O que muda (ou resta) no Meio Ambiente com a reforma de Bolsonaro?
ISA
Uma das frases famosas de Jair Bolsonaro é a de que o objetivo de seu
governo seria fazer o Brasil voltar a ser como “40, 50 anos atrás”.
Apenas oito dias depois da posse, não é possível saber se a promessa
será cumprida. Mas há sinais de que o caminho foi aberto na área
ambiental.
O
ISA passou um pente-fino na redação da Medida
Provisória (MP) e dos decretos que produziram, nos primeiros dias da
nova gestão, a mais drástica reforma ministerial desde o governo Collor
(1990-1992). A conclusão é de que as políticas socioambientais
brasileiras, construídas em 40 anos de avanços e reconhecidas
internacionalmente, foram colocadas em xeque. O Ministério do Meio
Ambiente (MMA) não apenas perdeu poder político, mas está agora
subordinado a interesses econômicos e a outras áreas da administração (
leia o editorial do ISA).
“Isso sinaliza que esses assuntos não são prioridade para o governo. É
quase como se tivessem decidido acabar com o MMA sem ter o ônus de
fazer isso”, resume Nurit Bensusan, especialista em Biodiversidade
associada ao
ISA.
Assessores e o próprio Bolsonaro chegaram a dizer que o ministério
seria extinto e que suas funções seriam incorporadas à Agricultura. A
ideia foi abandonada, após vários recuos, por pressão dos próprios
ruralistas, preocupados com o desgaste no comércio internacional.
“Essa pode ser uma primeira sinalização de que essas políticas estão
ameaçadas e podem desaparecer; ou de que elas vão ficar relegadas e não
haverá quem as implemente”, aposta Bensusan.“É curioso porque uma parte
desses instrumentos o governo precisa e terá de usar”, comenta.
Esvaziamento de funções
Em geral, MP e decreto de reestruturação do MMA escancaram o
esvaziamento da capacidade de formular e conduzir políticas, inclusive
de fixar as normas orientadoras de suas diretrizes. Sumiu a competência
de combate ao desmatamento, núcleo da área ambiental federal desde os
anos 1980. O mesmo acontece com programas para populações indígenas e
tradicionais.
O ministério também não tem mais entre suas atribuições o combate à
desertificação. Desapareceu o departamento de educação ambiental. A
temática tem agora menções genéricas na própria pasta e no Ministério da
Educação. Também desapareceu do MMA os temas de responsabilidade
socioambiental, produção e consumo sustentáveis (diminuição ou extinção
do uso de sacolas plásticas, códigos de conduta empresarial; crédito
para conservação etc).
O novo Departamento de Desenvolvimento Sustentável também foi
desidratado, não tendo mais função executiva, mas apenas a de produzir
estudos, dados e indicadores. Já a gestão da política de recursos
hídricos, incluindo a Agência Nacional de Águas (ANA), foi para o
Ministério de Desenvolvimento Regional.
A assessoria do MMA respondeu à reportagem do
ISA que não havia agenda para uma entrevista com o ministro Ricardo Salles ou outro porta-voz.
Mudanças climáticas
O tema-guarda-chuva mais estratégico para o futuro imediato do país,
mudanças climáticas, praticamente desapareceu do ministério, restando
menções esparsas nas atribuições dos ministérios da Agricultura,
Economia e Ciência e Tecnologia. No detalhamento da estrutura do MMA, há
referência apenas ao Fundo Nacional sobre Mudança do Clima e outras
menções genéricas no Departamento de Conservação de Ecossistemas da
Secretaria de Biodiversidade.
Não se sabe quem vai conduzir a política nacional e as negociações
internacionais sobre mudanças climáticas, antiga atribuição do MMA. Na
prática, o órgão tem agora papel diplomático secundário. O outro
ministério responsável por essas tratativas é o Itamaraty. A questão é
que o atual chanceler, Ernesto Araújo, coloca em dúvida as mudanças do
clima.
Entre 2004 e 2012, o desmatamento na Amazônia brasileira despencou 83% (
veja gráfico).
O feito foi resultado da implementação do Plano de Ação para Prevenção e
Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), reconhecido
mundialmente como umas das principais ações para proteger as florestas
tropicais e combater as mudanças climáticas (o desmatamento e as
queimadas são a maior fonte do aquecimento global no Brasil).
Pesquisadores e técnicos ouvidos pelo
ISA concordam
que parte desse sucesso é fruto da consolidação de um ministério com
abordagem integrada de temas diferentes, capaz de fixar a pauta
ambiental e coordenar ações entre ministérios, governos federal,
estaduais e municipais. O PPCDAM é o melhor exemplo desse tipo
articulação.
Daí a impressão de que a política ambiental está sendo esfacelada
pelo governo Bolsonaro. Uma das medidas mais simbólicas nesse sentido
foi a retirada de parte das atribuições da Secretaria de Mudanças do
Clima e Florestas do MMA, inclusive a agenda climática. Uma das
principais questões levantadas pelos especialistas é: quem vai articular
as políticas cuja atribuição formal sumiu do MMA ou foi espalhada em
outras pastas?
Combate ao desmatamento
O pesquisador sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia
(Ipam) Paulo Moutinho diz que o novo desenho administrativo é equivocado
e ineficaz, em especial por causa da separação entre os temas
desmatamento e mudanças climáticas. “O desmatamento é gerado por um
processo multifacetado e multisetorial complexo. Se você trata do
assunto de modo compartimentalizado, como parece ser a intenção do
governo, perde-se a visão geral”, aponta.
A transferência do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do MMA para o
Ministério da Agricultura (MAPA) é considerado outro obstáculo ao
combate aos crimes ambientais. O CAR foi criado pelo novo Código
Florestal para registrar as áreas que podem ou não ser desmatadas e que
precisam se recuperadas em cada propriedade e posse rural.
O professor da Universidade Federal de Minas Gerais Raoni Rajão
ressalta que MMA e MAPA têm missões diferentes e que o trabalho de
monitorar e punir os desmatamentos, permitido pelo CAR, exige uma
autonomia que a Agricultura não tem. Ele lembra que os ruralistas, que
agora controlam as duas pastas, historicamente defenderam o relaxamento
da fiscalização e foram contra a publicidade dos dados do cadastro,
considerada fundamental para conter o desmatamento.
“[A ministra da Agricultura] foi indicada pela bancada ruralista, que
não ficará feliz se, por exemplo, o CAR for usado para fazer algum tipo
de punição mais dura”, salienta. “Por que ela vai assumir o custo
político de punir 100% daqueles que agem ilegalmente e que não estão
regulares, se o benefício disso estará em outro ministério ou agenda?”
Diante da fragmentação e possível retrocesso na política de combate
ao desmatamento, Nurit Bensusan projeta três cenários possíveis: a
criação de uma espécie de força-tarefa ministerial que tente coordenar a
agenda; a transferência de funções para os Estados; o isolamento do
tema no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama). A especialista do
ISA reconhece que a perspectiva é pouco animadora.
A apreensão entre os ambientalistas é ainda maior porque o
enfraquecimento do MMA acontece ao mesmo tempo que as taxas de
desmatamento voltam a subir. Entre agosto de 2017 e julho de 2018, foram
derrubados 7.900 km² de floresta na Amazônia, um aumento de 13,7%.
Entre
agosto e outubro, a devastação teria aumentado 48%, de acordo com o
programa Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter-B), do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A situação pode se agravar porque o orçamento da área ambiental
federal vem caindo de forma consistente, enquanto a a execução
orçamentária está mais ou menos estagnada. O orçamento aprovado para
todo o MMA, incluindo órgãos vinculados, sofreu uma redução de R$ 480,5
milhões (12%), entre 2017 e 2018 (
veja análise do Inesce gráfico abaixo).
A assessoria do Mapa não respondeu aos pedidos de entrevista até o fechamento desta reportagem.
Inclui MMA e órgãos subordinados – Ibama, ICMBio, SFB, FNMA, FNMC e ANA
Prejuízos diplomáticos e comerciais
Outro consenso entre os entrevistados é que o desmantelamento da
agenda climática e de desmatamento trará prejuízos diplomáticos e
comerciais para o país. “Se o Brasil retroceder nesses aspectos, isso
vai ameaçar a reputação não apenas do país, como de suas commodities e
empresas exportadoras”, alerta Carlos Rittl, secretário-executivo do
Observatório do Clima.
O
presidente francês Emmanuel Macron e a chanceler alemã Angela Merkel já
sugeriram que as posições sobre meio ambiente do novo governo
brasileiro ameaçam o acordo comercial entre União Europeia e Mercosul.Editorial do Washington Post da semana passada defendeu boicote aos produtos brasileiros pelo mesmo motivo.
Rittl informa que o Brasil negocia hoje pelo menos US$ 1 bilhão de
dólares de investimentos internacionais para o combate ao desmatamento e
as mudanças climáticas. Cerca de US$ 500 milhões com o Fundo Verde de
Clima da ONU e outros US$ 500 milhões como empréstimos do banco de
desenvolvimento dos Brics. “Esses recursos ficam em xeque, em virtude da
dúvida sobre o compromisso do país com essas agendas”, conclui.
“Acompanho há mais de 20 anos as negociações internacionais sobre
clima e é impossível fazer qualquer negociação ou mesmo contestação na
diplomacia se não se souber quem é ‘o dono da bola’ em cada país, o
ministro que vai dar as diretrizes”, comenta Moutinho. “A desagregação
de poder ou liderança enfraquece o país de forma cruel. Ninguém dá mais
bola ou ele é isolado”, conclui.
Comunidades indígenas e tradicionais no MMA
Também causa preocupação a extinção da Secretaria de Extrativismo,
Desenvolvimento Rural e Combate à Desertificação do MMA e a
transferência da agenda econômica sobre o primeiro tema (castanha, açaí,
látex, óleos, essências etc) para a Agricultura.
O problema é que na política agora incorporada do Mapa não há mais
referências às populações indígenas e tradicionais. Um setor específico
sobre a produção econômica dessas comunidades existia no MMA há 20 anos.
A pauta vinha sendo apoiada pela Política de Garantia de Preços Mínimos
para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), que também fica sem
paradeiro com a extinção da Secretaria de Extrativismo.
Somente a comercialização de produtos da sociobiodiversidade
movimentou, em média, R$ 1,43 bilhão ao ano no Brasil, entre 2013 e
2016, de acordo com o IBGE. O total é ainda maior porque não estão
contabilizados produtos beneficiados, a comercialização de madeira e
seus derivados e produtos oriundos das roças e rios. Parte importante
dessa produção vinha sendo viabilizada pela PGPM-Bio.
Com o fim da Secretaria de Extrativismo, não se sabe também qual será
o futuro da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de
Terras Indígenas (PNGATI), reconhecida hoje como uma das políticas
ambientais mais importantes do Brasil – quase 14% do território nacional
está em Terras Indígenas, as áreas mais preservados do país. Com apoio
da iniciativa, pelo menos 104 Planos de Gestão Ambiental e Territorial
foram finalizados ou estão em elaboração, segundo a Fundação Nacional do
Índio (Funai).
Também não há na nova estrutura do MMA uma instância para ancorar o
Plano Nacional de Fortalecimento das Comunidades Extrativistas e
Ribeirinhas (Planafe), criado em abril.
Joaquim Belo, presidente do Conselho Nacional das Populações
Extrativistas (CNS), está preocupado sobretudo com iniciativas para
garantia de água tratada e energia nas comunidades promovidas pelo
Planafe. Ele conta que, com o apoio da antiga secretaria, a legislação
foi alterada para permitir a implantação na Amazônia de cisternas,
política já consolidada no Nordeste. Mais de três mil famílias já foram
atendidas e um edital do BNDES para atender outras 25 mil está pronto.
“Para nós a mudança é terrível, um balde de água fria. Estamos
falando de segmentos muito marginalizados no processo histórico. No
momento em que conseguimos algum espaço para essa agenda, vem uma medida
como essa e voltamos para a estaca zero”, critica .
Participação e articulação com organizações e movimentos sociais
A extinção da Secretaria de Articulação Institucional e Cidadania
Ambiental do MMA indica ainda dificuldade em lidar com a sociedade
civil. “Os órgãos ambientais sozinhos não têm condições de fazer valer a
legislação. A medida sinaliza um fechamento do diálogo com a sociedade,
que é um prejuízo para todos”, critica Adriana Ramos, sócia do
ISA.
Ela lembra que a política ambiental brasileira foi pioneira na adoção
de instrumentos de articulação e participação direta, a exemplo da
criação do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), em 1981.
Do ISA – Instituto Socioambiental, in
EcoDebate, ISSN 2446-9394, 10/01/2019
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