segunda-feira, 27 de junho de 2016

Todos os dias morre uma Juma

Por Mirella Lauria D’Elia
Juma era mascote do 1º Batalhão de Infantaria de Selva do Exército. A onça foi abatida após ser exposta durante o revezamento da Tocha Olímpica em Manaus e escapar. Foto: Vandré Fonseca
Pele de onças-pintadas apreendidas em Mato Grosso. Foto: Ascom/Ibama/MT


Talvez a comoção que sucedeu  o trágico fim da onça-pintada Juma desperte a sociedade para os conflitos socioambientais brasileiros. Trabalhar as dimensões humanas da conservação e manejo de animais silvestres é mais do que necessário, é urgente.


Todo dia morre uma onça-pintada -- pior, várias -- em razão da ignorância de pessoas e comunidades que vivem próximas a esses grandes predadores sobre sua biologia, comportamento; sobre como é possível reduzir os conflitos diários decorrentes dessa convivência. Infelizmente, não adianta apontarmos nossos dedos, sentados em nossos sofás urbanos.


É fácil julgar se você não vive a realidade dessas pessoas. Se quisermos uma saída, os maiores aliados serão a educação e o diálogo.


Todo dia morre uma onça-pintada em decorrência de pessoas que ainda insistem em abater esses indivíduos por prazer, por status, para aprisionar sua beleza singular em um tapete sob o qual jaz o escrúpulo humano. E não me venham com a história de que faz tempo que esse tipo de esse tipo de criatura não habita mais a Terra.


Todo dia morre uma onça-pintada atropelada por excesso de velocidade, por falta de reconhecimento de governos da necessidade de passagens de fauna nas estradas para a segurança de pessoas e animais;


Todo dia morre uma onça-pintada para que seu filhote seja feito de mascote, vendido numa fronteira do Brasil, principalmente se for melânico, criado por comunidades ribeirinhas até que se torne um problema para a segurança pública e para os órgãos ambientais. Há dezenas de grandes felinos em condições inadequadas de cativeiro precisando de destinação, muitas vezes insalubres, apesar dos esforços daqueles que se dedicam a melhorar suas condições de vida. Verba e estrutura nunca chegam.


Todo dia morre uma onça-pintada quando esta é subtraída da natureza e fica incapacitada de exercer seu papel biológico. Salvo os programas de cativeiro onde esses indivíduos são incluídos em planos de manejo sérios, que visam a conservação da espécie.


Para que fique claro, cabe a sociedade demandar esclarecimentos e cabe ao poder público apurar o acidente. Em qualquer esfera e instituição, seja ela pública ou privada, condutas abusivas precisam ser combatidas, revisadas e corrigidas. Nem sempre exibição de animais em público será sinônimo de conservação. Mas acredito que um animal acorrentado e exibido num evento desta magnitude foi um despropósito para a proteção da onça-pintada no Brasil. Sinto vergonha de que o mundo tenha presenciado tamanha infelicidade.


Precisamos nos educar e nos enxergar como sentinelas de nossas próprias riquezas e não como seus algozes. E me refiro a cada um de nós.


Não é a primeira vez que nossa fauna tem sua imagem utilizada como símbolo de eventos desportivos. Fuleco, o tatu-bola, foi mascote da Copa do mundo FIFA 2014. Agora Ginga, aqui representado por Juma, enfrentou um trágico fim ao “receber” a tocha olímpica das Olimpíadas Rio 2016.


Diariamente usamos, abusamos, subtraímos e depredamos nossa biodiversidade. E me assombra que eventos de visibilidade internacional como esse, que utilizam a nossa fauna como símbolo, que vendem sua imagem embutida em pelúcias, chinelos, camisetas, bonés, chaveiros e toda sorte de souvenires, repassem uma fração muito pequena equivalente das suas vendas para auxiliar projetos de conservação de espécies ameaçadas de extinção.


O tiro desferido contra Juma é a metáfora perfeita do dano que praticamos contra nossa biodiversidade. E a mudança cabe a todos nós. Espero que hoje encontre a liberdade merecida no lugar do qual nunca deveria ter saído, Juma!


E para aqueles que acreditam que o ocorrido foi uma exceção, compartilho imagens de absurdos cometidos contra onças-pintadas no Brasil. Nós que amamos e trabalhamos com esses magníficos animais precisamos engoli-los no nosso dia a dia.
Onça-pintada encontrada em cativeiro ilegal. Foto: Ibama
Onças caçadas: cabeças e caudas estavam sendo transportadas para serem exibidas como troféus. Foto: Divulgação/PRF Onça-pintada encontrada em cativeiro ilegal. Foto: Ibama
Segundo os policiais, tratava-se de um animal adulto. A onça-parda está na lista de animais em extinção do ICMBio na categoria vulnerável. Crédito: PMA-MS

Apesar do desabafo, espero que todos os projetos sérios de conservação de onça-pintada de cativeiro e vida livre sejam amplamente divulgados e apoiados. E que suas equipes sejam reconhecidas. Convido cada um dos envolvidos a formar uma corrente positiva para divulgar seus trabalhos pela América Latina, que conte como a onça-pintada transforma a vida de quem se dedica a salvá-la. Por mais respeito pela onça-pintada!

Grandes felinos são animais selvagens e merecem respeito à sua natureza

Por Peter G. Crawshaw Jr.
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Onças-pintada ataca repórter enquanto, que é salvo por militares. Felizmente, não houve ferimentos nem o animal foi abatido. Foto: Captura de vídeo YouTube
Onças-pintada ataca repórter enquanto, que é salvo por militares. Felizmente, não houve ferimentos
nem o animal foi abatido. Foto: Captura de vídeo YouTube


Tendo em vista o clamor nacional e internacional levantado pela morte da onça Juma por militares, depois da participação da mesma no evento de troca da tocha olímpica em Manaus, me vejo compelido a também expressar a minha opinião sobre os motivos que ocasionaram o sacrifício do animal.


O fato de ter passado uma boa parte da minha vida estudando a onça-pintada no Pantanal e em outros biomas no Brasil, e também com alguma experiência em cativeiro, acho que me qualifica a externar minha opinião.


Em que pese o fato de o Exército Brasileiro estar contribuindo na preservação dessa espécie ameaçada, através do trabalho que desenvolvem no Comando Militar da Amazônia (CMA), com a manutenção de exemplares encaminhados pelo IBAMA e por outras instituições, provindos de situações irregulares, é também claro que nem sempre são utilizados os métodos mais indicados para a sua manutenção adequada.


Com a justificativa de sua bravura e ferocidade, a espécie é usada como símbolo do CMA, e as onças são expostas como mascotes do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS). Segundo o coronel Luiz Gustavo Evelyn, chefe da 5º Seção de Comunicação Social do CMA, esses mascotes são usados para participar “em formaturas, trocas de comando e visitas de autoridades, e tudo se dá por ser um animal símbolo do CMA, então essa participação é corriqueira e efetiva”. Ainda segundo o coronel, “há um procedimento padrão com a presença de veterinários e tratadores, que prendem a onça por coleiras e correntes, além dos dardos tranquilizantes que são usados em caso de necessidade”.


"...se não houve ainda acidentes mais sérios (pelo menos conhecidos), é um caso de “mais sorte do que juízo” e certamente mais por mérito das onças do que do Homem."
É justamente aqui que reside o problema. Qualquer pessoa que tenha um mínimo de experiência com anestesia de onças pintadas ou de qualquer outro grande felino sabe que um anestésico, principalmente quando injetado por meio intramuscular, através de um dardo, levará, forçosamente, de três a quinze minutos para conter o animal, dependendo do anestésico usado.


A isso deve-se somar ainda o efeito que o estresse causado pela exposição do animal aos barulhos de uma multidão ou de público em geral possa ter no rganismo o animal, ao metabolizar a droga. E, dada a força desproporcional que uma onça-pintada tem, não serão coleiras e correntes que irão segurar um animal assustado e estressado, e o estrago que ele poderá causar, mesmo depois de atingido por um dardo, vai ser considerável, até que o anestésico possa agir, mesmo considerando o intervalo mínimo de três minutos.


Isso fica dolorosamente claro no exemplo citado pelo próprio coronel, no caso de Juma: “...dentro do Zoológico do CIGS, num procedimento corriqueiro, na transferência do animal de um ambiente para o outro, ele (a onça) veio a se evadir. Neste momento estavam presentes dois veterinários e três tratadores, como de costume. Foi feito todo o procedimento protocolar de captura, com a utilização de dardo tranquilizante, mas foi ineficaz. Para preservar a integridade física do veterinário o animal foi detido. Ela avançou no veterinário e aí o animalzinho foi detido [morto]”.


 Onde julgado “ineficaz”, entenda-se que não havia como, não existe um anestésico que tenha efeito imediato como uma bala de pistola – e então, o “animalzinho” teve que ser sacrificado.


Em uma outra situação envolvendo uma onça do CIGS, um repórter se viu “em palpos de onça”, quando ao fazer uma reportagem, teve que ser resgatado por quatro soldados, que ajudaram a conter o animal, em um recinto telado


Embora de menor gravidade, fica claro que se o animal, por algum motivo, se tivesse tornado agressivo e realmente quisesse machucar o repórter, os soldados de apoio não teriam sido suficientes para contê-lo – e, mais uma vez, ele provavelmente teria que ser sacrificado – não sem ferimentos potencialmente sérios em uma ou mais das pessoas envolvidas. Portanto, pela minha experiência com esses animais – e pela forma de manipulação que vejo na exposição das onças do CIGS em paradas militares e em eventos públicos – minha reação é que se não houve ainda acidentes mais sérios (pelo menos conhecidos), é um caso de “mais sorte do que juízo” e certamente mais por mérito das onças do que do Homem.


Onças pintadas, como qualquer outro grande felino, não são animais domésticos e nunca deveriam ser tratados como tal. Em uma fração de segundos, um animal que sempre teve um comportamento dócil pode se assustar por um motivo banal, e reagir instintivamente, atacando e às vezes ferindo mortalmente uma ou mais pessoas. Em alguns casos, nem mesmo uma bala poderá ser rápida o suficiente para evitar uma tragédia bem maior do que a ocorrida com Juma. E como um dos saldos positivos desse evento, fica ao menos a satisfação de ver a reação popular gerada em defesa da perda tão inútil da vida desse animal.


Espero que essa reação se mantenha ativa e tão efetiva no combate às outras formas de mortalidade, como o desmatamento, a caça clandestina, e, principalmente, o conflito com a pecuária, que tem levado a onça-pintada à beira da extinção na Mata Atlântica, no Cerrado, na Caatinga, e mesmo em algumas áreas do Pantanal e Amazônia. Infelizmente, ainda há muitas Jumas morrendo todos os dias...