por
Clipping · 06/10/2014
Professor Altair Sales da PUC de Goiás, uma das maiores
autoridades sobre o tema, diz que destruição do bioma é irreversível e
que isso compromete o abastecimento de água potável em todo o País
“O Cerrado está extinto e isso leva ao fim dos rios e dos
reservatórios de água”, é o título da entrevista com o cientista e
pesquisador Altair Sales Barbosa concedida ao jornalista Elder Dias,
publicada pelo Jornal Opção e aponta para a origem da crise da água no
Brasil.
Uma ilha ambiental em meio à metrópole está no Campus 2 da
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás). É lá o local
onde Altair Sales Barbosa idealizou e realizou uma obra que se tornou
ponto turístico da capital: o Memorial do Cerrado, eleito em 2008 o
local mais bonito de Goiânia e um dos projetos do Instituto do Trópico
Subúmido (ITS), dirigido pelo professor.
Foi lá que Altair, um dos mais profundos conhecedores do bioma
Cerrado, recebeu a equipe do Jornal Opção. Como professor e pesquisador,
tem graduação em Antropologia pela Universidade Católica do Chile e
doutorado em Arqueologia Pré-histórica pelo Museu Nacional de História
Natural, em Washington (EUA). Mais do que isso, tem vivência do
conhecimento que conduz.
É justamente pela força da ciência que ele dá a notícia que não
queria: na prática o Cerrado já está extinto como bioma. E, como reza o
dito popular, notícia ruim não vem sozinha, antes de recuperar o fôlego
para absorver o impacto de habitar um ecossistema que já não existe,
outra afirmação produz perplexidade: a devastação do Cerrado vai
produzir também o desaparecimento dos reservatórios de água, localizados
no Cerrado, o que já vem ocorrendo — a crise de abastecimento em São
Paulo foi só o início do problema.
Os sinais dos tempos indicam já o
começo do período sombrio: “Enquanto se está na fartura, você é capaz
de repartir um copo d’água com o irmão; mas, no dia da penúria,
ninguém repartirá”, sentencia o professor.
“Memorial do Cerrado” – o nome deste espaço de preservação
criado pelo Sr. aqui no Campus 2 da PUC Goiás, é uma expressão pomposa.
Mas, tendo em vista o que vivemos hoje, é algo quase que tristemente
profético. O Cerrado está mesmo em vias de extinção?
Para entender isso é preciso primeiramente entender o que é o Cerrado.
Dos ambientes recentes do planeta Terra, o Cerrado é o mais antigo. A
história recente da Terra começou há 70 milhões de anos, quando a vida
foi extinta em mais de 99%. A partir de então, o planeta começou a se
refazer novamente.
Os primeiros sinais de vida, principalmente de
vegetação, que ressurgem na Terra se deram no que hoje constitui o
Cerrado. Portanto, vivemos aqui no local onde houve as formas de
ambiente mais antigas da história recente do planeta, principalmente se
levarmos em consideração as formações vegetais. No mínimo, o Cerrado
começou há 65 milhões de anos e se concretizou há 40 milhões de anos.
O Cerrado é um tipo de ambiente em que vários elementos vivem
intimamente interligados uns aos outros. A vegetação depende do solo,
que é oligotrófico [com nível muito baixo de nutrientes]; o solo depende
de um tipo de clima especial, que é o tropical subúmido com duas
estações, uma seca e outra chuvosa. Vários outros fatores, incluindo o
fogo, influenciaram na formação do bioma – o fogo é um elemento
extremamente importante porque é ele que quebra a dormência da maioria
das plantas com sementes que existem no Cerrado.
Assim, é um ambiente que depende de vários elementos. Isso
significa que já chegou em seu clímax evolutivo. Ou seja, uma vez
degradado não vai mais se recuperar na plenitude de sua biodiversidade.
Por isso é que falamos que o Cerrado é uma matriz ambiental que já se
encontra em vias de extinção.
Por que o Sr. é tão taxativo?
Uma comunidade vegetal é medida não por um determinado tipo de planta ou
outro, mas, sim, por comunidades e populações de plantas. E já não se
encontram mais populações de plantas nativas do Cerrado. Podemos
encontrar uma ou outra espécie isolada, mas encontrar essas populações é
algo praticamente impossível.
Outra questão: o solo do Cerrado foi degradado por meio da ocupação
intensiva. Retiraram a gramínea nativa para a implantação de espécies
exóticas, vindas da África e da Austrália. A introdução dessas
gramíneas, para o pastoreio, modificou radicalmente a estrutura do solo.
Isso significa que naquele solo, já modificado, a maioria das plantas
não conseguirá brotar mais.
Pasto de brachiaria no Brasil
Como se não bastasse tudo isso, o Cerrado foi incluído na política de
expansão econômica brasileira como fronteira de expansão. É uma área
fácil de trabalhar, em um planalto, sem grandes modificações
geomorfológicas e com estações bem definidas. Junte-se a isso toda a
tecnologia que hoje há para correção do solo.
É possível tirar a acidez
do solo utilizando o calcário; aumentar a fertilidade, usando adubos.
Com isso, altera-se a qualidade do solo, mas se afetam os lençóis
subterrâneos e, sem a vegetação nativa, a água não pode mais infiltrar
na terra.
Onde há pastagens e cultivo, então, o Cerrado está inviabilizado para sempre, é isso?
Onde houve modificação do solo a vegetação do Cerrado não brota mais. O
solo do Cerrado é oligotrófico, carente de nutrientes básicos. Quando o
agricultor e o pecuarista enriquecem esse solo, melhorando sua
qualidade, isso é bom para outros tipos de planta, mas não para as do
Cerrado. Por causa disso, não há mais como recuperar o ambiente
original, em termos de vegetação e de solo.
Mas o mais importante de tudo isso é que as águas que brotam do
Cerrado são as mesmas águas que alimentam as grandes bacias do
continente sul-americano. É daqui que saem as nascentes da maioria
dessas bacias. Esses rios todos nascem de aquíferos. Um aquífero tem sua
área de recarga e sua área de descarga.
Ao local onde ele brota,
formando uma nascente, chamamos de área de descarga. Como ele se
recarrega? Nas partes planas, com a água das chuvas, que é absorvida
pela vegetação nativa do Cerrado. Essa vegetação tem plantas que ficam
com um terço de sua estrutura exposta, acima do solo, e dois terços no
subsolo. Isso evidencia um sistema radicular [de raízes] extremamente
complexo. Assim, quando a chuva cai, esse sistema radicular absorve a
água e alimenta o lençol freático, que vai alimentar o lençol artesiano,
que são os aquíferos.
Quando se retira a vegetação nativa dos chapadões, trocando-a por
outro tipo, alterou-se o ambiente. Ocorre que essa vegetação introduzida
– por exemplo, a soja ou o algodão ou qualquer outro tipo de cultura
para a produção de grãos – tem uma raiz extremamente superficial.
Então, quando as chuvas caem, a água não infiltra como deveria. Com o
passar dos tempos, o nível dos lençóis vai diminuindo, afetando o nível
dos aquíferos, que fica menor a cada ano.
Fruto do buriti
As plantas do Cerrado são de crescimento muito lento.
Quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, os buritis que vemos hoje
estavam nascendo. Eles demoram 500 anos para ter de 25 a 30 metros.
Também por isso, o dano ao bioma é irreversível.
Qual é a consequência imediata desse quadro?
Em média, dez pequenos rios do Cerrado desaparecem a cada ano. Esses
riozinhos são alimentadores de rios maiores, que, por causa disso,
também têm sua vazão diminuída e não alimentam reservatórios e outros
rios, de que são afluentes.
Assim, o rio que forma a bacia também vê seu
volume diminuindo, já que não é abastecido de forma suficiente. Com o
passar do tempo, as águas vão desaparecendo da área do Cerrado. A água,
então, é outro elemento importante do bioma que vai se extinguindo.
Hoje, usa-se ainda a agricultura irrigada porque há uma pequena
reserva nos aquíferos. Mas, daqui a cinco anos, não haverá mais essa
pequena reserva. Estamos colhendo os frutos da ocupação desenfreada que o
agronegócio impôs ao Cerrado a partir dos anos 1970: entraram nas áreas
de recarga dos aquíferos e, quando vêm as chuvas, as águas não
conseguem infiltrar como antes e, como consequência, o nível desses
aquíferos vai caindo a cada ano. Vai chegar um tempo, não muito
distante, em que não haverá mais água para alimentar os rios. Então,
esses rios vão desaparecer.
Por isso, falamos que o Cerrado é um ambiente em extinção: não
existem mais comunidades vegetais de formas intactas; não existem mais
comunidades de animais – grande parte da fauna já foi extinta ou está em
processo de extinção; os insetos e animais polinizadores já foram, na
maioria, extintos também; por consequência, as plantas não dão mais
frutos por não serem polinizadas, o que as leva à extinção também. Por
fim, a água, fator primordial para o equilíbrio de todo esse
ecossistema, está em menor quantidade a cada ano.
Como é a situação desses aquíferos atualmente?
Há três grandes aquíferos na região do Cerrado: o Bambuí, que se formou
de 1 bilhão de anos a 800 milhões de anos antes do momento presente; os
outros dois são divisões do Aquífero Guarani, que está associado ao
Arenito Botucatu e ao Arenito Bauru que começou a se formar há 70
milhões de anos. O Guarani alimenta toda a Bacia do Rio Paraná: a maior
parte dos rios de São Paulo, de Mato Grosso, de Mato Grosso do Sul –
incluindo o Pantanal Mato-Grossense – e grande parte dos rios de Goiás
que correm para o Paranaíba, como o Meia Ponte. Toda essa bacia depende
do Aquífero Guarani, que já chegou em seu nível de base e está
alimentando insuficientemente os rios que dependem dele. Por isso, os
rios da Bacia do Paraná diminuem sua vazão a cada ano que passa.
Governo paulista diz que 1ª reserva do Cantareira pode zerar em 57 dias
Então, podemos ter nisso a explicação para a crise da água em São Paulo?
Exato. Como medida de urgência, já estão perfurando o Arenito Bauru –
que é mais profundo que o Botucatu, já insuficiente –, tentando retirar
pequenas reservas de água para alimentar o sistema Cantareira [o mais
afetado pela escassez e que abastece a capital paulista]. Mesmo se
chover em grande quantidade, isso não será suficiente para que os rios
juntem água suficiente para esse reservatório.
Assim como ocorre no Cantareira, outros reservatórios espalhados
pela região do Cerrado – Sobradinho, Serra da Mesa e outros – vão passar
pelo mesmo problema. Isso porque o processo de sedimentação no fundo do
lago de um reservatório é um processo lento. Os sedimentos vão formando
argila, que é uma rocha impermeável. Então, a água daquele lago não vai
alimentar os aquíferos. Mesmo tendo muita quantidade de água
superficial, ela não consegue penetrar no solo para alimentar os
aquíferos. Se não for usada no consumo, ela vai simplesmente evaporar e
vai cair em outro lugar, levada pelas correntes aéreas. Isso é outro
motivo pelo qual os aquíferos não conseguem recuperar seu nível, porque
não recebem água.
Geologicamente sendo o mais antigo, seria natural que o Cerrado fosse
o primeiro bioma a desaparecer. Mas isso em escala geológica, de
milhões de anos. Mas, pelo que o sr. diz, a antropização [ação humana no
ambiente] multiplicou em muitíssimas vezes esse processo de extinção.
Sim. Até meados dos anos 1950, tínhamos o Cerrado praticamente
intacto no Centro-Oeste brasileiro. Desde então, com a implantação de
infraestrutura viária básica, com a construção de grandes cidades, como
Brasília, criou-se um conjunto que modificou radicalmente o ambiente. A
partir de 1970, quando as grandes multinacionais da agroindústria se
apossaram dos ambientes do Cerrado para grandes monoculturas, aí começa o
processo de finalização desse bioma. Ou seja, o homem sendo responsável
pelo fim desse ambiente que é precioso para a história do planeta
Terra.
Em que o Cerrado é tão precioso?
De todas as formas de vegetação que existem, o Cerrado é a que mais
limpa a atmosfera. Isso ocorre porque ele se alimenta basicamente do gás
carbônico que está no ar, porque seu solo é oligotrófico.
Diz-se que o Cerrado é o contrário da Amazônia: uma floresta
invertida, em confirmação à definição que o Sr. deu sobre o fato de dois
terços de cada planta do Cerrado estarem debaixo da terra. Ou seja, a
destruição do Cerrado é muito mais séria do que alcança a nossa visão
com o avanço da fronteira agrícola. É uma devastação muito maior, porque
também ocorre longe dos olhos, subterrânea.
Isso faz sentido, porque, na parte subterrânea, além do sequestro de
carbono está armazenada a água, sem a qual não prospera nenhuma
atividade econômica. A Amazônia terminou de ser formada há apenas 3 mil
anos, um processo que começou há 11 mil anos, com o fim da glaciação no
Hemisfério Norte.
A configuração que tem hoje existe na plenitude só há 3
mil anos. A Mata Atlântica tem 7 mil anos. São ambientes que, se
degradados, é possível recuperá-los, porque são novos, estão em formação
ainda.
Já com o Cerrado isso é impossível, porque suas árvores já atingiram
alto grau de especialização. Tanto que o processo de quebra da dormência
de determinadas sementes são extremamente sofisticados. Uma semente de
araticum, por exemplo, só pode ter sua dormência quebrada no intestino
delgado de um canídeo nativo do Cerrado – um lobo guará, uma raposa.
Como esses animais estão em extinção, fica cada vez mais difícil quebrar
a dormência de um araticum, que é uma anonácea [família de plantas que
inclui também a graviola e a ata (fruta-do-conde), entre outras].
As abelhas europeias e africanas são recentes, foram introduzidas no
século passado. O professor Warwick Kerr, que introduziu a abelha
africana no Brasil, na década de 1950, ainda é vivo e atua na
Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
São boas produtoras de mel,
mas não estão adaptadas para fazer a polinização das plantas do Cerrado.
As abelhas nativas do Cerrado, que não tem ferrão e são chamadas de
meliponinas – jataí, mandaçaia, uruçu – eram os maiores agentes
polinizadores naturais, juntamente com os insetos, em função de sua
anatomia. Hoje estão praticamente extintas, como esses insetos, pelo uso
de herbicidas e outros tipos de veneno, que combatiam pragas de
vegetações exóticas em lavouras e pastagens.
Quando se utiliza o
pesticida para extinguir essas pragas também se mata o inseto nativo,
que é polinizador das plantas do Cerrado. Por isso, se encontram muitas
plantas nativas sem fruto, por não terem sido polinizadas.
A flora do Cerrado é geralmente desprezada. O que ela representa, de fato?
Nós vivemos em meio à mais diversificada flora do planeta. O Cerrado
contém a maior biodiversidade florística. Isso não está na Amazônia, nem
na Mata Atlântica, nem em uma savana africana ou em uma savana
australiana. Nem qualquer outro ambiente da Terra. São 12.365 plantas
catalogadas no Cerrado. Só as que conhecemos.
A cada expedição que
fazemos, cada vez que vamos a campo, pelo menos 50 novas espécies são
descobertas. Dessas 12.365 plantas conhecidas, somos capazes de
multiplicar em viveiro apenas 180. Isso é cerca de 1,5% do total, quase
nada em relação a esse universo. E só conseguimos fazer mudas de plantas
arbóreas.
Para as demais, que são extremamente importantes para o equilíbrio
ecológico, para o sequestro de carbono e para a captação de água, não
temos tecnologia para fazer mudas. Por exemplo, o capim-barba-de-bode, a
canela-de-ema, a arnica, o tucum-rasteiro, esses dois últimos com
raízes extremamente complexas. Se tirarmos um tucum-rasteiro, que está
no máximo 40 centímetros acima do nível do solo, e olharmos seu tronco,
vamos encontrar milhares ou até milhões de raízes grudados naquele
tronco.
Se tirarmos um pedaço pequeno dessas raízes e levarmos ao
microscópio, veremos centenas de radículas que saem delas. Uma pequena
plantinha com um sistema radicular extremamente complexo, que retém a
água e alimenta os diversos ambientes do Cerrado. É algo que não se
consegue reproduzir em viveiro, porque não há tecnologia. O que
conseguimos é em relação a algumas plantas arbóreas.
Outro aspecto que indica que o Cerrado já entrou em vias de extinção é
que as plantas do Cerrado são de crescimento muito lento. Uma
canela-de-ema atinge a idade adulta com mil anos de idade. O
capim-barba-de-bode fica adulto com 600 anos. Um buriti atinge 30 metros
de altura com 500 anos. Nossas veredas – que existiam em abundância até
pouco tempo – eram compostas de plantas “nenês” quando Pedro Álvares
Cabral chegou ao Brasil, estavam nascendo naquela época e sua planta
mais comum, o buriti, está hoje com 25 metros, 30 metros.
“Tragédia urbana começa com drama no campo”
Prof. Altair Sales [Foto: Fernando Leite]
Mas a tecnologia e a biotecnologia não fornecem nenhuma alternativa para mudar esse quadro?
Para se ter ideia da complexidade, vamos tomar o caso do buriti, que só
pode ser plantado em uma lama turfosa, cheia de turfa, com muita
umidade. Se o solo estiver seco, o buriti não vai vingar ali. Mas, mesmo
se conseguíssemos plantar – o que é difícil, porque não existe mais o
solo apropriado –, aquele buriti só atingiria a idade adulta e dar
frutos depois de muitos séculos. Então, não tem como tentar dizer que se
pode usar técnicas para revitalizar o Cerrado. Isso é praticamente
impossível.
A interface do Cerrado, para falar em uma linguagem moderna,
não é amigável para o uso da tecnologia conhecida. Não tem como acelerar
o crescimento de um buriti como se faz com a soja.
Não dá para fazer isso, até porque as plantas do Cerrado convivem com
uma porção de outros elementos que, para outras plantas, seriam nocivos.
Por exemplo, certos fungos convivem em simbiose com espécies do
Cerrado. Um simples fungo pode impedir a biotecnologia. Seria possível
desenvolver, por meio de tecidos, tal planta em laboratório. Mas sem
aquele fungo a planta não sobrevive. E com o fungo, mas em laboratório,
ela também não se desenvolve. Ou seja, é algo extremamente complicado,
mais do que podemos imaginar.
Mesmo que os mais pragmáticos menosprezem a importância de um
determinado animal ou uma “plantinha” em relação a uma obra portentosa,
como uma hidrelétrica, há algo que está sob ameaça com o fim do
Cerrado, como a água. Isso é algo básico para todos. A contradição é que
o Cerrado – assim como a caatinga e os pampas – não são ainda
patrimônio nacional, ao contrário da Mata Atlântica, o Pantanal e a
Amazônia. Há uma lei, a PEC 115/95 [proposta de emenda constitucional],
de autoria do então deputado Pedro Wilson (PT-GO), que pede essa
isonomia há quase 20 anos. Essa lei ajudaria alguma coisa?
Na prática, não poderia ajudar mais em nada, porque o que tinha de ser
ocupado do Cerrado já foi. O bioma já chegou em seu limiar máximo de
ocupação. Mas o governo brasileiro é tão maquiavélico e inteligente que,
para evitar maiores discussões, no ano passado redesenhou todo o mapa
ambiental brasileiro. Dessa forma, separou o Pantanal do Cerrado –
embora o primeiro seja um subsistema do segundo –, transformou-o em
patrimônio nacional e a área do Cerrado já ocupada foi ignorada e
incluída no plano de desenvolvimento como área de expansão da fronteira
agrícola. Ou seja, o Cerrado, em sua totalidade, já foi contemplado para
não ser protegido.
O que os parques nacionais poderiam agregar em uma política de subsistência do Cerrado?
Existe um manejo inadequado dos parques existentes na região do Cerrado.
Esse manejo começa com o fogo, quando se cria uma brigada para evitar
incêndios no Parque Nacional das Emas, por exemplo. O fogo natural é
importante para a preservação do Cerrado. Ora, se se trabalha com o
intuito de preservar o Cerrado é preciso conviver com o fogo; agora, se
se trabalha com a visão do agrônomo, o fogo é prejudicial, porque
acentua o oligotrofismo do solo. O Cerrado precisa desse solo
oligotrófico, mas, se o fogo é eliminado, as condições do solo serão
alteradas e a planta nativa vai deixar de existir, porque o solo vai
adquirir uma melhoria e aquela planta precisa de um solo pobre. Assim,
quando se barra o uso do fogo em um parque de Cerrado, o trabalho se dá
não com a noção de preservação do ambiente, mas dentro da visão da
agricultura. Raciocina-se como agrônomo, não como biólogo.
Outra questão nos parques é que o entorno dos parques já foi tomado
por vegetações exóticas. Entre essas vegetações existe o brachiaria, que
é uma gramínea extremamente invasora que, à medida que espalha suas
sementes, alcança até as áreas dos parques, tomando o lugar das
gramíneas nativas. No Parque Nacional das Emas já temos gramínea que não
é nativa, o que faz com que haja também vegetação arbórea, de porte
maior, também não nativa.
Os animais, em função do isolamento do parque,
não têm mais contato com áreas naturais, como os barreiros, que
forneceriam a eles cálcio e sais naturais. Quando encontramos um osso de
animal morto em um parque vemos que está sem calcificação completa,
porque falta esse elemento, que é obtido lambendo cinzas queimadas ou
visitando os barreiros, que são salinas naturais em que existe esse o
elemento. Geralmente há poucos barreiros nos parques, o que torna mais
difícil a sobrevivência do animal, que acaba entrando em vias de
extinção, o que está acontecendo.
Não há, em nenhum parque nacional criado, aumento da vegetação nativa
ou da fauna nativa. O que há é a diminuição dos caracteres nativos
daquela vegetação, bem como da fauna. Isso prova que esse isolamento não
trouxe benefícios. O que poderia funcionar seria se essas áreas de
preservação estivessem interligadas por meio de corredores de migração
faunística. Isso evitaria uma série de erros cometidos quando se
delimita uma área.
Mas, pelo que o Sr. diz, hoje isso seria impossível.
Praticamente impossível, porque as matas ciliares, que deveriam
servir como corredores ecológicos, de migração, foram totalmente
degradadas. A maioria dos rios foi ocupada, em suas margens, por
ambientes urbanos, com a presença do homem, que é um elemento
extremamente predatório. Mais que isso: os sistemas agrícolas
implantados chegam, em alguns locais, até a margem de córregos e rios,
impedindo, também, a existência desses corredores de migração.
Fica, assim, um cenário praticamente inviável. É triste falar isso ,
mas, na realidade, falamos baseados em dados científicos, no que
observamos. Sou o amante número um do Cerrado. Gostaria que ele
existisse durante milhões e milhões de anos ainda, mas infelizmente não é
isso que vemos acontecer.
Se, por exemplo, você observar as nascentes
dos grandes rios, verá que elas ou estão secando ou estão migrando cada
vez mais para áreas mais baixas. Quando isso ocorre, é sinal de que o
lençol que abastece essa nascente está rebaixando.
Observe, por exemplo, o caso das nascentes do Rio São Francisco, na
Serra da Canastra; o caso das nascentes do Rio Araguaia ou do Rio
Tocantins, que tem o Rio Uru em sua cabeceira mais alta. A cada dia que
passa as nascentes vão descendo mais. Vai ocorrer o dia em que chegarão
ao nível de base do lençol que as abastece e desaparecerão.
Ao mesmo tempo em que ocorre esse fenômeno, temos um aumento rápido do consumo de água.
Há o aumento da população. Mas, além do mais, o Cerrado entrou, nos
últimos anos, por um processo extremamente complicado, que chamamos de
desterritorialização. O grande capital chegou às áreas do Cerrado e
expulsou os posseiros que lá moravam, por meio da falsificação de
documentos, da negociata com cartórios e com políticos. Com a grilagem,
adquiriu milhares de hectares e tirou os moradores antigos da região.
Isso desestruturou comunidades inteiras.
Isso ainda ocorre em Goiás e em diversos lugares?
Ocorreu e está ocorrendo. E o que isso provoca? O aumento das cidades.
Quase não há mais cidadezinhas na região do Cerrado, elas são de médio
ou grande porte, porque a população do campo, desamparada e sem terra,
veio para a zona urbana. Essas pessoas vêm buscar abrigo na cidade, que
oferece a eles algum tipo de serviço. Na cidade, se transformam em outro
tipo de categoria social: os sem-teto. Estes vivem aqui e ali, ocupando
as áreas mais periféricas da cidade. Vão ocupar planícies de inundação,
beiras de córregos, entre outros ambientes desorganizados.
Um homem que vive em um ambiente assim, que nasce, é criado e
compartilha dessa desorganização, terá uma mente que tende a ser
desorganizada. Ou seja, ao fazer a desterritorialização trabalhamos
contra a formação de pessoas sadias. Formamos pessoas transtornadas,
mutiladas mentalmente, ocupando as periferias. Não existe plano diretor
que dê conta de acompanhar o desenvolvimento das áreas urbanas no
Brasil, porque a cada dia chegam novas famílias nessas áreas.
Crescendo em um ambiente desorganizado, sem perspectivas para o
futuro, essas pessoas acabam caindo em neuroses para a fuga. A neurose
mais comum desse tipo é o uso de drogas. Acabam cometendo o que chamamos
de atos ilícitos, mas provocados por uma situação socioeconômica de
limitação, vivendo em ambientes precários. Essas pessoas constroem sua
vida nesses locais, formam famílias e passam anos ou décadas nesses
locais.
Só que um dia vem um fenômeno natural qualquer – como El Niño ou
La Niña – que, por exemplo, acomete aquele local com uma quantidade
muito maior de chuva. Então, o córrego enche e encontra, em sua área de
inundação, os barracos daquela população. Aí começa a tragédia urbana,
com desabrigados e mortos. Aumenta, ainda mais, o processo de sofrimento
no qual estão inseridas essas populações.
Hoje vejo muitos profissionais, principalmente arquitetos, falando em
mobilidade urbana. Falam em construir monotrilhos, linhas específicas
para ônibus, corredores para bicicletas, mas ninguém toca na ferida: o
problema não está ali, mas na desestruturação do homem do campo. Quanto
mais se desestrutura o campo, mais pessoas vêm para a cidade, que não
consegue absorvê-las, por mais que se implantem linhas novas, estações e
bicicletários. O problema está no drama do campo, não na cidade.
Antigamente, se usava a expressão “fixação do homem no campo”. Isso parece que ficou para trás na visão dos governos.
Desistiram porque o que manda é o grande capital. Os bancos estatais se
alegram com as safras recordes, fazem propaganda disso. Eles patrocinam
os grandes proprietários, só que estes não têm grande quantidade de
funcionários, têm uma agricultura intensiva, mecanizada. Isso não ajuda
de forma alguma a manter as pessoas na zona rural.
Uma notícia grave é a extinção do Cerrado. Outra, tão ou mais
grave, que – pelo que o sr. diz – já pode ser dada, é que em pouco
tempo não teremos mais água. A crise da água no Brasil é uma
bomba-relógio?
A extinção do Cerrado envolve também a extinção dos grandes mananciais
de água do Brasil, porque as grandes bacias hidrográficas “brotam” do
Cerrado. O Rio São Francisco é uma consequência do Cerrado: ele nasce em
área de Cerrado e é alimentado, em sua margem esquerda, por afluentes
do Cerrado: Rio Preto, que nasce em Formosa (GO); Rio Paracatu (MG); Rio
Carinhanha, no Oeste da Bahia; Rio Formoso, que nasce no Jalapão (TO) e
corre para o São Francisco. Se há a degradação do Cerrado, não há rios
para alimentar o São Francisco. Você pode contar no mínimo dez
afluentes por ano desses grandes rios que estão desaparecendo.
Professor
Altair Sales fala ao jornalista Elder Dias do Jornal Opção:
“A proteção
das águas tinha de ser questão de segurança nacional”
Como o Sr. analisa a transposição do Rio São Francisco?
É um ato muito mais político do que científico. Ela atende muito mais a
interesses políticos de grandes proprietários do Nordeste na área da
Caatinga, no sertão nordestino. A transposição está sendo feita em dois
canais, um norte, com 750 quilômetros e outro, leste, com pouco mais de
600 quilômetros.
A água é sugada da barragem de Sobradinho (BA), através
de uma bomba, para abastecer esses canais, com 10 metros de
profundidade e largura de 25 metros. Ao fazer essa obra, se altera toda a
mecânica do São Francisco: o rio, que corria lento, passa a correr mais
rapidamente, porque está tendo sua água sugada. Seus afluentes, então,
também passam a seguir mais velozes. Isso acelera o processo de
assoreamento e de erosão.
Consequentemente, aceleram a morte dos afluentes. Fazer a
transposição do São Francisco simplesmente é estabelecer uma data para a
morte do rio, para seu desaparecimento total. Podem até atender
interesses econômicos e sociais de maneira efêmera, em curto prazo, mas
em dez anos acabou tudo.
E será um processo rápido, assim?
Sim, é um processo de décadas. Basta ver o Rio Meia Ponte, na altura do
Setor Jaó. Onde havia uma bonita cachoeira, na antiga barragem, há só um
filete d’água. O nível da água do Meia Ponte é o mesmo do Córrego
Botafogo há décadas atrás. Este praticamente não existe mais, a não ser
por uma nascente muito rica no Jardim Botânico, que ainda o alimenta.
Mas ele só parece mesmo existir quando as chuvas o enchem rapidamente.
Mas, no outro dia, ele vira novamente um filete.
Goiânia foi planejada em função também dos cursos d’água.
Tendo em vista o que ocorre hoje, podemos dizer que ela é, então, o
cenário de uma tragédia hidrográfica?
Eu não diria que apenas Goiânia está realmente dessa forma. Mas foi toda
uma política de ocupação do centro e do interior do Brasil que motivou
essa ocupação desordenada, desde a época da Fundação Brasil Central, da
Expedição Roncador–Xingu, depois a construção de Goiânia e de Brasília, a
divisão de Mato Grosso e a criação do Tocantins.
Isso é fruto do
capital dinâmico que transforma a realidade. Vem uma urbanização rápida
de áreas de campo, aumentando as ilhas de calor e, consequentemente,
pela pavimentação, impedindo que as águas das chuvas se infiltrem para
alimentar os mananciais que deram origem a essas mesmas cidades. Se
continuar dessa forma, com esse tipo de desordenamento, podemos prever
grandes colapsos sociais e econômicos no Centro-Oeste do Brasil. E não
só aqui, mas nas áreas que aqui brotam.
O que significa quase toda a área do Brasil, não?
Sim, até mesmo a Amazônia. O Rio Amazonas é alimentado por três vetores:
as águas da Cordilheira dos Andes, que é um sistema de abastecimento
extremamente irregular; as águas de sua margem esquerda, principalmente
do Solimões, que também é irregular, em que duas estiagens longas podem
expor o assoreamento, ilhas de areias – ali foi um deserto até bem pouco
tempo, chamado Deserto de Óbidos. Ou seja, o Amazonas é alimentado
mesmo pelos rios que nascem no Cerrado, como Teles Pires (São Manuel),
Xingu, Tapajós, Madeira, Araguaia, Tocantins. Estes caem quase na foz do
Amazonas, mas contribuem com grande parte de seu volume. Ou seja, temos
o São Francisco, já drasticamente afetado; o Amazonas, também afetado; e
a Bacia do Paraná, afetada quase da mesma forma que o São Francisco,
provavelmente com período de vida muito curto.
Será um processo tão rápido assim?
Uma vez que se inicia tal processo de degradação e de diminuição
drástica do nível dos lençóis, isso é irreversível. Em alguns casos
duram algumas décadas; em outros, até menos do que isso. Temos exemplos
clássicos no mundo de transposições de rios que não deram certo e até
secaram mares inteiros. No Mar de Aral, no Leste Europeu, há navios
ancorados em sal.
Sua drenagem é endorreica, fechada, sem saída para o
oceano. A União Soviética, na ânsia de se tornar autossuficiente na
produção de algodão, fez a transposição dos dois rios que abasteciam o
mar. Resultado: no prazo de uma década, as plantações não vingaram, o
mar secou e uma grande quantidade de tempestades de poeira e sal afetam
30 milhões de pessoas, causando doenças respiratórias graves, incluindo o
câncer.
Com nossos rios, acontecerá o mesmo processo. A diferença é que o
processo de ocupação aqui foi relativamente recente, a partir dos anos
1970. São 40 e poucos anos. Ou seja: em menos de meio século, se
devastou um bioma inteiro. Não acabou totalmente porque ainda há um
pouco de água. Mas, quando isso acabar, imagine as convulsões sociais
que ocorrerão. Enquanto se está na fartura, você é capaz de repartir um
copo d’água com o irmão; mas, no dia da penúria, ninguém repartirá. Isso
faz parte da natureza do ser humano, que é essencialmente egoísta. Isso
está no princípio da evolução da humanidade.
A Igreja Católica chama
isso de “pecado original”, mas nada mais é do que o egoísmo, apossar-se
de determinados bens e impedir que outros usufruam deles. Isso já levou
outros povos e raças à extinção. E pode nos levar também à extinção.
Até bem pouco tempo tínhamos duas humanidades: o
homem-de-neanderthal, o Homo sapiens neanderthalensis; e o Homo sapiens
sapiens. Hoje podemos falar também em duas humanidades: uma humanidade
subdesenvolvida, tentando soerguer em meio a um lodo movediço; e outra
humanidade, que nada na opulência. A questão é que, se essa situação
persistir, brevemente teremos a pós e a sub-humanidade.
É um cenário doloroso.
É doloroso, mas são os dados que a ciência mostra. Tem jeito, tem
perspectiva para um futuro melhor? Possivelmente, a saída esteja na
pesquisa. Mas uma pesquisa precisa de um longo tempo para que apareçam
resultados positivos. E nossas universidades não incentivam a pesquisa, o
que é muito triste, porque essa é a essência de uma universidade.
O Sr. vê, em algum lugar do mundo, trabalhos e pesquisas pensando em um mundo mais sustentável?
Não. O que existe é muito localizado e incipiente. Não tem grande
repercussão. Mas, mesmo se fossem proveitosas, jamais poderiam ser
aplicadas ao Cerrado, que é um ambiente muito peculiar. Teria de haver
pesquisa dirigida especialmente para nosso bioma.
Como recuperar uma
nascente de Cerrado? Eu não sei dizer. Um engenheiro ambiental também
não lhe dará resposta. Nenhum cientista brasileiro sabe a resposta,
porque não temos pesquisas sobre isso. Talvez poderíamos ter um futuro
melhor se houvesse investimentos em pesquisa.
E a educação ocupa que papel nesse contexto sombrio?
Nós, como educadores, deveríamos pensar mais nisso – e eu penso: talvez
ainda seja tempo de salvar o que ainda resta, mas se não dermos uma
guinada muito violenta não terá como fazer mais nada. É preciso haver
real mudança de hábitos e mudar a forma de observar os bens patrimoniais
do planeta e da nossa região. A água tinha de ser uma questão de
segurança nacional.
A vegetação nativa, da mesma forma. Os bens naturais
teriam de ser tratados assim também, porque deles depende o bem-estar
das futuras gerações. Mas isso só se consegue com investimento muito
alto em educação, mudando mentalidade de educadores. As escolas têm de
trabalhar a consciência e não apenas o conhecimento. Uma coisa é
conhecer o problema; outra, é ter consciência do problema. A consciência
exige um passo a mais. Exige atitude revolucionária e radical. Ou
mudamos radicalmente ou plantaremos um futuro cada vez pior para as
gerações que virão.
O crédito das fotos e do texto vão para Fernando Leite e o Jornal
Opção, que assim como nós entendem que o conhecimento deve ser de acesso
livre para todos.