Old Blue, um macho e um neozelandês intrometido
Por Giuliana Ferrari
- segunda-feira, 26 setembro 2016 23:16
Don Merton e Old Blue
Há três possibilidades quando alguém ouve o nome “Nova Zelândia”. Se
você for um aficionado por esportes radicais, aparecem na mente imagens
de paraquedismo e pontes altíssimas para
bungee jumping.
Se
você for um fã inveterado de Senhor dos Anéis, como a autora desta
crônica, Nova Zelândia é o cantinho da Terra Média que sobreviveu ao
rápido desenvolvimento urbano do restante do mundo, conservada em algum
lugar da Ilha Sul, perdida entre as montanhas de gelo, lagos
estonteantes e colinas verdes repletas de ovelhas. Mas se você for um
ecólogo conservacionista, a Nova Zelândia é um dos exemplos máximos de
como conhecimento científico pode salvar uma espécie.
Quando se discute reintroduções, neozelandeses literalmente
escreveram o livro sobre esse assunto, lançado pela primeira vez com o
título “Reintroduction Biology” por Doug Armstrong, Kevin Parker e John
Ewen. Apesar do primeiro ser canadense e o terceiro, britânico, os três
se tornaram conhecidos trabalhando com espécies reintroduzidas nas
pequenas ilhas costeiras do território neozelandês.
Os três homens, com os quais tive a sorte de trabalhar, só tinham
boas palavras para falar de Don Merton. Entre outros feitos, Merton foi a
pessoa que descobriu o
comportamento de lekking no
kakapo,
um psitacídeo (aves que se parecem com papagaios) e uma das espécies
mais emblemáticas da Nova Zelândia (para mais informações sobre esses
pássaros não-voadores incríveis, leia
“As duas vidas de Richard Henry e a salvação do Kakapo”, de Bernardo Araujo).
Merton nasceu no dia 22 de fevereiro de 1939 em Devonport, uma
pequena cidade anexa Auckland, a maior cidade neozelandesa. Ainda
criança, Don e seus dois irmãos mais velhos foram bem-sucedidos em
cuidar de um tentilhão-dourado selvagem que havia ficado órfão nas
redondezas da casa de sua avó. Trinta e cinco anos depois, Merton usaria
essa experiência para salvar o Chatham Island Black Robin, à época a
ave mais ameaçada do mundo.
O
black robin (de nome científico
Petroica traversi)
é um pequeno passarinho do tamanho de um pardal, assim chamado devido a
sua homogênea penugem preta. O bico, também preto, é curto e serve para
se alimentar exclusivamente de insetos no chão da floresta, apoiado em
galhos baixos ou dando pulinhos curtos por entre as folhas caídas.
Ao
contrário do seu primo NI robin
Petroica longipes, o , o robin
preto tem capacidade de voo reduzida, o que o deixou ainda mais
vulnerável aos predadores que invadiram seu território (principalmente
arminhos, doninhas e
ratos). O North Island robin é um passarinho com uma extensa distribuição na Ilha Norte da Nova Zelândia, enquanto o
black robin estava presente apenas em poucas ilhas do
Chatham Islands, um pequeno arquipélago a 800km da costa leste neozelandesa.
Um exemplar juvenil de black robin, descendo um dos declives da ilha Little Mangere,
Chattam Islands. Foto: Don Merton
Os fatores que deixaram o black robin em tão precária situação,
infelizmente, são comuns: perda de habitat por degradação antrópica e
predação por mamíferos
exóticos
introduzidos pelo homem. Antes uma terra pristina que continha apenas
duas espécies de mamíferos nativos (morcegos pequenos que se alimentavam
principalmente de frutas), com a chegada dos colonizadores, primeiro os
polinésios, e, depois, os europeus, a Nova Zelândia tornou-se um
terreno perigoso para seus pássaros, que evoluíram durante milhares de
anos na ausência de predadores terrestres. Eles passaram rapidamente a
ser mortos por ratos, gatos, arminhos, doninhas e até cachorros, no caso
de espécies maiores como os
kiwis.
É importante lembrar que em ilhas isoladas como Havaí e Nova Zelândia,
as espécies locais, em sua maioria aves, não têm defesas adequadas
contra mamíferos predadores simplesmente porque não evoluíram em
conjunto com eles, um fenômeno conhecido em ecologia como "ingenuidade
insular". Se você pensa que um passarinho é bobo por ficar cantando
despreocupadamente enquanto um gato o observa, pronto para dar o bote,
pense que você não fugiria de um leão se não soubesse que ele é um
poderoso predador. Talvez ficasse parado, observando aquele curioso
animal se aproximando, sem se dar conta que o plano de almoço seria
você.
Missão quase impossível
"Don
havia visto a destruição de biodiversidade no Grande Cabo do Sul, e
garantiu que aquilo não se repetiria em Mangere. Juntos, Old Blue e Don
Merton iriam mandar uma mensagem ao mundo: a situação pode ser terrível,
mas esperança e determinação podem revertê-la."
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Vinte anos antes, Don Merton havia chegado na Ilha Grande Cabo do
Sul, alguns quilômetros ao oeste da Ilha Sul neozelandesa. Ele estava
encarregado de trabalhar com os
saddlebacks, passariformes de
penugem escura com uma “sela” marrom-alaranjada nas costas. Além dessa
espécie, mais duas estavam confinadas à Ilha (eram únicas no mundo).
Rattus rattus,
o rato comum, conseguiu invadir a Ilha nadando até terra firme e as
extinguiu; se não fosse pelo time de Don Merton, teria dizimado a
espécie de
saddlebacks também. Don ficou marcado pela dolorosa experiência de presenciar duas extinções globais.
Arminhos e roedores são pestes na Nova Zelândia, e ao serem
introduzidos (intencionalmente ou por acidente) nas Ilhas Chatham, esses
predadores encontraram nos despreocupados black robins um banquete. Em
1980, a situação da espécie era crítica. Quando Merton chegou à ilha, a
estimativa era de restarem apenas 30 indivíduos. Enquanto tentavam
bolar um plano de resgate, uma contagem na Ilha Pequena Mangere, a única
onde estes pássaros também existiam, revelou míseros 5 indivíduos.
Parecia a vez do robin preto de desaparecer da face da Terra.
A missão de Don parecia impossível: salvar uma espécie cuja única
fêmea reprodutora recebera o nome de Old Blue (por ser marcada com uma
única anilha azul na perna), pois sua avançada fazia duvidar de que ela
pudesse gerar filhotes saudáveis. Mas Don havia visto a destruição de
biodiversidade no Grande Cabo do Sul, e garantiu que aquilo não se
repetiria em Mangere. Juntos, Old Blue e Don Merton, este já com cabelos
brancos, iriam mandar uma mensagem ao mundo: a situação pode ser
terrível, mas esperança e determinação podem revertê-la.
Primeiro, Merton resgatou a pequena população de robins pretos
confinados em um trecho íngreme da Ilha. Isso significou escalar
rochedos com caixas e demais equipamentos pesados nas costas. Após
capturarem os animais, as caixas tornavam-se carga preciosíssima. Os
pesquisadores desciam um alto paredão com os únicos indivíduos de uma
espécie. Eles jamais devem ter esquecido aquela tarde.
Caixa de ninho dedicada a Old Blue, em Mangere Islands. Foto: Alan Tennyson
As ondas castigavam o paredão e o vento parecia soprar de todas as
direções. O Sol brilhava nas pernas descobertas dos pesquisadores, que
vestiam casacos de lã ou linho por cima das blusas, uma tentativa de
manter o corpo aquecido sob o frio ensolarado neozelandês. Don ainda
teve tempo de sacar sua câmera e tirar uma foto do rapaz encarregado de
transportar metade da população do black robin nas costas.
Esta foto até
hoje é utilizada em cursos sobre ecologia e conservação nas
universidades neozelandesas. Ao levar os indivíduos para a Ilha Mangere,
cujo habitat era maior e mais adequado à espécie, Merton percebeu que
havia um único casal reprodutivo viável: Old Blue e Old Yellow. Fotos
mostram Merton “conversando” com sua Blue, que não deve ter entendido
aquela intensa atenção, alheia ao fato de ser a última esperança de sua
espécie.
A aposta funcionou e as primeiras ninhadas de Old Blue vingaram, mas
um novo problema surgiu: se ela fosse cuidar de seus filhotes, nem todos
sobreviveriam. Aves geralmente colocam mais ovos do que o número de
indivíduos que irão sobreviver às condições naturais. Mesmo que a
maioria de seus filhotes sobrevivessem, Old Blue só poderia ter outras
ninhadas na próxima estação reprodutiva, o que para passariformes é em
geral entre primavera e verão de cada ano. E havia urgência da população
crescer.
Merton estabeleceu uma nova tática: os filhotes do casal seriam criados por adultos de uma espécie similar, o
Petroica macrocephala, ou
tomtit.
Tomtits ajudaram a elevar rapidamente o número de black robins, já que
Old Blue e, posteriormente, suas filhas, netas e bisnetas que chegavam à
idade adulta eram estimuladas a colocar mais ovos quando estes eram
levados para serem cuidados por “pais adotivos”.
Em Mangere, notou-se a permanência de
alelos
deletérios na população de black robins. No processo, a espécie sofreu
um intenso gargalo populacional, pois todos os indivíduos existentes
hoje são originários do primeiro casal, Old Blue e Old Yellow. Essa
situação é conhecida em ecologia como “bottleneck” (gargalo). O maior
dos problemas foi a fixação de um gene mal adaptativo, o qual impelia as
fêmeas a empurrarem seus ovos para a borda do ninho.
No início do
programa, pesquisadores iam até os ninhos e empurravam os ovos de volta,
pois o objetivo claro era aumentar a população o mais rápido possível e
tirá-la da situação extremamente vulnerável em que se encontrava. De
uns tempos para cá, no entanto, a intervenção humana nos ninhos foi
interrompida para que este gene fosse extirpado na população, já que
fêmeas com este comportamento não conseguiriam ter filhotes.
Merton trabalhou até uma idade avançada, sempre com a “animação e
energia de ecólogos com metade de sua idade”, como descreveria Carl
Jones em 2011. Hoje, sobrevivem cerca de 250 indivíduos de black robins
na natureza em Chattam Islands: nas ilhas Mangere e Cabo Sul.
Old Blue
faleceu depois de incríveis 14 anos, cercada de seus descendentes. A
fêmea daquele primeiro casal produziu centenas de passarinhos. A média
de expectativa de vida destes pássaros é de apenas quatro anos, embora
alguns sobrevivam de 6 a 13 anos. Merton tornou seu trabalho de
recuperação da espécie especialmente eficiente com o uso de técnicas de
manejo intensivo. A extensa documentação do projeto permitiu replicar em
outros projetos idéias que tiraram os robins da beira da extinção. Foi o
caso dos pássaros
kakapo e o
takahe.
Em 11 de abril de 2011, aos 72 anos, foi a vez do mundo se despedir
de Don Merton, após longa batalha contra um câncer. Com quase 50 anos de
carreira, Don semeou as raízes do que é hoje o trabalho intensivo em
recuperar espécies ameaçadas de extinção na Nova Zelândia, e seu
conhecimento foi usado em situações semelhantes nas Seychelles, Ilhas
Maurício e no leste da Austrália.
Com o avanço das ações antrópicas e
perdas irreparáveis de habitat, muitas outras espécies estarão ameaçadas
de extinção no futuro. Se conseguiremos salvá-las ou não, é uma
incógnita. Mas se hoje sabemos como manejar essas espécies,
definitivamente podemos agradecer à incrível história de Don Merton e a
pequena Old Blue.