Rio de Janeiro – O acirramento das tensões em torno da demarcação e
conservação de reservas indígenas no Brasil promete atingir seu ápice em
2014. Neste início de fevereiro, estão em curso em diversos pontos do
país pelo menos seis importantes conflitos que opõem índios de
diferentes etnias a invasores, posseiros ou fazendeiros instalados - ou
que pretendem se instalar - em Terras Indígenas (TI) legalmente
demarcadas pelo governo federal. Para além de seu componente social,
estes conflitos, que acontecem do Amazonas ao Rio Grande do Sul, trazem
mais uma vez à tona a discussão sobre a expansão, em importantes áreas
ainda preservadas no Brasil, de algumas atividades potencialmente
danosas ao meio ambiente, como a derrubada de árvores para plantio de
monoculturas, a mineração, a instalação de garimpos, a poluição dos rios
e a pesca predatória.
A situação entre índios e não índios nas TIs brasileiras ainda poderá
se agravar nos próximos meses, já que é aguardada para o primeiro
semestre a votação pelo Congresso Nacional da PEC 215 (que transfere do
Executivo ao Legislativo a prerrogativa de aprovar a demarcação de TIs) e
do PLP 227 (que legaliza a presença de empresas de energia, de
mineração e do agronegócio nas TIs). Se aprovadas, alertam os críticos,
essas propostas provavelmente servirão como incentivo a novas disputas
pela posse das terras ocupadas pelos índios no Brasil, com inevitáveis
conseqüências ambientais: "Hoje, se verifica pouco desmatamento ou
qualquer outro tipo de agressão ambiental nas Terras Indígenas do país. O
problema é a pressão dos que querem entrar", resume Fany Ricardo,
especialista em Terras Indígenas e Unidades de Conservação do Instituto
Socioambiental (ISA).
O alto índice de preservação ambiental observado dentro das áreas
demarcadas como TIs também é citado por Cleber Buzatto, secretário
nacional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi): "Diversos estudos
têm demonstrado que as Terras Indígenas, em particular na região
amazônica, são mais preservadas, inclusive, do que as Unidades de
Conservação Ambiental. Então, nesse aspecto, a demarcação de Terras
Indígenas contribui decisivamente para a preservação da natureza e do
meio ambiente no Brasil, muito embora exista atualmente uma pressão
muito grande sobre essas terras para a exploração madeireira, haja vista
a situação no Maranhão", diz.
A
estimativa do governo é que existam pelo menos 300 ocupações ilegais no
território, que tem área total de 116 mil hectares e se espalha pelos
municípios de Centro Novo do Maranhão, Governador Newton Bello, Zé Doca e
São João do Caru.
|
Buzatto se refere ao conflito na Terra Indígena Awá-Guajá, situada no
noroeste do Maranhão, onde vivem atualmente, segundo a Fundação
Nacional do Índio (Funai), cerca de 400 índios ainda isolados, mas que
sofrem constante pressão de madeireiros. A TI Awá-Guajá foi reconhecida
pelo governo federal em 1992 e homologada somente em 2005. Ainda mais
atrasado, o processo de desintrusão (retirada de não índios) da área só
teve início em janeiro último, com o envio pelo Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra) de 187 notificações de expulsão a
posseiros instalados na TI. A estimativa do governo é que existam pelo
menos 300 ocupações ilegais no território, que tem área total de 116 mil
hectares e se espalha pelos municípios de Centro Novo do Maranhão,
Governador Newton Bello, Zé Doca e São João do Caru.
Segundo a Funai, um terço da área total da TI Awá-Guajá já foi
atingido pela ação de madeireiros. Na primeira semana do ano, toras de
madeira retiradas ilegalmente da TI foram apreendidas pelo Ibama:
"Quem
está lá dentro da TI Awá-Guajá é irregular mesmo, ao contrário do que
diz a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO) e a Confederação Nacional de
Agricultura (CNA)", garante Fany Ricardo, citando como exemplo as
"várias brigas travadas pelos índios" para retirar de sua terra a
Agropecuária Alto Turiaçu: "Essa empresa tem uma atividade de profundo
impacto ao meio ambiente em uma região onde a terra é muito desmatada. O
desmatamento até 2011 era de 39 mil hectares", diz.
Em reportagem de Karina Kiotto, ((o)) eco já havia feito um relato sobre a perda florestal nesta região da Amazônia maranhense.
A pesquisadora do ISA afirma que os Awá-Guajá estão hoje entre os
maiores defensores da floresta no Brasil: "Eles são caçador-coletores e
dependem da mata para viver, têm um histórico de proteção à floresta
antigo, mas nunca foram protegidos”, diz. Além da TI Awá-Guajá e da
vizinha Reserva Biológica do Gurupi, há referências de índios Guajá
ainda isolados vivendo também nas TIs Caru, Alto Turiaçu e Araribóia.
Desmatamento, mineração e pesca
A degradação do meio ambiente é também o pano de fundo do conflito mais violento entre índios e não índios neste começo de ano.
|
A degradação do meio ambiente é também o pano de fundo do conflito
mais violento entre índios e não índios neste começo de ano. Na Terra
Indígena Tenharim-Marmelos, localizada às margens do Rio Madeira, no
município de Humaitá, no sul do Amazonas, a presença dos não índios é
associada pelas organizações indigenistas a problemas como desmatamento,
mineração e pesca ilegais: "Na Tenharim-Marmelos, existe pressão sobre a
pesca e também os madeireiros, com os quais os índios nunca fizeram
acordo. Tem a questão do minério também. Na época da Constituinte de
1988, a empresa Paranapanema já fazia mineração em uma terra Tenharim,
em Igarapé Preto", diz Fany Ricardo, ressaltando que existem "mais de
500 processos de solicitação de mineração nas TIs brasileiras" e que a
lei sobre mineração em TIs até hoje não foi votada pelo Congresso
Nacional.
Fany qualifica como “muito grave”, o problema ambiental na TI
Tenharim-Marmelos:
“ Era uma área muito isolada, até 2004 não havia
nenhum ocupante não-indígena dentro da terra, mas depois começou a
pressão, agravada pela estrada que liga Porto Velho a Manaus, além da
própria Transamazônica. O perigo é grande, pois é ainda uma terra com
muita floresta preservada", diz.
Na TI Tenharim-Marmelos vivem índios das etnias Tenharim, Jiahui,
Parintintin e Uru-eu-uau-uau.
Os conflitos se intensificaram após a
morte do cacique Ivan Tenharim em consequência de uma queda de
motocicleta. Logo após o acidente, chegou a circular a informação,
divulgada por um servidor da Funai e inicialmente confirmada por alguns
índios, de que o cacique teria sido assassinado, mas essa hipótese foi
descartada depois que um de seus filhos afirmou ter presenciado o
acidente.
Apesar do desmentido - o servidor da Funai que divulgou a
versão do assassinato foi afastado - dois dias depois, em um caso que a
Polícia Federal qualifica como sequestro e assassinato, cometidos
provavelmente por vingança, três não índios desapareceram quando
trafegavam pela Transamazônica.
Já reconhecidos por familiares, os
corpos dos três desaparecidos, com marcas de execução por tiro de
espingarda, foram encontrados pelos policiais na terça-feira (4). Em
operação que prosseguirá por tempo indeterminado, agentes da Polícia
Rodoviária Federal e da Força Nacional de Segurança escoltam desde
sexta-feira (31) todos os veículos que cortam a reserva em um trecho de
40 km.
Paralelamente, o Ministério Público Federal entrou com um pedido
de indenização de R$ 20 milhões aos povos Tenharim e Jiahui pelos danos
ambientais a eles causados pela Transamazônica.
No conflito mais recente, em curso na Terra Indígena Tupinambá,
situada na já bastante devastada região de Ilhéus, no sul da Bahia, a
questão ambiental entre índios e não índios se dá em torno dos modos de
produção. Monocultura e agroecologia disputam espaço na TI, que foi
reconhecida em 2009 pela Funai, mas até hoje ainda não foi demarcada: "A
área está sendo preservada pelos Tupinambás, que usam o espaço para a
produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos, diferentemente da
situação que se verificava naquela área com a presença dos antigos
fazendeiros", diz Cleber Buzatto. Atualmente, os Tupinambá ocupam quatro
fazendas na região, para onde já se deslocaram homens da Polícia
Federal e da Força Nacional de Segurança.
O interesse comercial TI Tupinambá, diz Buzatto, é muito grande: "Com
as retomadas feitas pelos Tupinambás na Serra do Padeiro, houve uma
mudança no modo de produção e uso da terra, que saiu de uma forma de
produção extensiva e exaustiva com o uso de agrotóxicos para outra forma
de produção de alimentos saudáveis, com a aplicação de técnicas da
agroecologia. Isso tem incomodado a setores ligados ao agronegócio, que
veem o modelo de produção insustentável do monocultivo questionado por
um modo de produção que se sustenta e é ecologicamente equilibrado", diz
o secretário nacional do Cimi.
Outros conflitos
O desmatamento para o avanço da cultura da soja e também da pecuária extensiva ameaça a floresta na
Terra Indígena Marãiwatsédé,
território ocupado pela etnia Xavante e localizado no norte do Mato
Grosso. Apesar de reconhecida oficialmente pelo Supremo Tribunal Federal
(STF) como território Xavante e de ter a retirada de não índios
concluída em janeiro de 2013, após 20 anos de batalhas judiciais, a TI,
que tem pelo menos 50% de sua área já devastada, voltou no começo deste
ano a ser ocupada por agricultores: "Há grandes proprietários e pequenos
agricultores, mas há três ou quatro grandes fazendeiros que dominavam
quase todas as terras ali e querem voltar", diz Raul do Valle,
coordenador de Política e Direito Socioambiental do ISA, ressaltando que
existem também vários assentamentos da reforma agrária no entorno da
terra Xavante, mas que estes ocupam uma "área muito pequena da terra".
No Pará, a Terra Indígena Munduruku, situada no sudoeste do estado,
vive conflito entre índios e garimpeiros ilegais, que poluem o leito dos
rios e provocam a escassez de peixes, principal recurso alimentar da
etnia Munduruku que habita a região. Em janeiro, durante ação que teve o
apoio da Funai, índios armados confiscaram doze dragas, máquinas
utilizadas pelos garimpeiros para revolver o fundo dos rios e igarapés,
durante uma fiscalização a barco feita em quatro afluentes do Tapajós
(Kaburuá, Kabitutu, Kadiriri e Rio das Tropas).
No
outro extremo do país, no Rio Grande do Sul, a pressão do agronegócio
sobre os remanescentes de Mata Atlântica ameaça a integridade da Terra
Indígena Rio dos Índios, que ainda não teve seu
processo de
reconhecimento concluído e é ocupada pela etnia Kaingang.
|
No outro extremo do país, no Rio Grande do Sul, a pressão do
agronegócio sobre os remanescentes de Mata Atlântica ameaça a
integridade da Terra Indígena Rio dos Índios, que ainda não teve seu
processo de reconhecimento concluído e é ocupada pela etnia Kaingang. Os
conflitos entre índios e agricultores (grandes e pequenos) acontecem há
anos na área, situada no município de Vicente Dutra, região norte do
estado, e contígua à Floresta Nacional de Passo Fundo.
Os índios querem
que a Funai acelere o processo de reconhecimento de uma área total de
3,5 mil hectares, sendo 1,3 mil hectares de floresta nativa. Na terra
Kaingang, fica o maior remanescente de Mata de Araucária do Rio Grande
do Sul, um dos mais importantes reservatórios para algumas espécies da
flora e da fauna típicas do Região Sul do Brasil.
Processo político
A discussão sobre as regras para a demarcação de Terras Indígenas
deverá esquentar no Congresso Nacional, com a iminente votação da
PEC 215, de 2000, e do
PLP 227, de 2012.
Instalada no fim do ano passado, a Comissão Especial que analisará a
PEC 215 definirá ainda em fevereiro seu cronograma de trabalho, que
prevê a realização de audiências públicas em diversos pontos do país. O
governo federal, por sua vez, já se manifestou de forma contrária à
mudança nas regras de demarcação das TIs e promete enviar em breve à
Câmara dos Deputados uma proposta sobre esse tema, que está sendo
elaborada pelo Ministério da Justiça.
Para Cleber Buzatto, a decisão vinda do Congresso e uma eventual
omissão do governo podem agravar uma situação que corre o risco de sair
do controle: "O momento é bastante preocupante e tenso em todo o país.
Há um processo de incitação à violência contra os povos indígenas que
está sendo implementado pelos setores ligados ao agronegócio – em
especial pela bancada ruralista na Câmara dos Deputados – e isso tem
sido potencializado devido à decisão política do governo brasileiro de
não demarcar as Terras Indígenas. Há uma moratória no processo de
demarcação das terras, uma paralisação dos procedimentos, e isso tem
viabilizado um discurso inflamatório contra os povos indígenas, o que é
bastante preocupante", diz.
O dirigente do Cimi, no entanto, diz confiar na capacidade dos índios
de evitar que os conflitos em torno da demarcação das Terras Indígenas
se agravem ou multipliquem: "Confiamos que os povos indígenas
continuarão tendo a sabedoria para vencer mais esse processo de ataque
violento aos seus direitos e às suas comunidades".
*Editado às 14h - 06/02