Desde o início do ano passado, os brasileiros consumiram,
inadvertidamente, até 2 milhões de cabeças de gado provenientes de áreas
de conservação ambiental, terras indígenas e fazendas que usam trabalho
análogo à escravidão dos Estados de Mato Grosso e Amazonas. O dado foi
apurado pela empresa JBS, maior frigorífico da América Latina, e
entregue na semana passada ao Ministério Público Federal.
A companhia identificou um total de 3.864 propriedades rurais
que, em tese, não poderiam fornecer os animais para abate. Nesse
universo, 2.217 fazendas se encontram em áreas embargadas pelo Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Outras 81 criam gado em área de desmatamento e 1.127 ocupam unidades de
conservação.
Diante das irregularidades, a JBS evitou adquirir o gado, mas
verificou que os animais foram vendidos a outros frigoríficos, cujos
nomes não foram divulgados. Procurado, o Ibama não se pronunciou sobre
os números.
Embora não seja possível afirmar categoricamente, a falta de
fiscalização do poder público dá margem para que parte da carne termine
em contêineres, exportada para outros países.
"Os números mostram o que deixamos de comprar, mas alguém comprou", declarou ao
Estado
a diretora de Sustentabilidade da JBS, Angela Garcia. A empresa mapeou
ainda 158 fazendas em terras indígenas e 281 propriedades flagradas pelo
Ministério do Trabalho e Emprego como exploradoras de mão de obra em
regime análogo à escravidão.
Fiscalização. Embora todas as áreas irregulares façam
parte de cadastros federais, cabe aos Estados a fiscalização sobre a
comercialização dos animais, afirmou o secretário adjunto de Defesa
Agropecuária do Ministério da Agricultura, Enio Marques. Mesmo o Sistema
de Inspeção Federal (SIF) abrange somente metade do rebanho nacional.
"Quem emite documento sanitário é o governo do Estado",
explicou. "As indústrias precisam ter registro para vender no Brasil
inteiro e no exterior. Se alguém não tem os registros, é questão de
polícia, questão de ser clandestino", disse Marques.
Frigoríficos de três unidades da federação assinaram Termos de
Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal,
comprometendo-se a evitar a compra de carne bovina de estabelecimentos
inscritos nos cadastros federais.
O MPF vai investigar a lista entregue pela JBS.
Compromisso nacional. Diante do levantamento da JBS, o
MPF vai tentar celebrar instrumentos semelhantes com os demais Estados,
afirmou a diretora da empresa. "Os procuradores nos ouviram e, com base
nessas informações, vai haver uma atualização do compromisso", contou
Angela. "Esse acordo deve se estender ao País todo."
Uma medida simples, como melhorar o acesso e a confiabilidade do
dados do governo sobre fazendas irregularidades, poderia auxiliar as
empresas que querem cumprir a lei, disse Angela.
O Ministério do Trabalho informou que não tem informações sobre
as fazendas. A reportagem não conseguiu falar na sexta-feira com a
assessoria de imprensa da Fundação Nacional do Índio (Funai).