O Capital quer lucrar duas vezes ao declarar guerra ao clima. E nós?
- Alexandre Araújo Costa
- 28/06/2018
Evolução ao longo do tempo das emissões, em bilhões de toneladas de carbono por ano por desmatamento e queima de combustíveis fósseis. Valores em CO₂ são 3,7 vezes maiores.
Acredite, já o fez. Desde antes da Revolução Industrial, com um desmatamento acelerado inicialmente na Europa (e também Ásia) e logo expandido para outros continentes com a colonização, mas principalmente a partir dela com a queima alucinada de carvão, petróleo e gás, as alterações na composição química da atmosfera terrestre foram um gigantesco ato de violência, uma declaração de guerra aberta contra a estabilidade climática planetária.
Eu costumava afirmar que a maior e menos citada privatização da história tinha sido da atmosfera, tratada pelo capital, especialmente de dois séculos para cá, como uma imensa lata de lixo. Mas a ideia de uma ação militar, de um ataque brutal e sem trégua, me parece mais precisa e talvez nenhuma comparação seja tão simbólica nesse sentido quanto pegar os 2,29 W/m² (watt por metro quadrado) de forçante radiativa e multiplicá-los pela área do planeta, obtendo que o calor retido pelo aquecimento global equivale à energia que seria liberada pela explosão de 18 bombas de Hiroshima a cada segundo.
E essa guerra se intensifica a cada dia. Na contramão das necessidades, as emissões de CO₂ quebraram novo recorde em 2017, chegando à cifra impressionante de 41 bilhões de toneladas (ou 11,2 bilhões de toneladas de carbono). É verdade que a reaceleração da indústria chinesa e a retirada dos EUA do Acordo de Paris pelo "Nero Laranja" foram golpes naquilo que parecia uma tímida tentativa de armistício, mas é de conhecimento público que mesmo que todas as metas de redução de emissões de gases de efeito estufa apresentadas voluntariamente pelos signatários fossem cumpridas à risca ainda assim ficaríamos muito longe de atingir os objetivos do acordo.
Esse desprezo pelos limites de 1,5°C e 2°C estabelecidos pela comunidade científica (e aquiescidos no Acordo de Paris) coloca por terra qualquer noção ingênua de que este sistema poderia chegar racionalmente a uma autocontenção, reduzindo os lucros para preservar a estabilidade climática.
A irracionalidade de um sistema que, dentro de um planeta limitado, insiste em expandir a demanda por matéria e energia para produção de mercadorias se revela por completo. Mas essa irracionalidade do capital não chega ao ponto de ser inteiramente autodestrutiva, e é esse o ponto em que quero chegar.
Não, os CEOs não estão nem um pouco "preocupados com o planeta", mas os principais quadros da burguesia internacional estão atentos, sim, à possibilidade de colapso civilizacional. E, usando uma metáfora que já utilizei antes, querem se assegurar que, se for mesmo inevitável que o Titanic colida com o iceberg, haja botes salva-vidas para a minoria de uberprivilegiados e que os portões da terceira classe estejam devidamente trancados. Não é pura irreflexão. Há um projeto pensado, que pode ser considerado perverso e irracional e até inviável por ter grande chance de, ao fim e ao cabo, dar tudo errado. A estratégia do capitalismo para o clima existe e é precisamente igual à guerra. Ganha ao destruir, ganha ao "consertar"!
Seis corporações do setor de petróleo e gás faturaram juntas o equivalente a quase 1,3 trilhões de dólares, mais que o PIB do México, 15ª economia do mundo.
A indústria de combustíveis fósseis, especialmente as corporações petroquímicas, constitui o coração energético do sistema. Sem serem cobradas pelos danos ambientais e climáticos atuais e futuros e subsidiadas por Estados nacionais, petroquímicas e similares seguem faturando muito alto e obtendo lucratividade. No ano passado, segundo a Forbes, três das quatro companhias com maior faturamento no mundo foram petroquímicas (perderam apenas para o Walmart).
Seis companhias do ramo de petróleo e gás (ExxonMobil, Shell, Gazprom, Chevron, Total e Sinopec) faturaram quase 1,3 trilhão de dólares e obtiveram 74,8 bilhões de dólares de lucro líquido. Em nenhum cenário dentro da ordem econômica vigente esse setor desaparecerá ou abandonará a lógica do "drill baby, drill". Pelo contrário, tende a manter a exploração de petróleo e gás avançando para operações de maior risco como o Ártico e a camada do pré-sal ao mesmo tempo em que passam a investir uma parcela minoritária do seu capital em renováveis, movimentação através da qual não apenas contribuem para suprir o aumento da demanda energética como promovem greenwashing.
Mas essas mesmas companhias estão de olho num futuro em que - condenado por emissões nunca mitigadas, ou pelo menos não mitigadas numa proporção sequer próxima do necessário - o clima global precise ser "consertado". A Shell há tempos anuncia seus projetos de CCS ("Carbon Capture and Storage", ou seja, Captura e Armazenamento de Carbono) e a ExxonMobil que cinicamente passou anos financiando generosamente o negacionismo climático, não fica atrás.
Em outras palavras, uma companhia que pagou pseudocientistas, jornalistas e políticos conservadores para negarem o aquecimento global, ao ponto de mitos negacionistas inteiramente refutados permanecerem vagando como zumbis até hoje, está investindo em tecnologias para remover o "gás inofensivo" da atmosfera...
Nesse contexto, o projeto do núcleo central da burguesia é usar intensivamente petróleo, carvão e gás até o fim e quando a fera climática já tiver varrido habitantes de países-ilha e dizimado populações na África, Sul da Ásia e os pobres das Américas, tirar da gaveta - afinal será a "única saída" - as "soluções tecnológicas".
A primeira é a Bioenergia com Captura e Armazenamento de Carbono (BECCS) que, como mostramos em detalhe, se aplicada em grande escala por corporações, significará que elas estarão se apropriando de vez do uso das terras e da água e mesmo que contenha o caos climático nos levará à ultrapassagem de outros limites planetários (mudança no uso do solo, demanda de água doce, biodiversidade, ciclos biogeoquímicos).
A segunda, ainda pior, é a geoengenharia, nome genérico a uma variedade de técnicas visando manter o termostato planetário sob controle artificial e com chances enormes de ser um "remédio" pior do que a doença. Como mostramos em artigos anteriores em nosso blog, além de algumas propostas serem bizarras ou darem a um número muito pequeno de corporações um poder não pensando nem nas piores distopias de ficção científica, há um problema de natureza filosófica: uma ilusão de controle injustificável sustentada na falsa noção de que o clima - resultante da interação complexa e não-linear do conjunto de subsistemas do Sistema Terra - é apenas mais um "problema de engenharia".
Candidatas a serem as corporações da CCS e da geoengenharia, as atuais petroquímicas seguirão lucrando horrores com a destruição do sistema climático, almejando lucrar mais horrores com o suposto "conserto" do mesmo. Esse projeto econômico e político é um projeto em que os povos não têm vez, de extermínio mesmo de populações inteiras e que servirá de base para mais desigualdade, violência, xenofobia, fechamento de fronteiras e militarismo.
Eis que na lógica de uma declaração de guerra ao sistema climático, o que parece escapar no cálculo frio de lucrar dobrado feito pelo capital é a possibilidade de esse sistema reagir violentamente, contra-atacar com munições além daquelas que ora avaliamos que ele disponha. É aquilo que a pensadora belga Isabelle Stengers chama de "Intrusão de Gaia" ("Alguns consideraram que a Terra fosse um recurso a ser explorado, outros que era preciso protegê-la, mas ela nunca foi enxergada como poder assustador, que poderia nos destruir"), mas que bem poderia se chamar "Vingança de Medeia".
Supertufões e superfuracões como Haiyan, Patricia, Irma e Maria, secas e ondas de calor recordes como as que vimos recentemente e até a aceleração da perda de gelo marinho e degelo dos mantos continentais da Groenlândia e Antártica podem disparar desequilíbrios imprevisíveis em territórios, fontes de água doce e sistemas de suporte à vida essenciais para muitas populações.
Para os muito ricos, a linha de ação de alto risco, de seguir a guerra aberta com o Sistema Terra, faz algum sentido na medida em que recuar significaria abdicar resoluta e irreversivelmente dos privilégios, dos extremos de opulência, luxo e riqueza; significaria abrir mão de uma ordem econômica baseada em incessante crescimento e acumulação. Mas para a maioria, nada há a ganhar nessa lógica expansionista, produtivista, pois ainda que houvesse distribuição equitativa da riqueza gerada a curto prazo, o empobrecimento dos sistemas naturais rapidamente privaria as gerações futuras dessa mesma possibilidade. Daí, nossa perspectiva tem necessariamente de ser outra, baseada na lógica de que nossa sociedade precisa caber na biosfera terrestre e se harmonizar com seus fluxos, ciclos e limites.
Mesmo que a curto prazo ainda haja alguma brecha para ganho monetário advindo da produção destrutiva, o que inclui o uso de combustíveis fósseis, a conta definitivamente não fecha numa escala intergeracional. Claro, o que é de se estranhar mesmo é que num contexto em que tal realidade só se torna mais e mais evidente, boa parte da esquerda ainda entenda que faz sentido queimar petróleo para financiar a educação e a saúde. Ou pior, que boa parte da esquerda - assimilando os discursos da tecnocracia a serviço do capital - seja seduzida pelas "soluções de engenharia" ou pela ilusão de um poder mágico da ciência e tecnologia.
Alexandre Araujo Costa é cientista do clima.