, eu não tenho coragem de comer carne.
Carne, para mim, vem com a imagem daquele tronco que está saindo daqui.
Eu sofro por ver o tamanho das toras de madeira que saem daqui. Sofro.
Dói ver. Eu sofro de deixar o meu lixo aqui. Porque eu sei que Altamira
não tem reciclagem. Eu levo meu lixo embora, eu não deixo o meu lixo
aqui.
Leva de avião?
Santi – Eu levo meu lixo para ser reciclado em
Curitiba. Porque a gente vive na fronteira da Amazônia, numa região em
que a questão do lixo é extremamente complicada, e realmente tem que ter
coragem para jogar, eu não consigo. Uma vez eu li um livro que se chama
"Os Cidadãos Servos", de Juan Ramón Capella. E eu lembro que esse livro
falava o seguinte: que as pessoas apertam a descarga do banheiro e têm a
sensação de que estão limpando a sua casa. E, quando você aperta a
descarga, na verdade você está sujando o mundo.
Então, eu tenho essa
sensação muito forte de que, quando eu coloco o meu saco de lixo na rua,
em vez de fazer uma composteira, eu estou sujando o mundo, eu estou
sujando a minha casa, porque a minha casa é o mundo. Acho que o debate
em torno da Amazônia passa por isso. Por um debate em torno desse
individualismo, da forma como as pessoas vivem centradas no consumismo,
no que as pessoas buscam, que está desconectado do outro e está
desconectado do mundo.
Para mim é muito claro que a minha casa não acaba
na porta da minha casa, a minha responsabilidade pelo mundo não acaba
na porta do meu universo individual. Não é razão, é um sentimento de que
a casa das pessoas está aqui, também. Nesse contexto em que a gente
vive, as pessoas têm uma preocupação com o eu, com a beleza, com a
estética, com o consumo. Então é muito difícil ter um debate público em
torno das questões ambientais. É uma marca de uma época, mesmo. E há
outra questão que eu acho mais forte ainda, e que me assusta mais em
Belo Monte. Daí eu vou te explicar com um pouquinho de calma... Não vai
acabar nunca a entrevista!
Fica tranquila...
Santi – Eu acho o seguinte. Eu já falei que vejo
Belo Monte como um etnocídio. Quando a Hannah Arendt estuda os regimes
totalitários, ela faz uma descrição do nazismo, ela faz uma descrição da
política de Hitler que é muito interessante. O Hitler afirmava que
tinha descoberto uma lei natural, e que essa lei natural era uma lei da
sobreposição de uma raça, de um povo sobre o outro. Os judeus seriam um
obstáculo que naturalmente seria superado por essa lei natural.
Quando
eu digo que os estudos de Belo Monte identificaram um processo de
desestruturação dos povos indígenas da região, que já tinha começado com
a Transamazônica, e que Belo Monte só acelera esse processo, me vem
essa imagem de Hannah Arendt dizendo que Hitler apenas descobriu uma
forma de acelerar o processo de uma lei natural que ele afirmava ter
descoberto. E aqui, o que Belo Monte faz a esse processo de
desestruturação iniciado com a Transamazônica é acelerá-lo a um ritmo
insustentável para os indígenas. E talvez seja essa a justificativa para
as suspensões das decisões judiciais, e de a Lei não se aplicar aqui.
O
que me assusta é a forma como a sociedade naturaliza esse processo com
uma visão de que é inevitável que os indígenas venham a ser assimilados
pela sociedade circundante, pela sociedade hegemônica. E aceitar que
Belo Monte vai gerar a perda de referências e conhecimentos tradicionais
com relação à Amazônia, a perda de outras formas de ver o mundo que
poderiam ser formas de salvação, mesmo, do futuro. Então, esse processo
de etnocídio é naturalizado e, por ser naturalizado, não dói para as
pessoas. Não dói o fato de os índios estarem morrendo. Numa sociedade de
consumo, desde que não se perca o eu hegemônico de cada um, a morte
cultural de um povo não dói. Então, o que eu sinto é isso: é
extremamente assustador a forma como a sociedade aceita esse processo.
É por isso, afinal, porque a maioria da população brasileira
não se importa com a morte cultural dos povos indígenas, e mesmo com a
morte física, nem se importa com a morte da floresta, que Belo Monte é
possível apesar de atropelar a Lei?
Santi – Em última instância, as decisões judiciais
também têm o respaldo da sociedade. Se essas suspensões de segurança
causassem uma reação muito forte, elas não teriam legitimidade. Por que o
silêncio? Como a sociedade aceita a não garantia dos direitos dos povos
indígenas? Aceita porque naturaliza esse processo, que é um processo
totalitário. É um processo em que o eu único, o todo, prevalece sobre o
diferente. E que você não é capaz de olhar o diferente com respeito,
como algo que é diferente de você, do seu eu. Isso é uma realidade,
mesmo, que a gente está vivendo, de dificuldade para os povos indígenas,
para as populações tradicionais, para essas culturas diferentes se
manterem. Mesmo que hoje exista uma série de garantias fundamentais, de
ordem internacional, na Constituição Federal, é muito difícil. E é por
isso que aqui, no Brasil, quem dá a palavra sobre isso é o Supremo
Tribunal Federal. E o Supremo tem que fazer isso, pela leitura da
Constituição. Então um dia isso vai ser julgado. Um dia o Plano
Emergencial vai ser julgado pelo Supremo. Um dia a forma como os índios
não foram ouvidos nesse processo vai ser julgada pelo Supremo.
Mas aí o fato já está consumado.
Santi – É, esse é o problema. É o fato que a cada dia se consuma.
A senhora se sente impotente diante de Belo Monte, desse fato
que se consuma apesar de todo o esforço, de todas as ações, e sem o
apoio da sociedade, que se omite?
Santi – Acho que o Ministério Público Federal não é
impotente. Mas eu penso que hoje, sozinho, apenas pela via do poder
judiciário, o Ministério Público Federal não consegue fazer com que a
Lei se aplique aqui. Belo Monte é um desafio ao Estado de Direito. Acima
de tudo, acredito que a história tem que ser contada. E o que o
Ministério Público Federal vem fazendo aqui em Altamira é a história
viva de Belo Monte. E aí, eu diria: o Ministério Público não silencia.
Não sei o que a História vai dizer de Belo Monte. Mas, o que eu posso
dizer é que o Ministério Público Federal não silenciou.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: elianebrum.com Email: