06/04/2016
Imagem: Flávia Sakai
A visão que separa a natureza da agricultura apresentou sua
conta. Para não retroceder, a produção convencional aos poucos se
aproxima de técnicas mais amigáveis ao ambiente
Por Janice Kiss, da Página 22 –
Desde que o homem interveio na natureza e inventou a agricultura,
essa atividade somou importantes conquistas em sua trajetória milenar,
com plantas mais produtivas, colheitas fartas e sofisticadas
tecnologias. Mas qual o preço do sucesso?
No Brasil, esse custo ficou mais claro em 2006, segundo o sociólogo
Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente
da Universidade de São Paulo (IEE, na sigla em inglês). “Foi quando a
sociedade se deu conta do avanço das lavouras de soja na Amazônia”,
comenta.
O professor se refere à moratória da soja, acordo entre o setor
produtivo e ambientalistas para barrar os embarques internacionais da
oleaginosa cultivada na região. Dois anos antes do pacto, a Amazônia
havia atingido seu recorde de desmatamento em razão da expansão desses
plantios.
A partir daí, os agricultores passaram a lidar com o surgimento de
várias “pontes” criadas para aproximar e compatibilizar agricultura e
conservação ambiental. “Até porque não existe atividade humana mais
inserida no meio ambiente que a agricultura”, lembra José Eli da Veiga,
professor sênior do IEE-USP.
A mais recente delas é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), instituído
no âmbito do novo Código Florestal e que prevê o mapeamento
georreferenciado de todas as propriedades rurais brasileiras,
independentemente do tamanho. O prazo para a inscrição dos imóveis
termina em maio. A ferramenta é considerada um avanço na gestão
territorial do País, porque associa o cadastro à regularização ambiental
da propriedade.
“É uma segurança para o produtor, que tem sua área
reconhecida e chances de se programar em casos de
passivo ambiental, o que não pode ser feito do dia para a noite”, comenta Gustavo Junqueira, presidente da Sociedade Rural Brasileira (SRB).
Até o momento, cerca de 2,25 milhões de imóveis rurais do País (65%
das propriedades) inscreveram-se no CAR, que conta com menor adesão das
propriedades do Sul e do Nordeste. “Avalio esse dado mais como
dificuldade de preenchimento do que resistência ao cadastramento”,
afirma Junqueira.
Novos tempos, novas cobranças
O presidente da SRB faz parte da nova geração de produtores rurais
que soube entender as influências de temas socioambientais no campo e
procurou conciliar-se com eles. “A velha narrativa de ocupação de
território não cabe mais nesse modelo”, afirma.
Outra dessas “pontes” aconteceu há seis anos, com a criação do Plano
ABC (Agricultura de Baixo Carbono), do governo federal. O plano permite
que o produtor tenha acesso a tecnologias agrícolas que interferem de
forma benéfica no clima – a atividade é considerada uma das principais
emissoras de gases de efeito estufa –, como a recuperação de pastagens
degradadas, integração entre lavoura, pecuária e floresta em oposição às
monoculturas, tratamento de dejetos animais etc.
Mesmo com percalços, como as taxas de juro que subiram de 5% para 8%,
e as dificuldades em extensão rural para uma melhor orientação do
produtor sobre essas tecnologias, o programa atingiu R$ 3,65 bilhões (8
mil contratos) no ciclo 2014/2015: 35,67% maior em relação à safra
2013/2014. “O ABC é de longe o mais bem-sucedido modelo de agricultura
tropical do mundo, mas falta avançar”, reconhece Roberto Rodrigues. O
ex-ministro da Agricultura está à frente do Centro de Estudos do Agronegócio da
Fundação Getulio Vargas (GVAgro), que coordena o Observatório ABC.
Ainda não foi possível averiguar o impacto dos recursos contratados
na redução das emissões de gases-estufa por falta de monitoramento.
Porém, o Observatório estima que, de 2012 até 2023, o potencial de
mitigação da agropecuária brasileira pode chegar a 1,8 bilhão de
toneladas de
CO2 equivalente. O número é dez vezes maior do que a
meta de redução de emissões estipulada pelo Plano ABC e inclui apenas a
adoção de três tecnologias de todo o plano – recuperação de pastagens;
integração lavoura-pecuária; e lavoura-pecuária-floresta.
Do seu escritório em Cingapura, Marcos Jank, especialista global em
agronegócio, avalia essas evoluções como um caminho natural da
atividade. “Uma agricultura de alta tecnologia, sem deixar de lado a
conservação, é a saída para produzir alimentos para um mundo cada vez
mais populoso”, diz.
Ele cita como exemplo a fazenda da família, produtora de leite tipo
A, em Descalvado (SP). Na propriedade, o esterco do gado é tratado de
forma adequada para adubar áreas de pastagens e grãos. Os cultivos de
milho, soja e laranja são irrigados apenas quando os termômetros acusam a
necessidade de água. “Usamos a tecnologia para o melhor uso da terra”,
comenta.
Na sua opinião, há tempos o agronegócio tem dado sinais de que se
utiliza de “pontes” com o meio ambiente para conseguir resolver a
equação de escala de produção sem ampliação de área. “O país investiu
muito em melhoramento genético de grãos e animais para alcançar
eficiência”, diz Jank.
O diretor do GVAgro Roberto Rodrigues corrobora o argumento do
executivo ao exemplificar que, nos últimos 25 anos, a área de grãos no
País cresceu 53% e a produção 250%. O mesmo aconteceu com a produção de
carnes – a bovina, por exemplo, aumentou em 100%, enquanto a área de
pastagem diminuiu 20%.
Embora esses índices sejam caros ao agronegócio, o professor José Eli
da Veiga atenta que o alcance da maior produtividade tem alicerces em
uma agricultura baseada no uso excessivo de agrotóxicos (o Brasil é o
maior consumidor global desses produtos) e de fertilizantes nitrogenados
(principal nutriente das plantas) nas lavouras. “A presença excessiva
de nitrogênio no solo já se tornou um problema ambiental em muitos
países, inclusive com a poluição de lençóis freáticos”, informa.
A pecuária também é um assunto delicado para o setor, pois é apontada
como uma das principais razões para a intensificação do desmatamento
ilegal. A atividade ocupa hoje 200 milhões de hectares do território
nacional, e destes 70 milhões de hectares estão localizadas na Região
Amazônica. Na avaliação de Abramovay, do IEE, “são traços de um velho
Brasil que nem de longe despareceu”, afirma.
Esse país arcaico, que restringe a ligação entre produzir e
conservar, mostrou-se presente no novo Código Florestal, segundo o
engenheiro agrônomo José Carlos Pedreira de Freitas, diretor da Hecta
Desenvolvimento Empresarial nos Agronegócios. “O Código Florestal, ao
diferenciar áreas de exploração de áreas de conservação, aprofundou a
atual cisão que erroneamente existe entre produzir e conservar. Deveria
ter construído pontes entre as duas e não individualizar os dois
territórios”, diz.
O clima no meio do caminho
Enquanto o Plano ABC procura alcançar mais espaço no campo, o
programa recebe reforços de outras frentes. Criada há quase um ano e
meio, a
Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura
tem por objetivo tornar a agropecuária de baixo carbono majoritária em
todo o País. “Vivemos o momento da segunda onda da agricultura, voltada
para a sustentabilidade e a integração das atividades”, diz Luiz
Cornacchioni, diretor-executivo da Associação Brasileira do Agronegócio
(Abag) e membro da Coalizão.
Na avaliação de Juliana Cibim, professora de MBA de Meio Ambiente e
Agronegócio na Fundação Getulio Vargas (FGV), os produtores rurais de
hoje enfrentam muito mais cobranças e situações complexas que as
gerações anteriores. “Eles fazem uma agricultura inserida em um cenário
de mudança climática”, diz ela, que também é coordenadora-executiva do
Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS).
Eduardo Assad, pesquisador da Embrapa, trata desse tema desde 2008,
quando coordenou o primeiro relatório da empresa sobre os efeitos do
clima na agricultura. Ele contribuiu também com o documento que avaliou
os reveses das mudanças nas temperaturas: Brasil 2040 – Alternativas de
Adaptação às Mudanças Climáticas, feito em parceria por diversos grupos
de pesquisa e encomendado pela Secretaria de Estudos Estratégicos da
Presidência da República (SAE).
A meta do trabalho é entender como o clima pode afetar o Brasil no
futuro e servir como ferramenta para embasar políticas públicas de
adaptação nas áreas da saúde, recursos hídricos, energia, agricultura e
infraestrutura.
Publicado no fim de 2015, o estudo revela que importantes cultivos
como soja, milho, arroz e feijão tendem a sofrer mais que outras
plantações por causa do aquecimento do clima daqui a 25 anos, quando as
altas temperaturas podem não poupar as fases de floração e enchimento
dos grãos, primordiais para boas colheitas. “Os impactos recairão sobre
produtores e consumidores”, comenta Assad, um dos principais
especialistas em mudança climática no País e também envolvido com o
Plano ABC.
Mas não é apenas isso. As terras no
Mapitoba correm o
risco de desvalorização em decorrência da possibilidade de os cultivos
migrarem de altas temperaturas, já típicas da região, para lugares mais
frios. As perdas nacionais no campo decorrentes da reviravolta no clima
já foram calculadas em US$ 4 bilhões em 2050, conforme outro
levantamento,
Impactos das Mudanças Climáticas na Produção Agrícola Brasileira, coordenado por Assad.
O setor de soja arcará com cerca de 50% delas. Por sinal, a
oleaginosa apresenta sinais de não aguentar tanta secura. O Mato Grosso –
principal produtor do grão – perdeu 1 milhão de toneladas na safra
2015/16 por causa da estiagem. “O levantamento se baseia no cenário
atuatual, caso nada seja feito para alterá-lo”, diz Assad.
Tudo junto e misturado
O diretor da Hecta entende que os temas que dominam a agricultura têm
mudado não apenas porque os tempos são outros. “Há uma pressão do
consumidor sobre a origem dos produtos”, afirma Pedreira. O consultor
cita como exemplo o turismo rural, como os da Fazenda da Toca, em
Corumbataí (SP), e da Fazenda Santa Adelaide, em Morungaba (SP), que
abrem suas porteiras para mostrar a rotina no campo para quem vive
distante dele.
Segundo Pedreira, a evolução da agricultura orgânica, vista com certo
descrédito décadas atrás, tem a ver com esse comportamento. “Por trás
do produto sem agrotóxico há uma relação bem-sucedida entre cultivo de
alimentos e meio ambiente. Conforme dados do Organics Brasil, esse
mercado cresceu 25% no ano passado, em comparação a 2014, movimentando
R$ 2,5 bilhões. “Ainda é um nicho por uma questão de falta de renda no
País”, diz o diretor.
E uma coisa puxa a outra. Segundo a Associação Brasileira das
Empresas de Controle Biológico (ABC Bio), a indústria de defensivos
agrícolas biológicos cresce entre 15% e 20% ao ano.
A entidade aponta como principal razão uma nova mentalidade dos
produtores, que buscam uma agricultura mais sustentável e valorizam o
manejo integrado de pragas.
Há 25 anos, quando começou a trabalhar com agrofloresta, o
pesquisador Marcelo Arco-Verde, da Embrapa Florestas, sabia que
resistência era o principal obstáculo a ser enfrentado ao apresentar
essa forma de cultivo para o agricultor. “Plantar em meio a árvores era
coisa de maluco na época”, relembra.
Arco-Verde entende que a agrofloresta tem ainda outra vantagem: a de
poder ser instalada em áreas de Reserva Legal. “É um modelo perfeito
para entrar na recomposição de 57 milhões de hectares exigida pelo
Código Florestal”, diz.
Embora não existam estatísticas que possam dimensionar a extensão
desse cultivo, o pesquisador explica que esse modelo agrícola está
espalhado por todo o País, de forma mais acentuada na Amazônia. “Nunca
vai concorrer com a agricultura de escala. Mas a diversificação faz bem a
todo mundo, à terra e ao produtor”, afirma.
(Página 22/ #Envolverde)
* Publicado originalmente no site da Página 22.