Por Gabriela Machado André
- terça-feira, 28 março 2017 20:09
Fotos da manifestação realizada em Caxambu no início de março. Divulgação ONG
Nova Cambuquira.
Em fevereiro foi aberta a consulta pública para o edital da Companhia
de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig), que visa
consolidar uma parceria público-privada para a comercialização das águas
minerais de Caxambu e Cambuquira, municípios integrantes do Circuito
das Águas do Sul de Minas Gerais, reconhecidos internacionalmente pelo
valor terapêutico de suas fontes.
O edital foi recebido com insegurança pela população local e colocou
em evidência um assunto ainda mal resolvido no país: o gerenciamento de
um recurso essencial à vida e cada vez mais vulnerável à
superexploração.
Título de “Comunidade Azul” em risco
Segundo relatou Ana Paula Lemos, atual tesoureira e ex-presidente da
ONG Nova Cambuquira, organização que luta a favor da preservação das
águas minerais, a notícia sobre o edital foi comunicada no mesmo período
em que Cambuquira e a Universidade Federal de Lavras recebiam dois
seminários sobre a gestão da água como bem público, tendo como
principais palestrantes, pesquisadores suíços da Universidade de Berna e
da organização
Movement of Citizenship Waters.
Momento
em que o título de "Comunidade Azul" é entregue pela presidente do
Conselho dos Canadenses, Maude Barlow.
Estão presentes na foto a
ex-presidente e atual tesoureira da ONG Nova Cambuquira, Ana Paula Lemes
(abaixada, à esquerda) e o promotor de justiça Bergson Guimarães, de
terno e gravata, à direta da Maude Barlow, que segura a placa destinada à
cidade. Foto: Sylvio Britto / Jornal O Encontro.
O anúncio teve muita repercussão não apenas pela coincidência com os
seminários, mas também por Cambuquira ter recebido em 2014 o certificado
de
“Comunidade Azul”,
título concedido pelo órgão canadense “Conselho dos Canadenses”, a
municípios que seguem diretrizes humanitárias na gestão pública de suas
águas.
A pedido da ONG Nova Cambuquira, a presidente do Conselho dos
Canadenses, Maude Barlow -- que também é ex-conselheira da Assembleia
Geral da ONU -- enviou no dia 2 de março uma carta ao governador
Fernando Pimentel (PT-MG) questionando o edital e defendendo a
manutenção das águas locais como um ”bem público sob controle público”.
Na carta, ela também cita o dado divulgado em
um relatório da ONU que revela que, em menos de uma década, a demanda global por água vai superar a oferta em 40%.
Segundo a tesoureira Ana Paula, outra carta foi redigida nesse
período, mas pela equipe da ONG, e enviada à Codemig. O objetivo foi
comunicar a insatisfação da comunidade quanto à iminente perda do título
de “Comunidade Azul” e os riscos que uma gestão não-participativa
poderiam trazer para o meio ambiente e a cultura da região.
“Colocar as fontes sob gestão de parceria público-privada fará com
que Cambuquira perca o reconhecimento internacional e o controle de sua
água, que passa a ser um bem gerido pelas empresas que querem somente o
lucro e não se preocupam com a preservação”.
Ela também conta que a organização é a favor da reclassificação legal
da água, de bem mineral (conforme ainda consta hoje na legislação) para
recurso hídrico, e da revitalização do turismo nas estâncias
hidrominerais por meio de soluções como a disseminação do uso
terapêutico ou “crenoterápico”(tratamentos feitos com base no uso de
águas minerais) das águas: “Se assim for estabelecido, haverá limitações
exploratórias, justamente pelo entendimento de que a água é um bem
social, necessário à sobrevivência do homem. Uma outra ideia seria a
retomada de uma Comissão das Águas, voltando a valorizá-las enquanto um
bem medicinal, com tratamento pelo SUS.”
Proposta sob impasse
No dia 4 de março, houve uma manifestação nas ruas de
Caxambu, organizada pela Associação Amigos do Parque (Ampara) e a ONG
RenovaMata, com a participação da
ONG Nova Cambuquira,
parceiros locais, ativistas e moradores da região. “Temos força popular
e união. Até a Câmara de Vereadores, por meio de todos os vereadores,
se posicionou contra, oficialmente, perante a Codemig”, disse Ana Paula.
Além da Câmara de Cambuquira, os vereadores de Caxambu também são
contra a forma como o edital foi feito.
Como reflexo dos protestos, no dia 9 de março, a Promotoria de
Justiça de Cambuquira lançou uma medida cautelar onde foi requerida a
suspensão imediata da consulta pública, e o caso atualmente aguarda a
resposta do Juiz Federal.
otos da manifestação realizada em Caxambu no início de março. Foto: Divulgação ONG Nova Cambuquira.
Perguntados sobre o movimento contrário ao edital, a Codemig, através
de sua assessoria de comunicação, afirmou que a empresa ainda não foi
questionada judicialmente sobre o assunto e reforça que não houve
abertura de edital para licitação, mas apenas uma consulta pública
prévia.
“A futura licitação procura estabelecer uma parceria produtiva com
sócio apto a assegurar a execução do serviço com qualidade, em benefício
de Minas Gerais e dos mineiros”, afirmou. A assessoria também
esclareceu que as fontes nas quais o acesso ao público já é liberado,
permanecerão sem alterações.
O prefeito de Caxambu, Diogo Curi (PSDB), afirmou que o poder
executivo municipal não é contrário à exploração das águas minerais,
“porém desde que seja feita com responsabilidade, respeitando a vazão
natural das águas e sem bombeamento, para não afetar a nascente”,
afirmou. Ainda segundo o prefeito, a exploração deveria se limitar a
parte da “vazão da fonte, com muita cautela, para que nosso patrimônio
seja preservado para as futuras gerações.”
O caso de São Lourenço
Até 2015, a
exploração nas
fontes de Cambuquira e Caxambu eram feitas por uma subsidiária da
empresa estatal Copasa, e agora a ideia é implementar um sistema que
remete ao aplicado no município de São Lourenço, onde o parque de águas é
explorado em regime de concessão privada desde 1994, pelo grupo
Perrier/Nestlé.
“São Lourenço é o triste exemplo do que não pretendemos seguir”,
completa Ana Paula, em referência às denúncias de superexploração e
falta de transparência que a Nestlé sofreu no final da década de 90.
Na época, ativistas da associação de São Lourenço, Amar’Água, e
integrantes do Ministério Público de Minas, como o promotor de justiça
Bergson Cardoso Guimarães, da Coordenadoria Regional, em Lavras - também
envolvido no processo atual com a Codemig - trabalharam juntos para
levar à frente acusações como a do incremento da capacidade de
engarrafamento da fonte Primavera.
Segundo consta no registro histórico feito pela Amar’Água, desde que a
Nestlé iniciou a exploração na fonte Primavera, a vazão subiu de uma
média de 8 mil litros/ hora para 24.910 litros/hora, e houve a
desmineralização artificial das águas para a padronização de seu sabor -
o que resultou na diminuição da quantidade dos minerais em fontes
vizinhas e o rebaixamento do terreno próximo à lavra.
A exploração da fonte Primavera foi proibida em 2002 e seu
subproduto, a água Pure Life, foi retirada do mercado. Atualmente, temas
como a falta de um estudo hidrogeológico aprofundado para determinar a
capacidade de reposição dos aquíferos (feito pela última vez em 1997), a
confidencialidade nos números de exploração pela Nestlé e a ocupação
urbana desordenada em São Lourenço, resultando na impermeabilização de
áreas de recarga dos lençóis freáticos e a captação em poços ilegais;
preocupam os envolvidos no conflito.
Soluções paliativas para um problema sistêmico
O
promotor Bergson Guimarães trabalhou para que a medida cautelar de
paralisação da consulta pública fosse lançada. Foto: Divulgação.
O promotor Bergson coordena atualmente 79 promotorias de Justiça do
Meio Ambiente no estado de Minas e explica que uma solução prática
adotada em São Lourenço foi o pedido de tombamento do parque, para que
este se torne um patrimônio sociocultural e a prestação de contas também
seja feita ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de
Minas Gerais (Iepha).
O pedido foi aberto em 2013, e apenas recentemente começou a ser
estudado. Segundo Bergson, é importante que a medida seja efetivada
mesmo tendo caráter paliativo, já que o Iepha não possui ingerência
direta sobre as questões de vazão e controle da exploração. “As fontes e
parques gravados como patrimônio cultural ganham proteção também como
bens de interesse sociocultural. Nesse caso, para se fazer uma alteração
em alguma fonte, haverá que se ter o posicionamento de mais forças. ”
O promotor comenta ainda que os órgãos responsáveis pelas fontes do
estado não conseguem efetuar um controle eficaz da exploração: “O DNPM
só tem três técnicos para fiscalização em Minas Gerais. O problema da
Supram - Sul de Minas [órgão ambiental do Estado que realiza o EIA/RIMA
para as concessões de lavra], assim como o de outras regiões, é que o
sistema se apresenta ainda muito refém do poder econômico e das
entidades industriais que, direta ou indiretamente, dominam os
conselhos. Os servidores ganham mal e trabalham com pouca estrutura.
Dessa forma é impossível a análise devida de cada empreendimento”.
O promotor também é autor do livro “Direitos coletivos ambientais e a
exploração (in)sustentável das águas minerais”, lançado em 2009. Oito
anos após a produção do livro, ele confirma a relevância e urgência da
maioria das informações contidas no livro e chama a atenção:
“Os problemas de exploração das águas subterrâneas, rebaixamento dos
aquíferos, e suas consequências socioambientais se alastram não apenas
no Circuito das Águas e municípios vizinhos, mas também em regiões com
as mesmas características hidrominerais, como Ibirá, Campos do Jordão,
Poá, Itapecerica da Serra, Serra Negra, Águas de Lindóia e Águas de
Santa Bárbara, em São Paulo; e Caldas Novas, em Goiás”.