domingo, 26 de agosto de 2018

O Capital quer lucrar duas vezes ao declarar guerra ao clima. E nós?

O Capital quer lucrar duas vezes ao declarar guerra ao clima. E nós?

Nas contas do ca­pi­ta­lismo, as guerras são du­pla­mente lu­cra­tivas. A in­dús­tria ar­ma­men­tista, uma das mai­ores, mais po­de­rosas e com um lobby efi­ci­ente ao ex­tremo, impõe que bom­bar­deiros, tan­ques, na­vios e sub­ma­rinos de guerra sejam mo­bi­li­zados e as mu­ni­ções, bombas, mís­seis, etc. sejam des­pe­jados onde for pos­sível. É assim, afinal, que jus­ti­ficam que novos e mais po­de­rosos equi­pa­mentos de guerra sejam de­sen­vol­vidos (e com­prados pelos Es­tados-nação) e os "es­to­ques" sejam re­postos, ga­ran­tindo-lhes lu­cros as­tronô­micos. Em se­guida, e isso sempre entra na con­ta­bi­li­dade per­versa de cada bom­bar­deio, vêm as em­prei­teiras, cons­tru­toras, em­presas de en­ge­nharia dos mais di­versos campos dando conta de "re­parar o dano", "re­cons­truindo" es­tradas, pontes, edi­fí­cios, hos­pi­tais, in­fra­es­tru­tura de energia e água etc. e, óbvio, fa­tu­rando muito com isso! Im­por­tante frisar, tudo isso, da bomba lan­çada ao prédio re­cons­truído, entra no cál­culo do PIB... Agora ima­gine se o Ca­pi­ta­lismo de­clarar guerra ao sis­tema cli­má­tico ter­restre...


Evo­lução ao longo do tempo das emis­sões, em bi­lhões de to­ne­ladas de car­bono por ano por des­ma­ta­mento e queima de com­bus­tí­veis fós­seis. Va­lores em CO₂ são 3,7 vezes mai­ores.

Acre­dite, já o fez. Desde antes da Re­vo­lução In­dus­trial, com um des­ma­ta­mento ace­le­rado ini­ci­al­mente na Eu­ropa (e também Ásia) e logo ex­pan­dido para ou­tros con­ti­nentes com a co­lo­ni­zação, mas prin­ci­pal­mente a partir dela com a queima alu­ci­nada de carvão, pe­tróleo e gás, as al­te­ra­ções na com­po­sição quí­mica da at­mos­fera ter­restre foram um gi­gan­tesco ato de vi­o­lência, uma de­cla­ração de guerra aberta contra a es­ta­bi­li­dade cli­má­tica pla­ne­tária.

Eu cos­tu­mava afirmar que a maior e menos ci­tada pri­va­ti­zação da his­tória tinha sido da at­mos­fera, tra­tada pelo ca­pital, es­pe­ci­al­mente de dois sé­culos para cá, como uma imensa lata de lixo. Mas a ideia de uma ação mi­litar, de um ataque brutal e sem trégua, me pa­rece mais pre­cisa e talvez ne­nhuma com­pa­ração seja tão sim­bó­lica nesse sen­tido quanto pegar os 2,29 W/m² (watt por metro qua­drado) de for­çante ra­di­a­tiva e mul­ti­plicá-los pela área do pla­neta, ob­tendo que o calor re­tido pelo aque­ci­mento global equi­vale à energia que seria li­be­rada pela ex­plosão de 18 bombas de Hi­roshima a cada se­gundo.

E essa guerra se in­ten­si­fica a cada dia. Na con­tramão das ne­ces­si­dades, as emis­sões de CO₂ que­braram novo re­corde em 2017, che­gando à cifra im­pres­si­o­nante de 41 bi­lhões de to­ne­ladas (ou 11,2 bi­lhões de to­ne­ladas de car­bono). É ver­dade que a re­a­ce­le­ração da in­dús­tria chi­nesa e a re­ti­rada dos EUA do Acordo de Paris pelo "Nero La­ranja" foram golpes na­quilo que pa­recia uma tí­mida ten­ta­tiva de ar­mis­tício, mas é de co­nhe­ci­mento pú­blico que mesmo que todas as metas de re­dução de emis­sões de gases de efeito es­tufa apre­sen­tadas vo­lun­ta­ri­a­mente pelos sig­na­tá­rios fossem cum­pridas à risca ainda assim fi­ca­ríamos muito longe de atingir os ob­je­tivos do acordo.

Esse des­prezo pelos li­mites de 1,5°C e 2°C es­ta­be­le­cidos pela co­mu­ni­dade ci­en­tí­fica (e aqui­es­cidos no Acordo de Paris) co­loca por terra qual­quer noção in­gênua de que este sis­tema po­deria chegar ra­ci­o­nal­mente a uma au­to­con­tenção, re­du­zindo os lu­cros para pre­servar a es­ta­bi­li­dade cli­má­tica.

A ir­ra­ci­o­na­li­dade de um sis­tema que, dentro de um pla­neta li­mi­tado, in­siste em ex­pandir a de­manda por ma­téria e energia para pro­dução de mer­ca­do­rias se re­vela por com­pleto. Mas essa ir­ra­ci­o­na­li­dade do ca­pital não chega ao ponto de ser in­tei­ra­mente au­to­des­tru­tiva, e é esse o ponto em que quero chegar.

Não, os CEOs não estão nem um pouco "pre­o­cu­pados com o pla­neta", mas os prin­ci­pais qua­dros da bur­guesia in­ter­na­ci­onal estão atentos, sim, à pos­si­bi­li­dade de co­lapso ci­vi­li­za­ci­onal. E, usando uma me­tá­fora que já uti­lizei antes, querem se as­se­gurar que, se for mesmo ine­vi­tável que o Ti­tanic co­lida com o ice­berg, haja botes salva-vidas para a mi­noria de uber­pri­vi­le­gi­ados e que os por­tões da ter­ceira classe es­tejam de­vi­da­mente tran­cados. Não é pura ir­re­flexão. Há um pro­jeto pen­sado, que pode ser con­si­de­rado per­verso e ir­ra­ci­onal e até in­viável por ter grande chance de, ao fim e ao cabo, dar tudo er­rado. A es­tra­tégia do ca­pi­ta­lismo para o clima existe e é pre­ci­sa­mente igual à guerra. Ganha ao des­truir, ganha ao "con­sertar"!




 

 



Seis cor­po­ra­ções do setor de pe­tróleo e gás fa­tu­raram juntas o equi­va­lente a quase 1,3 tri­lhões de dó­lares, mais que o PIB do Mé­xico, 15ª eco­nomia do mundo.

A in­dús­tria de com­bus­tí­veis fós­seis, es­pe­ci­al­mente as cor­po­ra­ções pe­troquí­micas, cons­titui o co­ração ener­gé­tico do sis­tema. Sem serem co­bradas pelos danos am­bi­en­tais e cli­má­ticos atuais e fu­turos e sub­si­di­adas por Es­tados na­ci­o­nais, pe­troquí­micas e si­mi­lares se­guem fa­tu­rando muito alto e ob­tendo lu­cra­ti­vi­dade. No ano pas­sado, se­gundo a Forbes, três das quatro com­pa­nhias com maior fa­tu­ra­mento no mundo foram pe­troquí­micas (per­deram apenas para o Wal­mart).

Seis com­pa­nhias do ramo de pe­tróleo e gás (Ex­xon­Mobil, Shell, Gaz­prom, Che­vron, Total e Si­nopec) fa­tu­raram quase 1,3 tri­lhão de dó­lares e ob­ti­veram 74,8 bi­lhões de dó­lares de lucro lí­quido. Em ne­nhum ce­nário dentro da ordem econô­mica vi­gente esse setor de­sa­pa­re­cerá ou aban­do­nará a ló­gica do "drill baby, drill". Pelo con­trário, tende a manter a ex­plo­ração de pe­tróleo e gás avan­çando para ope­ra­ções de maior risco como o Ár­tico e a ca­mada do pré-sal ao mesmo tempo em que passam a in­vestir uma par­cela mi­no­ri­tária do seu ca­pital em re­no­vá­veis, mo­vi­men­tação através da qual não apenas con­tri­buem para su­prir o au­mento da de­manda ener­gé­tica como pro­movem gre­enwashing.

Mas essas mesmas com­pa­nhias estão de olho num fu­turo em que - con­de­nado por emis­sões nunca mi­ti­gadas, ou pelo menos não mi­ti­gadas numa pro­porção se­quer pró­xima do ne­ces­sário - o clima global pre­cise ser "con­ser­tado". A Shell há tempos anuncia seus pro­jetos de CCS ("Carbon Cap­ture and Sto­rage", ou seja, Cap­tura e Ar­ma­ze­na­mento de Car­bono) e a Ex­xon­Mobil que ci­ni­ca­mente passou anos fi­nan­ci­ando ge­ne­ro­sa­mente o ne­ga­ci­o­nismo cli­má­tico, não fica atrás.

Em ou­tras pa­la­vras, uma com­pa­nhia que pagou pseu­do­ci­en­tistas, jor­na­listas e po­lí­ticos con­ser­va­dores para ne­garem o aque­ci­mento global, ao ponto de mitos ne­ga­ci­o­nistas in­tei­ra­mente re­fu­tados per­ma­ne­cerem va­gando como zumbis até hoje, está in­ves­tindo em tec­no­lo­gias para re­mover o "gás ino­fen­sivo" da at­mos­fera...

Nesse con­texto, o pro­jeto do nú­cleo cen­tral da bur­guesia é usar in­ten­si­va­mente pe­tróleo, carvão e gás até o fim e quando a fera cli­má­tica já tiver var­rido ha­bi­tantes de países-ilha e di­zi­mado po­pu­la­ções na África, Sul da Ásia e os po­bres das Amé­ricas, tirar da ga­veta - afinal será a "única saída" - as "so­lu­ções tec­no­ló­gicas".

A pri­meira é a Bi­o­e­nergia com Cap­tura e Ar­ma­ze­na­mento de Car­bono (BECCS) que, como mos­tramos em de­talhe, se apli­cada em grande es­cala por cor­po­ra­ções, sig­ni­fi­cará que elas es­tarão se apro­pri­ando de vez do uso das terras e da água e mesmo que con­tenha o caos cli­má­tico nos le­vará à ul­tra­pas­sagem de ou­tros li­mites pla­ne­tá­rios (mu­dança no uso do solo, de­manda de água doce, bi­o­di­ver­si­dade, ci­clos bi­o­ge­oquí­micos).

A se­gunda, ainda pior, é a ge­o­en­ge­nharia, nome ge­né­rico a uma va­ri­e­dade de téc­nicas vi­sando manter o ter­mos­tato pla­ne­tário sob con­trole ar­ti­fi­cial e com chances enormes de ser um "re­médio" pior do que a do­ença. Como mos­tramos em ar­tigos an­te­ri­ores em nosso blog, além de al­gumas pro­postas serem bi­zarras ou darem a um nú­mero muito pe­queno de cor­po­ra­ções um poder não pen­sando nem nas pi­ores dis­to­pias de ficção ci­en­tí­fica, há um pro­blema de na­tu­reza fi­lo­só­fica: uma ilusão de con­trole in­jus­ti­fi­cável sus­ten­tada na falsa noção de que o clima - re­sul­tante da in­te­ração com­plexa e não-li­near do con­junto de sub­sis­temas do Sis­tema Terra - é apenas mais um "pro­blema de en­ge­nharia".

Can­di­datas a serem as cor­po­ra­ções da CCS e da ge­o­en­ge­nharia, as atuais pe­troquí­micas se­guirão lu­crando hor­rores com a des­truição do sis­tema cli­má­tico, al­me­jando lu­crar mais hor­rores com o su­posto "con­serto" do mesmo. Esse pro­jeto econô­mico e po­lí­tico é um pro­jeto em que os povos não têm vez, de ex­ter­mínio mesmo de po­pu­la­ções in­teiras e que ser­virá de base para mais de­si­gual­dade, vi­o­lência, xe­no­fobia, fe­cha­mento de fron­teiras e mi­li­ta­rismo.

Eis que na ló­gica de uma de­cla­ração de guerra ao sis­tema cli­má­tico, o que pa­rece es­capar no cál­culo frio de lu­crar do­brado feito pelo ca­pital é a pos­si­bi­li­dade de esse sis­tema re­agir vi­o­len­ta­mente, contra-atacar com mu­ni­ções além da­quelas que ora ava­li­amos que ele dis­ponha. É aquilo que a pen­sa­dora belga Isa­belle Sten­gers chama de "In­trusão de Gaia" ("Al­guns con­si­de­raram que a Terra fosse um re­curso a ser ex­plo­rado, ou­tros que era pre­ciso pro­tegê-la, mas ela nunca foi en­xer­gada como poder as­sus­tador, que po­deria nos des­truir"), mas que bem po­deria se chamar "Vin­gança de Me­deia".

Su­per­tu­fões e su­per­fu­ra­cões como Haiyan, Pa­tricia, Irma e Maria, secas e ondas de calor re­cordes como as que vimos re­cen­te­mente e até a ace­le­ração da perda de gelo ma­rinho e de­gelo dos mantos con­ti­nen­tais da Gro­en­lândia e An­tár­tica podem dis­parar de­se­qui­lí­brios im­pre­vi­sí­veis em ter­ri­tó­rios, fontes de água doce e sis­temas de su­porte à vida es­sen­ciais para muitas po­pu­la­ções.

Para os muito ricos, a linha de ação de alto risco, de se­guir a guerra aberta com o Sis­tema Terra, faz algum sen­tido na me­dida em que re­cuar sig­ni­fi­caria ab­dicar re­so­luta e ir­re­ver­si­vel­mente dos pri­vi­lé­gios, dos ex­tremos de opu­lência, luxo e ri­queza; sig­ni­fi­caria abrir mão de uma ordem econô­mica ba­seada em in­ces­sante cres­ci­mento e acu­mu­lação. Mas para a mai­oria, nada há a ga­nhar nessa ló­gica ex­pan­si­o­nista, pro­du­ti­vista, pois ainda que hou­vesse dis­tri­buição equi­ta­tiva da ri­queza ge­rada a curto prazo, o em­po­bre­ci­mento dos sis­temas na­tu­rais ra­pi­da­mente pri­varia as ge­ra­ções fu­turas dessa mesma pos­si­bi­li­dade. Daí, nossa pers­pec­tiva tem ne­ces­sa­ri­a­mente de ser outra, ba­seada na ló­gica de que nossa so­ci­e­dade pre­cisa caber na bi­os­fera ter­restre e se har­mo­nizar com seus fluxos, ci­clos e li­mites.

Mesmo que a curto prazo ainda haja al­guma brecha para ganho mo­ne­tário ad­vindo da pro­dução des­tru­tiva, o que in­clui o uso de com­bus­tí­veis fós­seis, a conta de­fi­ni­ti­va­mente não fecha numa es­cala in­ter­ge­ra­ci­onal. Claro, o que é de se es­tra­nhar mesmo é que num con­texto em que tal re­a­li­dade só se torna mais e mais evi­dente, boa parte da es­querda ainda en­tenda que faz sen­tido queimar pe­tróleo para fi­nan­ciar a edu­cação e a saúde. Ou pior, que boa parte da es­querda - as­si­mi­lando os dis­cursos da tec­no­cracia a ser­viço do ca­pital - seja se­du­zida pelas "so­lu­ções de en­ge­nharia" ou pela ilusão de um poder má­gico da ci­ência e tec­no­logia.


Ale­xandre Araujo Costa é ci­en­tista do clima.