quarta-feira, 26 de julho de 2017

Criança e Natureza: Precisamos trazer áreas verdes para nossas cidades







É necessário pensar em novos modelos para nossas cidades, com mais áreas verdes e natureza, pois ninguém quer morar em um lugar onde não consegue estar

MARIA ISABEL BARROS*
08/06/2017 - 08h28 - Atualizado 08/06/2017 09h09

Crianças brincam com elementos naturais. São oportunidades raras no espaço público urbano (Foto: Renata Ursaia - Instituto Alana - divulgação)


Em 2008, pela primeira vez na história foi registrado que a maior parte da população mundial morava em cidades. No Brasil, esse número chegava a 84% da população, segundo dados do IBGE 2010. O estilo de vida apressado, que adotamos ao morar em centros urbanos, nos afasta, e também nossas crianças, do convívio com a natureza.


No livro A última criança na natureza, o autor, Richard Louv, aponta que o aumento de doenças modernas, que já atingem as crianças, como hiperatividade, déficit de atenção e depressão, tem origem no modo de vida urbana e na falta do contato com a natureza. Provavelmente, você se recorda de ter brincado em uma área livre, em sua infância. Mas, se não mudarmos nossa forma de agir e pensar, as próximas gerações talvez não tenham essa oportunidade.

>> A série completa Criança e Natureza


Existem movimentos em diversos países promovidos por pessoas ou organizações que sonham reverter anos e anos de declínio no convívio com a natureza. No entanto, precisamos, todos, fazer nossa parte para tornar as cidades espaços mais ricos em natureza. Cultivar uma árvore ou planta nativa no jardim de casa, cobrar políticas públicas que priorizem a preservação e instalação de parques ou outras áreas verdes, também são parte de nossos deveres como cidadãos. Afinal, queremos ser lembrados pelas gigantes selvas de pedra que construímos ou pelas gigantes selvas verdes que preservamos?

>> Belo Horizonte é a grande capital com menor taxa de áreas verdes


Precisamos transformar nossas cidades em cidades biofílicas, que melhoram nossa saúde física e psicológica, nossa sensação de prazer e felicidade e nossa capacidade de aprender, além de promover encontros abundantes com a natureza em nosso cotidiano. O jornalista e especialista em advocacy pela infância Richard Louv, conversou com o Criança e Natureza, do Instituto Alana, e falou sobre a importância de pensar o futuro garantindo a presença da natureza nas cidades, escolas, ambientes de trabalho e lazer. O mundo do futuro precisa ser um lugar para onde todos queiram ir.

Veja  video:

 https://youtu.be/Yond9PDzVVg

*Maria Isabel Barros é engenheira florestal e mestre em conservação de ecossistemas, trabalha com educação e conservação da natureza. Desde 2015 integra a equipe do Criança e Natureza, do Instituto Alana.

Meio ambiente: “As ações do governo mancham a imagem do Brasil”


26 Julho 2017

Há 37 anos estudando a Amazônia, mudanças climáticas e povos indígenas, o antropólogo americano Steve Schwartzman teve o seu primeiro contato com o Brasil nos anos 80, quando iniciou uma pesquisa de campo com os índios da tribo Panará no Parque Indígena do Xingu, onde viveu por dois anos e aprendeu a língua da tribo.

Essa experiência forma uma trajetória que o coloca como um dos grandes especialistas em povos indígenas, florestas tropicais, desmatamento e redução de emissões de carbono.

Para Schwartzman, que é conselheiro do IPAM desde 2005 e também diretor sênior do Environmental Defense Fund, o presidente Temer “joga um jogo muito perigoso” ao atender a bancada ruralista, freando as demarcações de terras indígenas. De acordo com o pesquisador, são atitudes como essa que colocam em xeque a credibilidade do Brasil no mundo.

O antropólogo concedeu entrevista ao  Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), 20-07-2017.

Steve Schwartzman


Eis a entrevista.


Na contramão de garantir a floresta em pé, o presidente Temer assinou um parecer que pode parar a demarcação de terras indígenas. Qual o risco dessa ação?
Essa é uma profunda e grave questão. Quem se diz representante dos produtores rurais no congresso tinha de ter consciência que eles dependem da chuva para produzir e já é comprovado que a floresta em pé é uma garantia. A demarcação de terras, além de assegurar um direito dos indígenas, é uma forma de controlar o desmatamento e permitir a produtividade agrícola. Esse parecer é não só uma injustiça como um contrassenso enorme. Esse é um jogo muito perigoso do presidente com a bancada ruralista. São ganhos fictícios que vão manchar seriamente a imagem do Brasil internacionalmente.


Qual a importância de territórios indígenas para o clima mundial?
Os territórios indígenas têm um peso decisivo na conservação do meio ambiente, protegendo 30% do carbono na Amazônia. Porém, grande parte dessas florestas está sob pressão. Se perdermos esse estoque de carbono, ficará mais difícil atingir a meta de conter o aquecimento em 2ºC. Mas se conseguirmos defender essas terras e viabilizar a economia sustentável, isso significará um grande passo para conter a fronteira agrícola e o desmatamento.


O governo brasileiro tem colocado em prática medidas que vão na contramão do discurso, como a redução da Floresta Nacional do Jamanxim, na Amazônia. Falta credibilidade e sobram incentivos a favor do desmatamento?
Propor a redução de Jamanxim por meio de medida provisória, vetar e transformar em projeto de lei, além da MP de grilagem, tudo isso é um sinal preocupante. É um cálculo de curto prazo muito prejudicial que irá impactar o Brasil a longo prazo.

Ampliando para o cenário internacional, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anulou os compromissos assumidos pelos EUA na COP 21. Como isso impacta diretamente nas metas mundiais e como os estados americanos estão respondendo a isso?
É um sinal péssimo, porém precisamos levar em consideração algumas questões. As emissões de gases de efeito estufa dos EUA estão caindo, o que está relacionado com a transformação do mercado de energia. A Califórnia e outros estados mantêm as políticas firmadas, inclusive organizando alianças que envolvem centenas de municípios para participar da Conferência do Clima esse ano.


Apesar dessas iniciativas, a postura de Trump é um prejuízo muito grande para os EUA, afinal China e Europa continuam investindo em um desenvolvimento sustentável. Mesmo economicamente não é interessante apostar em um modelo energético ultrapassado.


Como você se sente dentro do conselho de uma instituição como o IPAM?
É uma honra e um prestígio compor o corpo de conselheiros do IPAM, uma instituição que contribui efetivamente em defesa do meio ambiente. O Brasil e o mundo precisam de um IPAM cinco vezes maior.

"Um acerto de contas para a nossa espécie": o filósofo profeta do antropoceno


26 Julho 2017

Timothy Morton quer que a humanidade desista de algumas das suas crenças fundamentais, desde a fantasia de que podemos controlar o planeta até a noção de que estamos "acima" dos outros seres. Suas ideias podem parecer estranhas, mas estão ganhando força.

A reportagem é de Alex Blasdel, publicada por The Guardian, 15-06-2017. A tradução é de Luisa Flores Somavilla.

Alguns anos atrás, Björk começou a se corresponder com um filósofo cujos livros ela admirava. "Oi timothy", foi sua primeira mensagem para ele. "Faz muito tempo que eu quero escrever esta carta". Ela estava tentando nomear seu gênero singular, para classificar seu trabalho para a posteridade antes que os críticos o fizessem. Ela pediu ajuda a ele para definir a natureza de sua arte - "não só para definir para mim mesma, mas também para todos os meus amigos e, na verdade, toda uma geração".


Acontece que o filósofo, Timothy Morton, era fã de Björk. Sua música, ele contou-lhe, tinha sido "uma influência muito profunda no meu modo de pensar e na vida em geral". A sensação de estranha intimidade com outras espécies, a fusão de atmosferas em suas músicas e vídeos - ternura e horror, estranheza e alegria - "é o sentimento de consciência ecológica", disse ele. O próprio trabalho de Morton trata das implicações dessa estranha consciência - o conhecimento de nossa interdependência com outros seres -, que ele acredita comprometer os pressupostos que sustentam há muito tempo uma separação entre humanidade e natureza. Para ele, esta uma característica define a nossa época e nos leva a mudar nossas "ideias fundamentas sobre o significado da existência, sobre o que é a Terra e o que é a sociedade".


Ao longo da última década, as ideias de Morton vêm ganhando espaço nos círculos mainstream. Hans Ulrich Obrist, diretor artístico da galeria Serpentine de Londres e talvez a figura mais poderosa da arte contemporânea no mundo, é um de seus principais incentivadores. Ele disse aos leitores da Vogue que os livros de Morton estão entre as obras culturais mais preeminentes do nosso tempo e que os recomenda a muitos de seus colaboradores. O aclamado artista Olafur Eliasson tem viajado o mundo com Morton para falar nas principais aberturas de suas exposições. Trechos de correspondências entre Morton e Björk foram publicados como parte de sua retrospectiva de 2015 no Museu de Arte Moderna de Nova York

A linguagem de Morton está "infectando todas as Humanidades pouco a pouco", disse seu amigo e também filósofo Graham Harman. Embora muitos acadêmicos sejam conhecido por escrever exclusivamente para seus colegas mais próximos, o vocabulário conceitual peculiar de Morton - "Ecologia Sombria" o estranho- estranho", "a malha" - foi incorporado por escritores em uma série de áreas, de literatura e epistemologia à teoria legal e à religião. No ano passado, ele foi incluído em uma lista muito discutida dos 50 filósofos vivos mais influentes. Suas ideias também ganharam repercussão em veículos de imprensa tradicionais, como Newsweek, New Yorker e New York Times.


A popularidade de Morton advém, em partes, de seus ataques a modos instituídos de pensamento. Seu livro mais citado, Ecology Without Nature, diz que precisamos eliminar o conceito de "natureza" de modo geral. Ele defende que uma peculiaridade do nosso mundo é a presença de coisas gigantescas que ele chama de "hiper-objetos" - como o aquecimento global e a internet - que tendemos a pensar como ideias abstratas, porque não conseguimos entendê-las, apesar de serem radicalmente reais. Ele acredita que todos os seres são interdependentes e defende a hipótese de que tudo no universo tem uma espécie de consciência, desde as algas e as pedras até facas e garfos.


Ele afirma que os seres humanos são um tipo de ciborgue, já que somos constituídos por todos os tipos de componentes não humanos. Ele gosta de salientar que justamente o que supostamente nos torna quem somos - nosso DNA - contém uma quantidade significativa de material genético advindo de vírus. Segundo ele, já somos governados por uma inteligência artificial primitiva: o capitalismo industrial. Ao mesmo tempo, acredita que existem alguns "produtos químicos experimentais estranhos" no consumismo que ajudarão a humanidade a evitar uma crise ecológica total.



As teorias de Morton podem parecer bizarras, mas estão em sintonia com a ideia do século XXI que mais abalou estruturas: a de que estamos entrando em uma nova fase da história do planeta - agora chamada por Morton e muitos outros de "Antropoceno".



Nos últimos 12.000 anos, os seres humanos viveram em uma época geológica chamada Holoceno, conhecida por climas temperados relativamente estáveis. Pode-se dizer que foi a Califórnia da história planetária. Mas está chegando ao fim. Recentemente, começamos a modificar a Terra tão drasticamente que, de acordo com muitos cientistas, estamos vivendo o começo de uma nova época. Após as mais curtas férias geológicas, parece que estamos entrando em um período mais volátil.



O termo antropoceno, do grego antigo anthropos, que significa "humano", reconhece que os seres humanos são a principal causa da atual transformação da Terra. Condições meteorológicas extremas, cidades submersas, escassez aguda de recursos, espécies extintas, desertos onde antes havia lagos, precipitação radioativa: se ainda houver vida humana na Terra daqui a dezenas de milhares de anos,sociedades que não podemos imaginar terão de enfrentar as mudanças que estamos causando hoje.



Morton observou que 75% dos gases de efeito estufa que estão na atmosfera neste momento ainda estarão lá daqui a meio milênio. Daqui a 15 gerações. Levará mais 750 gerações, ou 25 mil anos, para que a maior parte desses gases seja absorvida pelos oceanos.



O antropoceno não é apenas um período de ruptura causada pelo homem. Também é um momento de autoconsciência intermitente, em que a espécie humana está se conscientizando de que é uma força planetária. Não estamos apenas levando ao aquecimento global e à destruição ecológica; nós sabemos disso.



Uma das ideias mais poderosas de Morton é que estamos condenados a viver com essa consciência o tempo todo. Não apenas quando os políticos se reúnem para discutir acordos ambientais internacionais, mas quando fazemos algo tão comum quanto conversar sobre o tempo, pegar uma sacola de plástico no supermercado ou regar a grama. Vivemos em um mundo com um cálculo moral que não existia antes. Agora, qualquer coisa que se faça é uma questão ambiental. Não era assim há 60 anos - ou pelo menos as pessoas não estavam conscientes disso. Tragicamente, apenas degradando o planeta é que percebemos o quanto somos parte dele.



Morton acredita que isso constitui uma revolução na compreensão do nosso lugar no universo comparável às promovidas por Copérnico, Darwin e Freud. Ele é apenas um dos milhares de geólogos, cientistas do clima, historiadores, escritores e jornalistas que escrevem sobre essa turbulência, mas talvez consiga, melhor do que ninguém, colocar em palavras o sentimento perturbador de presenciar o surgimento dessa era extrema.
"Você gira a ignição do seu carro", ele escreve. "E se assusta."


Cada vez que você liga o motor, você não quer causar danos à Terra", muito menos causar a Sexta Extinção em Massa na história de quatro bilhões e meio de anos de vida nesse planeta ", mas "é justamente isso que está acontecendo". Parte do desconforto vem do fato de que nossos atos individuais podem ser estatisticamente e moralmente insignificantes, mas ao multiplicá-los milhões e bilhões de vezes - já que são realizados por toda a espécie - são um ato coletivo de destruição ecológica. O branqueamento dos corais não ocorre apenas lá na Grande Barreira de Corais; está acontecendo onde houver um ar condicionado ligado. Resumindo, segundo Morton: "tudo é interligado".



À medida que seu trabalho se espalha para além dos gigantes da cultura, como Björk, para as páginas da grande mídia, Morton torna-se o guia mais popular para a nova época. Sim, ele tem algumas ideias que parecem loucas sobre como é estar vivo nesse momento - mas o que significa estar vivo agora, no Antropoceno, é muito louco.



Ao longo de sua juventude, o Antropoceno tornou-se um conceito com um alcance tão amplo como qualquer outro paradigma histórico-mundial que se preze (o que, se é sal marinho, inclui agora uma boa dose de resíduos sintéticos em pequenas partículas chamadas Microplasticos). O que começou como um debate técnico nas ciências da terra levou, na opinião de Morton, algumas das nossas formas mais básicas de entender o mundo a serem confrontadas. No Antropoceno, segundo Morton, estamos passando por "uma perda traumática de coordenadas".



Sua criação é atribuída a Paul Crutzen, vencedor do Prêmio Nobel especialista em química atmosférica, e ao biólogo Eugene Stoermer, que contribuiu no início da popularização do termo, em 2000. Desde o início, muitos levaram o conceito de Crutzen e Stoermer a sério, apesar de não concordar com ele. Desde o final do século XX, os cientistas consideravam o tempo geológico como um drama pontuado por grandes cataclismos, não apenas um acúmulo gradual de mudanças incrementais, e fazia sentido considerar a própria humanidade como o último cataclismo.



Imagine geólogos de uma civilização no futuro examinando as camadas de rocha que estão em lento processo de formação hoje, como nós examinamos os estratos de rocha que se formaram quando os dinossauros foram exterminados. Essa civilização verá evidências de nosso impacto (geologicamente) repentino no planeta - como plásticos fossilizados e camadas tanto de carbono, pela queima de combustíveis de carbono, e de partículas radioativas, pelos testes nucleares e explosões - de forma tão clara quanto as evidências do rápido desaparecimento dos dinossauros. Já podemos observar a formação dessas camadas.



Por alguns anos, houve um debate acalorado sobre a utilidade do conceito. Pessoas que discordam da ideia argumentaram que o "sinal geológico" da humanidade ainda não evidente o suficiente para justificar o surgimento de uma nova época, ou que o termo não tinha utilização científica. Apoiadores se questionavam qual seria a data do início do antropoceno. De acordo com o advento da agricultura, há muitos milênios atrás? Ou a invenção da máquina a vapor no século XVIII e o início da Revolução Industrial? Ou ainda o dia 16 de julho de 1945, às 5:29, quando primeiro teste nuclear explodiu sobre o deserto do Novo México? (Morton, com sua maneira abrangente de ver as coisas, trata todos esses momentos como cruciais).



Depois, em 2002, Crutzen apresentou seus argumentos na revista científica Nature. A ideia de um momento na história planetária em que a influência humana era predominante parecia juntar tantos desenvolvimentos diferentes - desde o recuo das geleiras até o pensamento moderno sobre os limites do capitalismo - que o termo começou a se espalhar rapidamente para outras ciências da terra e não parou mais.



Desde então, foram fundadas pelo menos três revistas acadêmicas especializadas no Antropoceno, várias universidades criaram grupos de pesquisa para refletir sobre suas implicações, estudantes de Stanford começaram a produzir um podcast conhecido chamado Generation Anthropocenee milhares de artigos e livros foram escritos sobre o assunto, em áreas desde a economia até a poesia.



Alguns pensadores se opõem ao termo, argumentando que ele reforça a visão antropocêntrica do mundo que nos levou à beira de um desastre ecológico. Outros dizem que a destruição da Terra deve ser atribuído não à da humanidade em geral, mas ao capitalismo (predominantemente branco, ocidental e masculino). Foram criados termos alternativos, como "Capitaloceno", mas nenhum pegou. Eles não têm o apelo existencial inquietante de antropoceno, que enfatiza nossa culpa e nossa fragilidade como seres humanos.



Em torno de 2011, o Antropoceno "começou a surgir nos jornais pela primeira vez", de acordo com a história recente do conceito descrita pelo estudioso Jeremy Davies. A BBC, o The Economist, a National Geographic, a Science, entre outros, abordaram o conceito. As mudanças no planeta haviam feito com que jornalistas levassem reportagens sobre o meio ambiente cada vez mais ao contexto da geo-história - níveis de dióxido de carbono na atmosfera não chegavam a 400 partes por milhão desde o Plioceno, há três milhões de anos - e o Antropoceno tornou-se uma forma rápida e útil de colocar a atividade humana na perspectiva geológica do tempo profundo.


Para Morton, que tinha acabado de começar a escrever sobre isso, encerrava sua preocupação com a forma como os diferentes seres, incluindo os seres humanos, dependem uns dos outros para a sua existência - fato que as várias calamidades do Antropoceno destacavam.


Em 2014, a palavra Antropoceno (em inglês, Anthropocene) foi introduzida no Oxford English Dictionary e, no ano passado, foi formalmente aprovada por um grupo de trabalho dentro da Comissão Internacional de Estratigrafia, que monitora o tempo geológico oficialmente. O ano de 1950 foi escolhido para ser uma data estimada, em que uma das marcas mais claras da atividade humana global na crosta terrestre apareceu: isótopos de plutônio de vários testes nucleares.


O anúncio do grupo de trabalho foi tão importante que estampou a primeira página do jornal britânico The Guardian. (Em toda a mídia, o conceito de Antropoceno agora é usado para enquadrar tudo, desde críticas de ficção até discussões sobre a presidência de Donald Trump.) Como disse Jan Zalasiewicz, presidente do grupo e um dos principais especialistas do Antropoceno, essa nova época "estabelece uma trajetória diferente para o sistema terrestre" e só agora estamos "percebendo as dimensões e a persistência da mudança".


Já houve outros períodos de intensa flutuação climática, juntamente com a extinção em massa. O mais recente foi há 66 milhões de anos, quando um meteorito de dez quilômetros de diâmetro atingiu o que hoje é a Península de Yucatán. Estima-se que seu impacto seja de 2 milhões de vezes a força da bomba atômica mais poderosa já detonada, alterando a atmosfera do planeta e eliminando três quartos das espécies existentes. Mas em comparação foi um evento simples, que as ciências físicas têm plenas condições de entender.



Para entender a mudança histórica que está sendo conduzida pela atividade humana, precisamos de mais do que geologia, meteorologia e química. Se isso é um acerto de contas para nossa espécie, precisamos de um guia intelectual - alguém que nos diga se devemos entrar em pânico ou não e o quanto o reconhecimento de que estamos mudando o planeta nos fará mudar.



A consciência que ganhamos no antropoceno, de modo geral, não é feliz. Muitos ambientalistas estão alertando sobre uma iminente catástrofe global e exigindo que as sociedades industriais revejam sua trajetória. Morton se posiciona de forma mais iconoclasta. Em vez de alarmar ainda mais a respeito das questões ecológicas como se fosse um Paul Revere do apocalipse, ele defende o que chama de "ecologia sombria", que afirma que a tão temida catástrofe já ocorreu.



O que significa não somente que um aquecimento global irreversível já está acontecendo, mas também algo mais abrangente. "Nós, Mesopotâmicos" - como ele chama as últimas 400 gerações de seres humanos vivendo em sociedades agrícolas e industriais -, pensamos que estávamos apenas manipulando outras entidades (através da agricultura e da engenharia, e assim por diante) no vácuo, como se trabalhássemos em um laboratório e elas estivessem em alguma placa de petri gigante chamada "natureza" ou "ambiente".



No Antropoceno, segundo Morton, devemos despertar para o fato de que nunca nos separamos ou controlamos as coisas não-humanas do planeta, mas sempre estivemos intimamente ligados a elas. Não podemos nem queimar ou jogar nada fora sem que as coisas voltem para nós de alguma forma, como a poluição nociva. Nossas ideias mais estimadas sobre a natureza e o meio ambiente - de que são separados de nós e relativamente estáveis - foram destruídas.


Morton compara esta constatação com histórias de detetives em que o caçador percebe que está atrás de si mesmo (seus exemplos favoritos são Blade Runner e Édipo Rei). "Nem todos estão preparados para se assustar o suficiente" com essa epifania, diz ele. Mas há uma outra coisa: apesar de os humanos terem causado o Antropoceno, não podemos controlá-lo. "Meu Deus!" exclamou Morton para mim fingindo horror. "Minha tentativa de escapar da teia do destino foi a rede do destino ".



Para Morton, a principal razão para estarmos enxergando a nossa estreita relação com o mundo que estamos destruindo é o nosso encontro com a realidade dos hiper-objetos - termo criado por ele para descrever os ecossistemas e os buracos negros, "distribuídos no tempo e no espaço de forma maciça"em comparação com seres humanos. Os hiper-objetos podem não parecer objetos da mesma forma, por exemplo, que bolas de bilhar, mas são igualmente reais e agora estamos encontrando-os conscientemente pela primeira vez.


O aquecimento global pode ter aparecido para nós como um tempo um tanto engraçado em algum lugar e depois como uma série de manifestações independentes (uma enchente mais forte ali, uma onda de calor mortal lá). Porém, agora o consideramos um fenômeno unificado, e as condições meteorológicas extremas e a quebra das antigas estações do ano são apenas seus elementos.



É através dos hiper-objetos que começamos a enfrentar o Antropoceno, argumenta Morton. Um dos seus livros mais influentes, intitulado Hyperobjects, examina a experiência de estar envolvido por essas entidades - realmente, fazer parte delas-, que são grandes demais para conseguirmos entender e controlar. Podemos vivenciar hiper-objetos como o clima em suas manifestações locais ou através de dados produzidos por cálculos científicos, mas sua escala e o fato de estarmos presos dentro deles significa que nunca podemos conhecê-los completamente. Por causa de tais fenômenos, estamos vivendo em um momento de mudanças literalmente impensáveis.



Isso leva Morton a um de seus argumentos mais impressionantes: que o Antropoceno está levando a uma revolução no pensamento humano. Os avanços na ciência estão ressaltando o quanto estamos "enredados" com outros seres - dos micróbios que representam cerca de metade das células do nosso corpo, à dependência da proteção térmica eletromagnética da Terra para a nossa sobrevivência. Ao mesmo tempo, os hiper-objetos, em sua grandeza, nos chama a atenção para os limites absolutos da ciência e, portanto, para os limites do domínio humano.



A ciência só consegue nos levar até aqui. Isso significa mudar nossa relação com as outras entidades do universo - sejam animais, vegetais ou minerais -, da exploração por meio da ciência à solidariedade na ignorância. Se não conseguirmos, continuaremos causando danos ao planeta e ameaçando estimados modos de vida e até a nossa própria existência. Ao contrário das fantasias utópicas de que seremos salvos pelo surgimento da inteligência artificial ou de alguma outra tecnologia, o Antropoceno nos ensina que não podemos superar nossas limitações ou a dependência de outros seres.



Só podemos conviver.
Pode até soar desolador, mas Morton vê isso como uma libertação. Se abandonarmos a ilusão de controlar tudo o que nos rodeia, poderemos nos reorientar a encontrar prazer a partir de outros seres e da própria vida. Morton acredita que o prazer pode nos levar a uma nova política. "Você acha que a vida ecologicamente correta significa ser totalmente eficiente e puro", diz no tuíte no topo de sua linha do tempo. "Errado. Significa que você pode ter uma discoteca em cada cômodo da casa."



Essas palavras são típicas de seu pensamento, que muitas vezes parte da desolação comum e dá uma guinada surpreendente. "Há uma verdadeira esperança em seu trabalho", diz Hans Ulrich Obrist sobre Morton. "Esperança e até mesmo otimismo estão presentes de alguma forma". Morton tem uma história curiosa sobre quando colocou energia eólica em casa, na zona rural de Houston, onde ele dá aulas em uma cadeira na Rice University. Depois de um ou dois dias "sentindo-se muito correto e santo", ele percebeu que poderia ter "estroboscópios potentes, decks e festas por horas e horas, o dia todo, todos os dias", causando muito menos impacto ao planeta.


"E esse é o verdadeiro futuro ecológico".
Em uma manhã de sábado no outono passado, saí para procurar Morton no festival de ideias da Serpentine Galleries, que acontece todos os anos, onde ele falaria naquele dia. Nas semanas anteriores, ele havia estado em Seul para ajudar Olafur Eliasson a abrir uma exposição individual; em Singapura, para falar na conferência Future Cities; em Bruxelas, para dar uma palestra intitulada "Nature Isn’t Real" em um parque à noite (ele disse que 250 pessoas compareceram); na Universidade de Exeter, onde ele abordou sua nova teoria de ação, "rocking", descrita por ele como "uma queerificação das categorias teístas de ativo versus passivo"; em Roma, onde, entre outras coisas, ficou bebendo martini e em Paris, onde ele foi a algumas raves com sua amiga Ingrid e ficou tão emocionado e exausto que passou a noite toda deitado no meio da pista de dança.



Se você tivesse que escolher um avatar para o Antropoceno, Morton poderia uma boa opção. Ele tem olhos azuis da cor do Ártico que espantam e parecem espantados ao mesmo tempo. Um pouquinho rechonchudo, sugerindo vulnerabilidade física, seu rosto tem um rubor eczemático e seu cabelo loiro fino tem formato de cardo, parecendo ter sobrevivido a algum inesperado. Na verdade, ele parece um tanto aflito. Entre outras coisas, ele sofre de uma grave apneia do sono, depressão profunda, enxaquecas graves e, pareceu ao longo de nossas conversas, ocasionais episódios de paranoia leve. Obrist, que gravou mais de 2.500 horas de entrevistas com artistas e filósofos, me disse que Morton foi o único que se "emocionou tanto que começou a chorar". (Eles estavam discutindo a extinção em massa.)




No início do ano, ao conversar com Morton por vídeo, ele estava em ebulição. Agora, sentado na parte de trás do restaurante da galeria, que havia sido reformado para ser um salão de shows, ele parecia estar quase sem combustível para queimar. Ele já havia publicado 14 ensaios durante o ano e continuava trabalhando em seus dois próximos livros. Nas próximas semanas, ele daria palestras em Chicago, em Yale, em Seul (novamente), em Munique e, finalmente, se reuniria com membros do Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa contemplando as mensagens que devemos enviar ao espaço em uma possível nova edição da missão Voyager.


(A original, em 1977, enviou duas sondas espaciais, que ultrapassaram o nosso sistema solar. Cada uma carregava consigo um disco de 12 polegadas revestido a ouro com sons e imagens representando a humanidade e outros seres terrestres.) No final de 2016, como Morton depois escreveu em seu blogue,ele completou 350 mil milhas de voo.



O itinerário de Morton representa a popularidade que a noção de Antropoceno adquiriu e a profundidade com que sua abordagem ressoa na nossa experiência cada vez mais inquietante do mundo. Analisando seus livros ou falando com ele pessoalmente, começa-se a suspeitar que a extravagância de seu pensamento e sua personalidade na verdade reflete algo muito estranho sobre o mundo.


Durante o almoço, Morton pediu um sanduíche natural de frango - tinha encerrado uma experiência anterior com veganismo - e discutimos o desenvolvimento de seu pensamento. Enquanto ele comia, fui lembrado de um relatório recente que concluiu que quase 60 bilhões de frangos são abatidos por ano no mundo inteiro, o que, nas palavras de Jan Zalasiewicz, significa que suas carcaças foram "fossilizadas em milhares de aterros sanitários e em várias esquinas no mundo todo".


Esse pensamento leva imediatamente a outro: sobre as "superbactérias" que criamos pelo uso generalizado de antibióticos, principalmente na produção pecuária industrial. A partir daí, é um pulo para pensar em outros fenômenos estranhos da nossa nova época, como pedras feitas de plástico e conchas marinhas e as mudanças na rotação da Terra causadas pelo derretimento de lençóis de gelo. A lista desses fatos inquietantes do antropoceno não acaba mais.



É possível, na primeira ou segunda vez que se encontra Morton, que se questione se há uma mistura de seu ar meio hippie, sua emotividade, seu talento intelectual. Mas seus amigos de infância e familiares dizem que o engajamento visceral com a ecologia e sua habilidade acadêmica remontam à infância.  


Morton nasceu no noroeste de Londres, em 1968, em um período em que uma crescente conscientização da ameaça ecológica ainda andava de mãos dadas com a sensação de que as pessoas poderiam mudar o mundo para melhor, possivelmente sob a influência do LSD. Depois que seus pais, ambos violinistas de concertos, se divorciaram no final da década de 1970, seu pai partiu em uma embarcação para protestar com o Greenpeace. Sua mãe era uma feminista comprometida que atuava na Campanha do Desarmamento Nuclear.



Desde cedo, Morton destacou-se nos estudos. Ele recebeu a principal bolsa de estudos da escola de elite St Paul's School, em Londres, por cinco anos seguidos e depois foi para Oxford para estudar inglês. Suas notas eram as mais altas da disciplina em toda a universidade em seu primeiro ano e teve excelente desempenho em suas provas. Ir em nos estudos era importante para Morton, mas ele acabou chegando à conclusão de que é "secundário em relação a outra coisa: estar vivo".


Sua vida assumiu traços da forma que seu trabalho adotaria mais tarde. Era mais do que acumular conhecimento; tratava-se também de buscar prazer e intimidade. No segundo ano de graduação, ele e seu colega de quarto, Mark Payne, agora estudioso da Universidade de Chicago, "tiveram experiências com ácido ouvindo Butthole Surfers e conversando sobre Blake".


(Payne diz que eles usavam ácido e falavam sobre Milton.) Ele também se apaixonou pela primeira vez. Na pós-graduação, Morton usava cabelo comprido, jaqueta de camurça e miçangas. Sua tese de doutorado, reconhecida como uma importante contribuição para o Romantismo, mostrou que o vegetarianismo de Percy e Mary Shelley estava intimamente entrelaçado com sua política e sua arte. Paul Hamilton, orientador de grande parte da pós-graduação de Morton, me disse que, em relação aos Shelley, Morton "mudava".
Apesar do sucesso de sua dissertação, foi difícil para Morton conquistar uma posição acadêmica, e ele chegou a pensar em se matar.


No fim, ele conseguiu um emprego na Universidade do Colorado, Boulder, antes de passar para a Universidade da Califórnia, em 2003, em Davis, no nordeste de São Francisco. Estar no norte da Califórnia parecia aguçar seu pensamento e ele passou a se concentrar em questões explicitamente ecológicas, como o que se escreve quando escrevemos sobre a natureza. Em um certo marketing pessoal, ele também passou a se intitular Professor de Literatura e Meio Ambiente.


Durante os anos seguintes, Morton publicou seu livro desafiando a ideia de "natureza", bem como sua continuação, em que questionava o que significa para nós confiar em inúmeros outros seres de forma insondável e complexa. Ele também se juntou a um pequeno e controverso movimento filosófico chamado Ontologia Orientada aos Objetos (OOO), que afirma que todo ser, inclusive humano, só pode compreender o mundo em suas próprias formas limitadas. (Em outras palavras, nunca saberemos o que as moscas sabem, e vice-versa.) Em 2012, Morton mudou-se da Califórnia para atuar na Rice University, uma das universidades mais reconhecidas dos EUA.



Com a segurança da estabilidade e as infusões sucessivas do budismo e do OOO na mente, Morton começou a escrever em um estilo mais divertido e pessoal. Sua conversa sobre ter uma discoteca em sua casa, movida a energia eólica, não é por acaso. "A consciência ecológica inevitavelmente tem esse ar dos anos 70", diz ele. É uma estética que ele abraça, "em toda a sua estranheza". Seu estilo intelectual também é um tanto riponga. Ele pode muito bem ser a única pessoa cujo nome dá o ar da graça em uma lista dos filósofos vivos mais influentes e também nos créditos de um álbum que foi o quarto mais vendido do Reino Unido como compositor (Stacked Up,Senser, de 1994).



Ele seguiu os passos de pensadores como Jacques Derrida e Edward Said por ter participado da prestigiada palestra Wellek Lecture, na Universidade da Califórnia, em Irvine - e também se apresentado em Glastonbury, tocando música para artistas fazendo malabares com fogo e foi consultor na série de Steve Coogan de The Trip to Italy. Embora esteja prestes a publicar um livro tentando unir ecologia sombria e marxismo ("é uma viagem bem intensa e nem todo mundo vai gostar", diz ele), ele também vai lançar um livro pela Pelican books, "Being Ecological", que deve encantar o público em geral. A primeira frase é: "Este livro não contém fatos ecológicos".


Embora vários de seus livros tenham dedicatórias normas (esposo, filhos, irmãos), ele também dedicou um livro ao seu gato, o falecido Allan Whiskersworth. Uma das postagens mais fascinantes do seu blog, que tem atualizações regulares, é a critical inquiry into giant penises(Uma investigação crítica sobre pênis gigantes), com desenhos nos telhados que possam ser vistos pelo Google Earth. Ele está profundamente ligado ao budismo Shambhala e circunvalou o Monte Kailash no Tibete. Há não muito tempo, uma leitura de Tarô o tocou profundamente.



Se as pessoas acharem ridículo isso tudo, melhor ainda. "Eu gosto de pensar em mim mesmo como a coisa mais tosca e pavorosa que se poderia imaginar", contou. Ele superou as armadilhas do sucesso acadêmico e agora que passou as barreiras da sociedade educada, Morton tem um objetivo diferente. "Quero ser bem conhecido e soltar essa coisa anarquista-hippie que eu tenho guardado como se fosse um líquido muito precioso, com todo o cuidado, sem derramar nada, por anos e anos", disse ele. "E agora vou derramá-lo por aí."



Na hora de sua palestra na Serpentine Galleries, Morton apareceu com uma camisa Versace, justa e prateada, do estilo que um vilão do James Bond usaria. Sua palestra foi intitulada "Stuff Can Happen" (As coisas podem acontecer).



"Não é de se acreditar na quantidade de filósofos que têm medo do movimento", começou ele. Ele seguiu discutindo duas vertentes de pensamento no trabalho do filósofo Hegel. Um problema com Hegel, Morton disse, "o problema que eu chamo de macro-Hegel, é que o macro-Hegel faz com que o discreto movimento escada acima seja improvável. E, lá em cima da escada, como o assassino do filme Psicose, está esperando - adivinhe o quê? - isso mesmo, o patriarcado branco ocidental disfarçado de estado prussiano." (Eu não adivinhei, era pra ter adivinhado?) "Então macro-Hegel estraga tudo."



Parecia uma abordagem estranha para uma palestra a um grupo heterogêneo de artistas, ativistas, estudantes e músicos. Mesmo tendo interesse no trabalho de Morton, logo fiquei entediado e distraído. Um homem que estava em pé ao meu lado, um estudioso estadunidense com um senso de humor ácido, revirou os olhos e sussurrou um comentário do tipo "Que porcaria é essa?".



Apesar da popularidade de Morton, esta resposta ao seu trabalho não é rara. Algumas pessoas que discordam de Morton com quem falei acusaram-no de não entender a ciência contemporânea, como a mecânica quântica e a teoria dos conjuntos, e disseram que as distorções serviam como base para suas ideias malucas. Elas compartilharam uma crítica ampla que me lembrou o ditado cético: "Devemos manter a mente aberta, mas não tão aberta a pontodo cérebro cair". A pasta de ideias interessantes no trabalho de Morton não se mantém se for analisada cuidadosamente, afirmam. O filósofo Ray Brassier, que já fez parte da OOO, acusou Morton e os seguidores do seu blogue de gerarem "uma orgia de estupidez on-line".



Outros críticos, especialmente da esquerda, reclamam que a concepção de Morton do Antropoceno passa por cima de questões de raça, classe, gênero e colonialismo, culpando toda a espécie pelo dano infligido por uma minoria privilegiada. O foco no ser humano consagrado no termo Antropoceno é um alvo especial para os críticos. Eles argumentam que ao se referir aos seres humanos como um todo unificado, Morton destrói as diferenças entre o oeste rico e os outros membros da humanidade, muitos dos quais já viviam em um estado de catástrofe ecológica muito antes de a noção de Antropoceno se popularizar nos campi da Europa e da América do Norte.



Outros dizem que a noção de política de Morton é muito vaga ou que a última coisa que precisamos ao enfrentar desafios ecológicos é uma série de reflexões abstratas sobre a natureza dos objetos. Os defensores de Morton, no entanto, veem nele uma espécie de Ralph Waldo Emerson para o Antropoceno: a sua escrita tem valor, mesmo que nem sempre resista à análise filosófica. "Ninguém em um departamento de filosofia vai levar Tim Morton a sério", disse Claire Colebrook, professora de inglês da Pennsylvania State University, que tem um extenso trabalho sobre o Antropoceno. Mas ela ensina o trabalho de Morton na graduação e os alunos adoram. "Por quê? Porque eles são assim: "Cale a boca e me traga ideias!"



Nem tudo o que Morton me disse no decorrer das nossas conversas pareceu filosoficamente ou ecologicamente plausível. ("Você e eu, nossos computadores e aquela pintura atrás de você, e talvez um pombo da rua - vamos nos reunir e fazer um coletivo anarquista, e o foco desse coletivo anarquista será ler, hum, as cartas de Beethoven.") Mas o que atrai muitas pessoas não é a convicção de suas ideias, mas a profusão e a diversão delas. Hans Ulrich Obrist e os artistas Philippe Parreno e Olafur Eliasson usaram a mesma expressão para descrever sua obra: é uma "caixa de ferramentas" de onde podem surgir ideias úteis.



Essa caixa de ferramentas pode ser útil para todos nós também. À medida que o aquecimento global e outras características do Antropoceno se intensificam, nossa experiência dessa nova e séria era será cada vez mais estranha e pesada. Quando isso acontecer, cada vez mais pessoas devem buscar textos - como os de Morton - que ecoam suas experiências de alienação, bem como o desejo de esperança.



Alguns pensadores parecem acreditar que podemos ajeitar o mundo apenas com ideias melhores, mais lógicas e mais rigorosas. Morton diz que podemos organizar nossas ideias como quisermos, mas o mundo continuará sendo um lugar fundamentalmente bagunçado que sempre resistirá à simplificação filosófica. Pelo contrário, o que precisamos é conviver com essa estranheza. Em uma de nossas primeiras conversas, eu disse a Morton que eu gostava do seu trabalho, na medida em que achava que entendia. "Eu acho que também entendo, às vezes", ele respondeu.

Não há nada como a perspectiva de um homem autoritário para fazer intelectuais, hippies e, acima de tudo, intelectuais hippies parecerem irremediavelmente ineficazes. Se compararmos com organizar protestos ou uma doação recorrente para a União Americana pelas Liberdades Civis, falar de tempos profundos ou da eliminação da falsa divisão ontológica entre humanidade e natureza pode parecer bastante tolo.



Em novembro, na semana após a eleição de Donald Trump, Morton foi para Nova York para confabular com a Nasa sobre o conteúdo de um novo Disco de Ouro. Ele ficou arrasado com a vitória de Trump, mas não necessariamente surpreso com a escolha pelo que ele considerou o equivalente político de uma dieta baseada em vicodin e pãezinhos de canela. Em seu quarto de hotel, ele teve um "momento particular de lágrimas" ao ler o romance Fly Away Peter, de David Malouf.



Depois, ele saiu para comer um pouco de sushi - em que o mercúrio das usinas de energia a carvão, metais fundidos e lixo queimado tende a se acumular, às vezes ocasionando mal-estar - e foi arrastado por uma multidão. "Eu estava nesse primeiro protesto, cara", ele me contou. "Eu estava naquele primeiro maldito protesto anti-Trump na Trump Tower". Ele brincou com seus seguidores do Twittere na reunião com a Nasa que queria colocar o presidente eleito na próxima sonda Voyager.



Perguntei a mim mesmo o quão potente a política animista de Morton pareceria sob uma nova distribuição. No dia seguinte à sua palestra na Serpentine Galleries no outono, eu havia almoçado com ele, a artista Kathelin Gray e John Polk Allen, mais conhecido como Johnny Dolphin, o principal responsável por trás do Projeto Biosfera 2, um microcosmo planetário construído dentro de um gigantesco tubo de ensaio no deserto do Arizona. A conversa, que foi desde lugares no mundo com uma energia especial (Himalaias, Canyon Chaco) até o "asilo lunático para pessoas inteligentes" que é Oxford, voltou-se para a solidariedade a outras espécies em um dado momento.



"Sempre chamei as coisas de 'pessoa'", disse Gray. "Meus amigos indígenas americanos ficaram muito contentes".


"Como você pode não chamá-los de pessoas?", perguntou Morton.



Ela contou uma história sobre cobras que havia conhecido. Morton evidentemente se comoveu e colocou a mão no peito. "Você tinha dois amigos chamados de Cobra?", disse ele. "Que maravilha!"



Tudo isso parecia um pouco ridículo, mesmo antes de Trump ter sido eleito. Mas, em algum lugar nessas tentativas adocicadas de expressar afinidade com outras criaturas, havia um desejo genuíno de avançar para a política radicalmente pluralista que Morton defende.



"Não se esconda atrás de uma pedra, pelo amor de Deus", disse Morton em determinada altura. "Saia por aí e tente fazer todo que de afiliação política que puder, com todos os tipos de seres, humanos ou não, para criar um ambiente menos violento e mais justo, para todos, para todo o mundo ecológico." Era difícil argumentar com esses objetivos. Não podemos debater com outras espécies, mas o Antropoceno deixa claro que precisamos incluir seu bem-estar em nossos objetivos.



A própria ênfase política de Morton pareceu ter mudado depois das eleições. As festas movidas a energia eólica e os grupos de leitura com seres de diferentes espécies ficaram de fora. Agora, a questão, segundo ele, era "atrapalhar esses fascistas várias vezes".



Ainda assim, o Antropoceno não está desaparecendo apenas porque um troll corrupto em um terno folgado está sentado na Casa Branca. A acumulação de carbono no ar e nitrogênio no solo; a acidificação dos oceanos e a desertificação de terras que já foram férteis; os isótopos radioativos (de ensaios nucleares) e plástico (das embalagens) que recobrem o globo; a extinção de espécie após espécie - a lista de mudanças dramáticas do planeta não para. A política atual pode ser mais urgente do que nunca, mas a necessidade de uma política para o amanhã não desapareceu.



Poucos dias depois das eleições, Morton recuperou o senso de humor e começou a rir do presidente eleito, "esse homenzinho laranja com uma pilha amarela de Cheetos na cabeça". Sim, Morton passaria os próximos meses, ou o tempo que fosse necessário, lutando contra os fascistas no campus e onde mais ele pudesse ser ouvido, mas também continuava proclamando sua rara visão sobre a ecologia.



"Vamos colocar uma música tecno", disse Morton no final de uma de nossas conversas mais longas. "Mesmo que realmente estejamos ferrados, não vamos passar o resto da vida nesse planeta repetindo para nós mesmos que estamos ferrados".



O que deveríamos fazer então?



"Cumprimentar um ouriço e dançar ".

As frotas de pesca industrial despejam quase 10 milhões de toneladas de bons peixes de volta ao oceano a cada ano, de acordo com novas pesquisas.



A reportagem é publicada por EcoDebate, 27-06-2017. A tradução e edição é de Henrique Cortez.

University of British Columbia

Rejeições da pesca marinha mundial: Uma síntese de dados reconstruídos pelo Sea Around Us (Foto: UBC Public Affairs)

O estudo realizado por pesquisadores do Sea Around Us, uma iniciativa do Instituto de Oceanos e Pescas da Universidade da Colúmbia Britânica e da Universidade da Austrália Ocidental, revela que quase 10% da captura total do mundo, na última década, foi descartada devido a práticas de pesca e gestão inadequada. Isso equivale a lançar peixes suficientes para preencher cerca de 4.500 piscinas de tamanho olímpico todos os anos.
“Na era atual da crescente insegurança alimentar e preocupações com a saúde nutricional humana, essas descobertas são importantes”, disse Dirk Zeller, autor principal do estudo que agora é professor na Universidade da Austrália Ocidental e parceiro de pesquisa sênior com o Sea Around Us. “O peixe descartado poderia ter sido usado melhor”.

Os pescadores descartam uma parte de suas capturas porque as práticas de pesca danificam os peixes, os peixes são muito pequenos, a espécie está fora de época, apenas uma parte do peixe precisa ser capturada ou os pescadores pegaram espécies que não estavam visando, algo conhecido como captura acessória.

“Os descartes também acontecem devido a uma prática desagradável, conhecida como classificação elevada, onde os pescadores continuam pescando, mesmo depois de pegarem peixes que podem vender”, disse Zeller. “Se eles pegarem peixe maior, jogam fora menores. Geralmente não conseguem manter as duas cargas, porque ficam sem espaço no congelador ou superam suas cotas”.

O estudo examinou a quantidade de peixe descartado ao longo do tempo. Na década de 1950, cerca de cinco milhões de toneladas de peixe foram descartadas todos os anos, na década de 1980 esse valor cresceu para 18 milhões de toneladas. Os níveis atuais foram reduzidos para quase 10 milhões de toneladas por ano na última década.

O declínio das devoluções nos últimos anos pode ser atribuído ao melhor gerenciamento de pescas e novas tecnologias, mas Zeller e seus colegas dizem que é provável também um indicador de estoques de peixes empobrecidos. As capturas têm diminuído a uma taxa de 1,2 milhão de toneladas de peixes todos os anos desde meados da década de 1990.
“Os descartes estão agora a diminuir porque já pescamos tanto essas espécies que as operações de pesca estão capturando cada vez menos a cada ano e, portanto, há menos para que eles descartem”, disse ele.

Zeller e seus colegas Tim Cashion, Maria Palomares e Daniel Pauly, dizem que o estudo também mostra como as frotas industriais se movem para novas águas uma vez que certas pescarias diminuem.

“A mudança das devoluções das águas do Atlântico para o Pacífico mostra uma tendência perigosa na pesca de exportar nossas necessidades de pesca e problemas de pesca para novas áreas”, disse Cashion.

O artigo “Global marine fisheries discards: a synthesis of reconstructed data” foi publicado em Fish & Fisheries : DOI: 10.1111 / faf.12233.

Fonte: AAAS e EurekAlert!

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Cheiros são detectados pelo som da luz


Cheiros são detectados pelo som gerado pela luz
O aparato de laboratório ainda é grande, mas poderá ser facilmente miniaturizado para uso em campo. [Imagem: Gerald Diebold]

Detecção de gases


Uma nova técnica, baseada em um cristal especialmente sintetizado em laboratório, permite a detecção de gases até concentrações ao nível de partes por quadrilionésimo - 10-15, ou 0,000 000 000 000 001.


O método usa uma variação do efeito fotoacústico, um fenômeno que possibilita medir o som gerado quando a luz interage com as moléculas.

"De muitas maneiras, o efeito fotoacústico já é o método mais prático disponível para a detecção de poluentes na atmosfera. Mas, quando a concentração das moléculas que você está tentando detectar diminui para o nível de partes por trilhão, o sinal também se torna fraco demais para detectar.
"Nós desenvolvemos uma nova técnica fotoacústica que amplifica o sinal e nos permite chegar ao nível de partes por quatrilhão, o que, pelo que saibamos, é um recorde," disse o professor Gerald Diebold, da Universidade Brown (EUA), que desenvolveu a técnica em colaboração com colegas da Universidade de Shandong (China).


Efeito fotoacústico
O efeito fotoacústico ocorre quando um feixe de luz é absorvido por um gás, líquido ou sólido, o que gera uma expansão no material. A expansão é um movimento mecânico que produz uma onda sonora.
O efeito foi descoberto por Alexander Graham Bell na década de 1880, mas foi de pouco valor prático até a invenção do laser, que tornou os sinais fotoacústicos suficientemente fortes para serem detectáveis - graças à frequência estreita e à alta potência da luz do laser.

Como as diferentes moléculas absorvem a luz em diferentes frequências, ajustando a frequência do laser é possível ajustar um detector para substâncias específicas.

Mas, quanto menor a concentração da substância alvo, mais silencioso é o sinal. Então Diebold e seus colegas usaram uma técnica não convencional para aumentar a amplitude do sinal. Eles criaram um cristal que vibra precisamente na frequência combinada de dois lasers, o que permitiu usar não apenas o sinal original do laser, mas também suas ressonâncias.

"O que fizemos foi inventar um método que se baseia em três ressonâncias diferentes. O sinal aumenta com cada ressonância," explicou o pesquisador.

Ressonância
Em vez de um único feixe de laser, são combinados dois feixes em uma frequência e ângulo específicos. A união dos feixes cria uma grade - um padrão de interferência entre os dois feixes. Quando as frequências são ajustadas corretamente, a grade viaja em uma célula de detecção à velocidade do som, criando um efeito de amplificação em cada um dos picos - as partes mais claras do padrão de interferência.


A segunda ressonância é criada pelo próprio cristal, que vibra precisamente na frequência dos lasers combinados. As pequenas forças de compressão nas ondas de pressão acústicas aumentam gradualmente o movimento no cristal, da mesma forma que pequenos e repetidos impulsos em uma gangorra fazem a criança ir cada vez mais alto.


A terceira ressonância é gerada ajustando o comprimento da cavidade em que o cristal é montado, de modo que ele ressoe quando uma integral dos meios-comprimentos de onda do som corresponde exatamente com o comprimento da cavidade.

Como o cristal é piezoelétrico, ele gera uma tensão elétrica proporcional ao seu movimento oscilatório, que é enviada para amplificadores e dispositivos eletrônicos para registrar o sinal acústico e identificar a molécula.

A equipe afirma que a nova técnica deverá elevar muito a capacidade de detecção de gases diluídos na atmosfera e a liberação de compostos voláteis em testes de laboratório.
Bibliografia:

Photoacoustic trace detection of gases at the parts-per-quadrillion level with a moving optical grating
Lian Xiong, Wenyu Bai, Feifei Chen, Xian Zhao, Fapeng Yu, Gerald J. Diebold
Proceedings of the National Academy of Sciences
DOI: 10.1073/pnas.1706040114

O drible do gado: a parte invisível da cadeia da pecuária

Por Bernardo Camara
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Estima-se que um terço das fazendas vende gado para outras fazendas e fica fora do monitoramento 
ambiental. Foto: Marcio Isensee


“Não se pode culpar a empresa por aquilo que ela não consegue enxergar”, queixou-se o representante da JBS, diante de um salão apinhado de gente em Brasília. O clima não era dos melhores. Na enorme mesa em formato de meia-lua, o Ministro do Meio Ambiente e o mais alto escalão do Ibama encaravam uma audiência indignada: cinco dias antes da reunião convocada às pressas, o órgão de fiscalização do MMA havia distribuído 172 autos de infração, quase R$300 milhões em multas e interditado 15 frigoríficos acusados de comprar, direta ou indiretamente, 59 mil cabeças de gado de fazendas no Pará embargadas por desmatamento ilegal.


Deflagrada no dia 22 de março, a Operação Carne Fria enfrentou uma reação imediata do setor que move 35% do PIB paraense. A caravana de pecuaristas, parlamentares, governos, prefeituras e representantes da indústria da carne rapidamente se mobilizou para tirar satisfações com o MMA. Em meio a notas de repúdio, a operação foi apontada como truculenta, arbitrária e inadequada. E um dos motivos da indignação era o fato de o Ibama ter responsabilizado as empresas pela compra de bois que em algum momento da sua criação passaram por fazendas irregulares - o problema dos fornecedores indiretos, justamente aquilo que o representante da JBS alegou não ser possível enxergar.


Fornecedores indiretos são fazendas que trabalham com os sistemas de cria - quando o bezerro ainda é amamentado pela mãe - e recria - fase iniciada logo após o desmame, por volta dos sete meses de idade. Na última etapa da complexa cadeia produtiva da pecuária de corte estão as fazendas de engorda, quando o gado que já atingiu cerca de três anos de idade ganha peso e é vendido para abate nos frigoríficos.


"Segundo dados do IBGE, em média 30% dos rebanhos no Brasil são de fazendas de cria e recria. Ou seja: aproximadamente um terço da cadeia permanece invisível para os sistemas de monitoramento"
Por serem elas que comercializam a boiada com a indústria, as fazendas de engorda são chamadas de fornecedoras diretas. Estas três fases - cria, recria e engorda - podem ser realizadas em uma mesma propriedade ou em locais diferentes que vendem e revendem gado entre si. Quanto mais fazendas o gado passa antes do abate, mais difícil rastrear a sua origem. E o problema não é pequeno. Segundo dados do IBGE, em média 30% dos rebanhos no Brasil são de fazendas de cria e recria. Ou seja: aproximadamente um terço da cadeia permanece invisível para os sistemas de monitoramento.
Fonte: Proforest
Fonte: Proforest
Ponto cego
Em 2009, uma série de ações civis movidas pelo Ministério Público Federal e uma campanha internacional iniciada pelo Greenpeace jogaram no ventilador o protagonismo da pecuária no desmatamento da Amazônia, atividade que na época respondia por cerca de 80% das áreas derrubadas. E deram nome aos bois: supermercados como Walmart, Carrefour e multinacionais como Nike e Adidas estavam comprando carne e couro às custas da maior floresta tropical do planeta.
Por pressão do mercado, os grandes frigoríficos que abatiam gado na região - como JBS, Marfrig e Minerva - assinaram um compromisso público com o Greenpeace e um Termo de Ajustamento de Conduta que ficou conhecido como TAC da Carne. Inaugurado no Pará, o TAC aos poucos foi se espalhando por outros estados da Amazônia Legal, e hoje já conta com mais de 340 frigoríficos signatários.

"O rastreamento de fornecedores indiretos já era uma demanda prevista no Compromisso Público assinado com o Greenpeace em 2009. A partir de 2013, os TACs acordados entre o MPF e a indústria passaram a fazer a mesma exigência"
Num movimento inédito, os frigoríficos passaram a exigir dos pecuaristas que lhes vendiam gado - os fornecedores diretos - uma série de critérios socioambientais. Para fazer esta checagem, foram criados sistemas de monitoramento que vasculham bancos de dados dos órgãos públicos para cruzar com as informações do Cadastro Ambiental Rural (CAR) da fazenda fornecedora - o CAR traz dados ambientais e espaciais da propriedade. Se a fazenda não cumprir algum dos critérios estabelecidos, ela está impedida de comercializar com os frigoríficos que assinaram o TAC.

Em 2015, a ONG Imazon fez um estudo de caso, baseado em frigoríficos da JBS, para avaliar se os acordos firmados pela indústria estavam funcionando. Concluiu, em parte, que sim: o percentual de fazendas que abasteciam a empresa e que tinham desmatamentos recentes caiu de 36% antes do TAC para 4% depois dele. Indícios de que o monitoramento dos fornecedores diretos caminhava bem.
O mesmo estudo, porém, já cantava a pedra de que nem tudo eram flores: "As fazendas que fornecem bezerros e novilhos para as fazendas de engorda ainda não são rastreadas", alertava o documento, ressaltando que o rastreamento de fornecedores indiretos já era uma demanda prevista no Compromisso Público assinado com o Greenpeace em 2009. A partir de 2013, os TACs acordados entre o MPF e a indústria passaram a fazer a mesma exigência.

Baixada a poeira da indignação pós-Operação Carne Fria, o setor reconhece que a investigação não estava tão equivocada. "O Ibama entrou de maneira dura e até inadequada, pois desde 2009 estamos ralando para diminuir o desmatamento e eles só assistindo. Aí descem do camarote para embargar justamente as empresas que mais estão contribuindo", critica Francisco Victer, fundador e ex-presidente da União Nacional da Indústria da Carne (Uniec), que representa os frigoríficos. Em seguida, ele dá o braço a torcer: "Mas, de fato, a operação mostrou que o rastreamento dos indiretos é um ponto frágil na cadeia da pecuária".

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A roda começa a girar

"Eu já escutava sobre rastreamento de fornecedores indiretos porque estou sempre nas reuniões do varejo, das ONGs. Mas a enorme maioria dos pecuaristas nunca ouviu falar disso. A primeira pressão, o primeiro baque de fato veio com a Carne Fria"(Mauricio Fraga, Acripará)

Pouco discutido pelo setor, o rastreamento dos fornecedores indiretos começou a sair do banho-maria em 2015, quando as taxas de desmatamento na Amazônia voltaram a subir depois de dez anos numa tendência de queda. Apesar de já celebrados internacionalmente e apontados como importantes fatores para a redução do desmatamento, os acordos da carne passaram a ter sua eficácia posta em dúvida.

O estudo do Imazon já antecipava furos nos sistemas de monitoramento. Um deles ocorria por meio da "lavagem" de gado: como a checagem só alcançava a fazenda que comercializava diretamente com o frigorífico, propriedades com irregularidades vendiam seus animais para os pecuaristas que estavam em dia com os órgãos públicos, de maneira que o gado chegava "limpo" para o abate. Com a Operação Carne Fria, esses dribles no sistema foram escancarados.

"Eu já escutava sobre rastreamento de fornecedores indiretos porque estou sempre nas reuniões do varejo, das ONGs. Mas a enorme maioria dos pecuaristas nunca ouviu falar disso. A primeira pressão, o primeiro baque de fato veio com a Carne Fria", diz Mauricio Fraga, que desde a década de 1990 cria boi no Pará e hoje é presidente da recém-criada Acripará, a Associação dos Criadores do Estado.

A turbulência, porém, não se restringiu ao território nacional. E nem tinha como, já que o Brasil encabeça a lista dos maiores exportadores de carne do mundo. Ressabiados, os mercados compradores do produto brasileiro logo acionaram os fóruns internacionais de que fazem parte para saber o que se passava por aqui.


A Tropical Forest Alliance (TFA) é uma dessas plataformas que reúnem governos, ONGs e grandes empresas globais para discutir os caminhos que podem levar ao fim do desmatamento nas cadeias produtivas. Membro da TFA e diretora no Brasil da ONG Proforest, que trabalha justamente com este foco, Isabela Vitalli acompanhou o alvoroço que se seguiu à Carne Fria. "Alguma empresa membro da TFA viu a notícia e compartilhou com todo mundo. Surgiram muitas perguntas: 'Peraí, eu sempre ouvi coisas boas sobre rastreabilidade no Brasil, e de repente o país virou um vilão de novo?'", conta Isabela.

"Apesar de já se falar sobre isso há algum tempo, parece que chegou a hora de arregaçar as mangas"(Fabíola Zerbini, Tropical Forest Alliance)
Foi então que a TFA resolveu organizar uma conferência virtual para colocar todo mundo na mesma página. Dezenas de governos, empresas, ONGs e acadêmicos de várias partes do mundo se logaram ao mesmo tempo para acompanhar as discussões pela tela do computador. Foram quase duas horas de apresentações que abordaram as iniciativas que estão sendo testadas para resolver o rastreamento dos fornecedores indiretos de gado na Amazônia.

Ali, pelo menos duas coisas ficaram claras: ainda não existe um consenso, tampouco um mecanismo que dê conta de resolver o problema de forma definitiva. E o rastreamento de indiretos virou a bola da vez. "Nos surpreendemos com a quantidade e a qualidade de estudos e ações que estão sendo desenvolvidos sobre o tema", afirma Fabíola Zerbini, coordenadora regional da TFA na América Latina. "Apesar de já se falar sobre isso há algum tempo, parece que chegou a hora de arregaçar as mangas".

Gerente do Programa de Cadeias Agropecuárias da ONG Amigos da Terra, Pedro Burnier já arregaçou as suas há algum tempo. Mas nem sempre teve plateia. Desde 2009 trabalhando de perto com a cadeia da pecuária, a Amigos da Terra vem discutindo com o setor quais as prioridades dele, e partir daí, como pode colaborar. "O problema do monitoramento da pecuária sempre caía na questão dos fornecedores indiretos. A gente levantava essa bandeira com os frigoríficos, com o varejo, mas na época ninguém queria tocar no assunto. Diziam que era difícil, que era inviável, que o boi anda etc., etc.", diz Pedro.

Em 2015, viu no aumento do desmatamento um novo gancho para puxar o tema novamente. Meio desacreditado, chamou os diferentes elos da cadeia produtiva para um workshop sobre indiretos.

Achou que não iria tanta gente. Enganou-se: de produtores a supermercados e indústria, todo mundo apareceu. E o encontro foi frutífero: de workshop, virou o Grupo de Trabalho Fornecedores Indiretos (GTFI), que desde então vem colocando na mesma roda todos que já vinham quebrando a cabeça sozinhos sobre o assunto. E eles não são poucos.

A assediada GTA e o malfadado "Boi Guardião"
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Cruzar dados da Guia de Trânsito Animal (GTA) e de infrações ambientais facilitaria o controle do
 desmatamento na pecuária. Foto: Marcio Isensee

"Apesar de ter sido criada para fins sanitários, a GTA virou ferramenta potencial de quem precisa rastrear rebanhos para fins ambientais. Por conter dados sobre o deslocamento dos animais, o documento vem sendo apontado como uma das soluções mais rápidas e baratas para se enxergar as fazendas por onde o boi passou ao longo de seu ciclo de vida"

A Guia de Trânsito Animal (GTA) é um documento emitido pelos órgãos estaduais de defesa animal toda vez que um boi se desloca. O objetivo é facilitar o controle de doenças. No documento, estão informações como quantidade e finalidade dos animais transportados, como, por exemplo, cria, engorda ou abate e, do outro lado, idade, nome e CNPJ ou CPF do vendedor e do comprador de cada lote. Além dos negociantes, apenas os órgãos emissores e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) têm acesso ao documento, que é sigiloso.


Apesar de ter sido criada para fins sanitários, a GTA virou ferramenta potencial de quem precisa rastrear rebanhos para fins ambientais. Por conter dados sobre o deslocamento dos animais, o documento vem sendo apontado como uma das soluções mais rápidas e baratas para se enxergar as fazendas por onde o boi passou ao longo de seu ciclo de vida. Mesmo com a resistência dos órgãos de defesa agropecuária, a caravana ambiental ambiciona uma série de propostas envolvendo o uso da GTA para evitar que os animais de fazendas irregulares cheguem às prateleiras dos supermercados. Mas boa parte das iniciativas morreu na praia.


Uma das primeiras tentativas nesse sentido veio no fim de 2009. Na esteira das denúncias do MPF e do Greenpeace que sacudiram a cadeia da pecuária na Amazônia, o então ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, foi ao sul do Pará anunciar com pompa o início do programa Boi Guardião. O nome era uma resposta provocativa ao termo "boi pirata" que o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, gostava de usar à época. A proposta era simples: a GTA seria negada aos pecuaristas que desmatassem ilegalmente. Na prática, isso significa que eles não poderiam vender gado, já que o documento é obrigatório para qualquer movimentação de rebanho.


Anúncio feito, entre 2009 e 2011, o Ministério da Agricultura chegou a mapear quase 350 mil hectares de novos desmatamentos no sudeste paraense. No entanto, a promessa de usar essas informações para negar a emissão de GTAs a fazendas com desmatamento ilegal não foi cumprida: o MAPA parou este monitoramento e nunca mais tocou no assunto.


No entanto, a JBS, maior empresa de frigorífico do país, pegou carona na ideia, e encampou a proposta como solução para evitar que gado manchado por desmatamento ilegal entrasse em seus abatedouros. Nos planos de trabalho apresentados publicamente para cumprir o acordo assinado com o Greenpeace, a empresa rebatizou a iniciativa de GTA-Verde. A proposta era praticamente a mesma: “Desenvolver em parceria com o Ministério da Agricultura um novo procedimento para emissão das GTAs que leve em consideração a lista de áreas embargadas do IBAMA”, diz o documento.


Pelo plano de trabalho, a iniciativa deveria estar de pé até dezembro de 2013. Dois anos depois do prazo estipulado, a empresa alegava que apesar de haver um consenso entre os principais frigoríficos que operam na Amazônia, a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec) ainda não havia comprado a ideia.


Hoje, quatro anos mais tarde, a companhia insiste que a GTA-Verde é o pulo do gato, conforme nota enviada por e-mail a ((o)) eco: "A JBS reitera sua crença na GTA-Verde como a melhor solução para o setor, mas lembra que a participação dos órgãos governamentais é fundamental para sua implementação. A GTA-Verde é uma solução de baixo custo de implementação e de alto impacto na cadeia produtiva da carne bovina (...), abrangendo tanto fornecedores diretos como indiretos associados ao desmatamento".


Como o sucesso da empreitada não veio, a empresa afirma estar desenvolvendo atualmente outra proposta para enfrentar o problema. Mas não dá detalhes: "Em função da indecisão dos órgãos governamentais sobre a implementação da GTA-Verde (...), a JBS vem trabalhando, desde 2016, em um projeto com uma consultoria especializada em agronegócio para entender melhor e ter condições de endereçar a questão dos fornecedores indiretos."


Resistência
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Maurício Fraga, pecuarista e presidente da Associação dos Criadores do Pará.
Foto: Marcio Isensee

"Quando o sujeito não conseguir emitir a GTA, ele vai dar um jeito de tirar o gado, pois vive daquilo. Então podemos esperar fraudes e muita comunicação falsa. Ou ele vai ser obrigado a vender sem GTA. E isso pode causar um enorme transtorno sanitário"(Maurício Fraga, Acripará)

Desde que o ex-ministro Stephanes pisou no Pará para lançar o Boi Guardião, em 2009, a ideia do uso da GTA para fins ambientais permaneceu reverberando no estado. E virou dois decretos publicados pelo governo estadual. O primeiro deles é de setembro de 2013, e segue a mesma proposta anunciada lá atrás pelo MAPA: fica vedada a emissão da Guia de Trânsito Animal para fazendas com desmatamento ilegal. "A emissão está condicionada à regularização ambiental da propriedade", resume Jefferson Oliveira, diretor de Defesa e Inspeção Animal da Agência de Defesa Agropecuária do Pará (Adepará), órgão responsável pela emissão do documento naquele estado.


O segundo decreto veio em maio de 2014, e aperta ainda mais o cerco: a GTA só poderá ser emitida para os produtores que tenham registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR) - documento que traz as informações ambientais e espaciais da propriedade, e que é tirado junto à Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas). Na prática, o decreto determina a integração dos sistemas da Adepará e da Semas.


Caso o pecuarista não tenha o CAR, ou seja identificado algum embargo em sua fazenda, ele fica automaticamente impossibilitado de vender seus animais.


Enquanto as organizações ambientais aplaudem de pé os decretos, uma parte dos setores produtivo e sanitário acha a iniciativa um desatino. Segundo eles, os órgãos ambientais deveriam criar seus próprios mecanismos, em vez de se apossar de uma ferramenta que foi criada para outros fins. "Nossa competência é a sanidade agropecuária, não é a fiscalização ambiental. Estamos prontos para apoiar, mas não queremos assumir esta responsabilidade. É a gente que está na lida com o produtor, e a cobrança pela não emissão da GTA é a gente que sofre", diz Jefferson, da Adepará.


Para Mauricio Fraga, da Associação dos Criadores do Pará (Acripará), fechar o cerco ambiental por meio de uma ferramenta voltada para a saúde animal vai acabar desaguando em fraudes num sistema confiável e consolidado, podendo causar até um desastre sanitário. "Quando o sujeito não conseguir emitir a GTA, ele vai dar um jeito de tirar o gado, pois vive daquilo. Então podemos esperar fraudes e muita comunicação falsa. Ou ele vai ser obrigado a vender sem GTA. E isso pode causar um enorme transtorno sanitário", afirma.


Outro problema apontado pelos produtores é a parcialidade do embargo: se um pecuarista tem uma propriedade de 100 hectares e teve uma área de 10 hectares embargada, o sistema, por ser automatizado, imediatamente o impediria de emitir a GTA - apesar de, legalmente, ele ter o direito de continuar produzindo nas áreas não embargadas da fazenda. Para evitar que isso aconteça, a Adepará ou a Semas precisariam fazer validações em campo para confirmar se o local onde o gado é criado está dentro ou fora do embargo. "Já pensou o estado fazer isso em 80 mil fazendas? Não tem Semas, não tem Adepará que dê conta", diz o pecuarista e empresário Jordan Timo, ex-presidente do Sindicato Rural de Redenção.


"Antes de apertar a fiscalização o governo tem que dar oportunidade para o produtor se regularizar. Mas a dificuldade é enorme: o estado é ineficiente demais para promover a regularização ambiental, e ninguém consegue se legalizar", diz Mauricio. E Jordan completa: "Esses decretos são um jeito fácil de resolver um problema extremamente complexo. Eles vão criminalizar uma cadeia produtiva inteira".


Críticas à parte, o cronograma para o cumprimento dos decretos já foi estabelecido numa instrução normativa publicada em outubro de 2016. Desde esta data, os imóveis com rebanhos acima de mil cabeças de gado já deveriam passar pela peneira da Adepará e da Semas para a emissão da GTA. Aqueles com mais de 500 animais estariam no sistema a partir do primeiro dia de 2017. Em agosto do mesmo ano, rebanhos entre 100 e 500 bois também entrariam na roda. E por fim, as propriedades com rebanhos menores ganham um prazo mais longo: até outubro de 2018, todas as fazendas do estado devem passar pelo pente fino.


Quem está no campo, porém, diz que os decretos nunca foram colocados em prática:  "Tentaram vincular os sistemas da Adepará e da Semas, mas não funcionou. Está tudo parado", diz o pecuarista Mauricio Fraga. Na Adepará, Jefferson afirma que o sistema integrado chegou a funcionar, mas que foi suspenso com a saída do ex-diretor do órgão, Luciano Guedes, em maio deste ano. "Houve uma mudança de gestão e o projeto meio que ficou parado", diz. Ele alega que antes de deixar a direção do órgão, Guedes resolveu abrir licitação para contratar um novo sistema, pois o antigo estava "com problemas".


Questionados por ((o)) eco, a Adepará e a Semas não responderam por quanto tempo o sistema funcionou e quantos casos de bloqueio de GTA ocorreram. Também não foi informado quando o processo de licitação será concluído.


Experiências no campo
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Fazenda do projeto Novo Campo, que faz rastreamento do gado e intensifica o número de animais
por hectare. Foto: Marcio Isensee

"Uma das maiores vantagens de se cruzar os dados da GTA com o CAR, com dados de desmatamento e de áreas embargadas é que todas essas ferramentas já existem e estão consolidadas. Isso significa menos custos para o produtor. O principal entrave é o fato de o documento ser sigiloso"
Apesar das desavenças, a Guia de Trânsito Animal continua sendo apontada como carro-chefe para o rastreamento de fornecedores indiretos. Uma das maiores vantagens de se cruzar os dados da GTA com o CAR, com dados de desmatamento e de áreas embargadas é que todas essas ferramentas já existem e estão consolidadas. Isso significa menos custos para o produtor.


O principal entrave é o fato de o documento ser sigiloso, por conter uma série de informações pessoais sobre o rebanho.


"Você gostaria que o banco revelasse quanto tem no seu extrato? Ninguém aceitaria isso, pois são seus bens, seu patrimônio. E é a mesma coisa com o produtor: ele confia à Adepará as informações sobre seu rebanho, e a gente não pode passar isso para todo mundo", justifica Jefferson, um dos diretores do órgão.


A saída, então, tem sido convencer o próprio produtor a abrir esses dados. "Até pouco tempo atrás, os frigoríficos não achavam que era dever deles obter informações sobre os fornecedores de quem compravam o gado. E hoje eles estão aí monitorando. Agora estamos em um momento de dar um passo atrás e tentar transferir essa responsabilidade para o produtor da fazenda de engorda", diz Isabela Vitalli, da Proforest.


É o que vem fazendo a Marfrig desde 2012, com o sistema batizado Request For Information. Um dos maiores frigoríficos do país, a companhia calcula que 50,8% de seus fornecedores de gado compram bois de outras fazendas para engordá-los e revendê-los à empresa. "Toda vez que um animal de um fornecedor direto é adquirido, um documento cita a origem prévia do gado", afirma Leonel Almeida, gerente de Sustentabilidade da Marfrig.


"Normalmente, os frigoríficos só exigem a GTA da propriedade da qual elas compram a carne diretamente. Mas no projeto, caso o produtor declare ter comprado animais de outras fazendas, ele precisa mostrar a GTA correspondente ao transporte dessa outra propriedade para a sua"(Francisco Fonseca, The Nature Conservancy)

Leonel se refere às GTAs que o fazendeiro recebe no momento que compra o lote de outra propriedade: o documento traz os dados do pecuarista que fez aquela venda. Assim, o monitoramento que a empresa já fazia para checar se o seu fornecedor direto atende aos requisitos socioambientais passa a ser feito também para este fornecedor indireto, cruzando os dados da fazenda com as listas de embargo, de trabalho escravo e com os dados de desmatamento e de áreas protegidas. "É um trabalho em conjunto com o segmento produtivo para coletar e avaliar o 'stepback' dos animais que chegam para o abate nas unidades Marfrig".


A iniciativa vem sendo tocada em parceria com a ONG The Nature Conservancy (TNC), no projeto Do Campo à Mesa. "Normalmente, os frigoríficos só exigem a GTA da propriedade da qual elas compram a carne diretamente. Mas no projeto, caso o produtor declare ter comprado animais de outras fazendas, ele precisa mostrar a GTA correspondente ao transporte dessa outra propriedade para a sua", diz Francisco Fonseca, coordenador de Produção Sustentável da TNC.


"Isso só foi possível porque houve um diálogo entre as empresas e os fazendeiros, levando a uma adesão voluntária dos produtores ao sistema", afirma. Segundo Fonseca, a experiência feita com 15 fazendas que vendem gado para a Marfrig no município paraense de São Félix do Xingu fez alcançar 200 fornecedores indiretos da região. No entanto, ele ressalta que é preciso oferecer benefícios para que o produtor queira aderir ao protocolo.


No caso do projeto Do Campo à Mesa, o incentivo vem em forma de assistência técnica para a intensificação da produção e aumento da produtividade. Além disso, em maio de 2016 a carne produzida por este grupo de fazendeiros ganhou as prateleiras dos supermercados Walmart com um selo próprio: Rebanho Xingu.


"No início é normal que haja uma resistência: 'Por que eu vou te dar minha GTA?'. Mas depois eles entenderam que poderíamos usar aquilo para separar o produtor bom do ruim. E que participar desse tipo de iniciativa é se diferenciar e se manter no mercado", diz.


"Toda vez que alguém sugere ao produtor fazer uma melhoria, ele pergunta: você vai me pagar quanto? Não é bem assim. Tem que trabalhar primeiro, não dá para receber o salário adiantado. A indústria não pode estabelecer um padrão de preço em cima de uma experiência, de um lote que está rastreado. Ela precisa de quantidade e de regularidade para seu fornecimento"(Francisco Victer, fundador da Uniec)

Fonseca admite que apesar da diferenciação do produto enquanto marca, isso ainda não se transformou em uma maior remuneração do mercado, reclamação recorrente dos produtores. Francisco Victer, fundador da União Nacional da Indústria e Empresas da Carne, afirma que isso não tem como acontecer de uma hora para outra: é um processo. Nesta etapa inicial, diz, o pecuarista tem de entender que já está ganhando financeiramente com o processo de intensificação da sua produção: ele tem mais boi em menos área.


"Toda vez que alguém sugere ao produtor fazer uma melhoria, ele pergunta: você vai me pagar quanto? Não é bem assim. Tem que trabalhar primeiro, não dá para receber o salário adiantado. A indústria não pode estabelecer um padrão de preço em cima de uma experiência, de um lote que está rastreado. Ela precisa de quantidade e de regularidade para seu fornecimento", explica Victer.


No município de Alta Floresta, no Mato Grosso, uma proposta semelhante à da TNC foi iniciada em 2012 pelo Instituto Centro de Vida (ICV), e atualmente é tocada pela empresa Pecsa – Pecuária Sustentável da Amazônia. No projeto Novo Campo, os produtores passaram a receber orientações técnicas para inserir sua produção bovina no modelo de Boas Práticas Agropecuárias - BPA, uma metodologia desenvolvida pelo Ministério da Agricultura por meio da Embrapa. Em troca, eles se comprometem a recuperar o passivo ambiental e estancar o desmatamento da porteira para dentro, além de informar o extrato das GTAs referentes ao gado que compram de outras fazendas.


Apesar de as experiências de adesão voluntária para o acesso às GTAs serem avaliadas como bem-sucedidas, o modelo não dá conta de rastrear a totalidade dos fornecedores indiretos. O sistema consegue enxergar apenas um passo atrás na cadeia produtiva - a GTA informada pelo fornecedor direto traz os dados somente da última fazenda por onde passou o gado. Caso o animal tenha pastado por outras propriedades durante seu ciclo de vida - o que é bastante comum de acontecer -, esta informação não estará disponível.


"Apesar de as experiências de adesão voluntária para o acesso às GTAs serem avaliadas como bem-sucedidas, o modelo não dá conta de rastrear a totalidade dos fornecedores indiretos. O sistema consegue enxergar apenas um passo atrás na cadeia produtiva"

Além disso, em algumas regiões da Amazônia é corriqueira a comercialização de gado por meio de leilões ou pela figura do catireiro, uma espécie de atravessador que reúne animais de várias propriedades para revender a fazendas de engorda e frigoríficos. Conforme ((o)) eco já reportou, há casos em que o catireiro emite a documentação do gado em seu nome, como forma de camuflar irregularidades da fazenda de onde o animal veio de fato. Esta é apenas mais uma das formas de lavagem para burlar os sistemas de monitoramento e rastreamento.


A TNC e o ICV reconhecem que ainda não há soluções prontas para esses gargalos, e estão estudando formas de reduzir as brechas. Criar um "cadastro positivo" dos produtores de cria e recria que já passaram pelo monitoramento dos critérios socioambientais ou mapear áreas de risco seriam algumas saídas para se ter mais garantias de uma cadeia produtiva livre de desmatamento.


"Com o cadastro positivo de fazendas de cria e recria, eu consigo apontar aos fornecedores diretos de quem eles podem comprar sem preocupação. Ao mesmo tempo, construir um mapa de risco nos possibilita indicar municípios e áreas de atenção onde há mais chances de se ter a cadeia contaminada por desmatamento, trabalho escravo etc.", explica Francisco Beduschi, coordenador da Iniciativa de Pecuária Sustentável do ICV.

Dados para qualificar o debate
"No Mato Grosso, há uma heterogeneidade produtiva entre grandes e pequenos. Ou seja, todos os perfis de pecuaristas trabalham com cria e recria"(Leila Harfuch, Agroicone)

O mapeamento de risco ao qual Beduschi se refere, na verdade, está quase saindo do forno pelas mãos da Agroicone, uma empresa de consultoria e pesquisa focada especialmente na análise de cenários para o agronegócio. Recentemente, eles conseguiram financiamento para trabalhar num projeto que tinha como tema central a redução do desmatamento na cadeia da pecuária bovina. Após várias rodadas de conversa com os atores da cadeia, inevitavelmente se depararam com o problema dos indiretos. A empresa, então, percebeu que poderia qualificar o debate com informações que não estavam postas na mesa.


"Precisávamos entender o tamanho do problema: de qual percentual do rebanho estamos falando? Qual a relação com o desmatamento? Existe concentração de fornecedores indiretos em assentamentos? De onde está vindo esse gado? Todas essas perguntas nós tratamos num estudo que vamos publicar em breve", diz a economista Leila Harfuch, que antecipou alguns dados para ((o)) eco.


O recorte escolhido pela empresa foi o estado do Mato Grosso, que guarda em suas fronteiras o maior rebanho bovino do Brasil. Cruzando as informações do Censo Agropecuário de 2006 com dados mais recentes do Instituto de Defesa Agropecuária do Mato Grosso (Indea), as primeiras conclusões do estudo trazem um retrato mais apurado dos fornecedores indiretos: 24% do rebanho do estado era de bezerros em 2014. Metade disso está em propriedades maiores que 500 hectares. A outra metade, em fazendas menores que 500 hectares. "Há uma heterogeneidade produtiva entre grandes e pequenos. Ou seja, no Mato Grosso todos os perfis de pecuaristas trabalham com cria e recria", diz Leila.


O segundo passo foi fazer aquilo que Francisco Beduschi, do ICV, está buscando: os pesquisadores identificaram as regiões onde estão concentrados os fornecedores indiretos e cruzaram esta informação com as taxas locais de desmatamento, de vegetação remanescente e de assentamentos rurais. A análise mostra que 1/3 do abate no estado tem risco de origem. "São áreas que podem ter uma relação de desmatamento vindo de fornecedores indiretos", explica a pesquisadora.


A partir dos cruzamentos, o estudo traz recomendações para cada cenário apresentado. O uso de dados seria justamente para que as ações do poder público e da cadeia produtiva sejam mais estratégicas: "Em vez de monitorar tudo, é mais efetivo trabalhar as localidades de forma específica. A partir desse zoneamento de risco, o mais importante é olhar para cada município e sua realidade, sua dinâmica de ocupação e de uso da terra", afirma.


Os municípios com grande concentração de cria e recria, altos índices de desmatamento e com considerável vegetação remanescente, por exemplo, deveriam ser priorizados, já que a reunião desses fatores significa mais riscos de um fornecedor indireto estar associado à derrubada da floresta. Em Mato Grosso, os municípios de Colniza, Aripuanã e Juara estão nesta lista. A maioria dessas áreas está no norte do estado, no chamado Arco do Desmatamento.


Aqueles municípios em que o número de indiretos é alto mas as taxas de vegetação suprimida não são alarmantes poderiam ficar em segundo plano nos esforços de monitoramento - é o caso de Cáceres, Cocalinho e Porto Esperidião, que ficam mais ao sul.


Já os municípios que têm muitos fornecedores indiretos, vastas extensões de assentamentos e altas taxas de desmatamento - como Peixoto de Azevedo, São Félix do Araguaia e Vila Rica - Leila recomenda uma agenda positiva para a região, levando assistência técnica e legalizando o produtor. A proposta faz ainda mais sentido quando se olha para os dados da Associação de Criadores de Mato Grosso (Acrimat): cerca de 60% do gado engordado e entregue aos abatedouros no estado tem origem em pequenas e médias propriedades. Segundo Leila, se os frigoríficos simplesmente excluírem os pequenos fornecedores que forem identificados descumprindo os critérios socioambientais na sua produção, isso vai causar um impacto social e não vai resolver o problema num nível macro.


"O que vai acontecer é o efeito de lavagem ou de vazamento - aquele bezerro vai acabar indo para uma fazenda legal que irá revendê-lo ao frigorífico. Ou será vendido para outro abatedouro que não tenha critérios socioambientais como política de compra", diz Leila. "É mais efetivo, como saída de longo prazo, trazer este produtor para a legalidade, fazendo sua regularização ambiental. Somente assim haverá um ambiente legal nessas regiões com problemas de desmatamento", afirma, e ressalta ser fundamental o estado se envolver neste processo.


"Uma nova era para a carne"
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Jordan Timo, da Apoio Consultoria, defende que só o uso do brinco no gado permitirá
rastrear toda a cadeia da pecuária. Foto: Fabio Nascimento

Pelo menos no Pará e no Mato Grosso, que lideram de longe os números de produção bovina na Amazônia, os governos já entenderam que não têm mais como se abster das discussões sobre rastreamento da cadeia produtiva. A briga, claro, é por mercado. E pela fama de melhor carne do país. "Estamos construindo uma nova era, uma nova vida para a carne do Mato Grosso", anima-se Wagner Bacchi, em tom de profecia.


Bacchi assumiu em fevereiro a presidência do Instituto Mato Grossense da Carne (Imac). O Imac nasceu depois de uma viagem que o governador Pedro Taques fez ao Uruguai. Lá, ficou sabendo da existência do Instituto Nacional de Carnes, uma instituição que há mais de 40 anos promove a valorização do produto no país, em uma parceria bem-sucedida que envolve produtores, indústria e governo. Voltou para o Mato Grosso determinado a criar algo semelhante por aqui. Mal desembarcou, chamou para uma conversa a Associação dos Criadores do Mato Grosso (Acrimat) e o Sindicato das Indústrias de Frigoríficos do Estado (Sindifrigo).


"Se você depende da voluntariedade do produtor para chegar às GTAs, é muito mais demorado isso ganhar escala. No caso do Imac, como eles já têm acesso à documentação, a expansão disso pode ser bem mais rápida"(Pedro Burnier, Amigos da Terra)

Em fevereiro de 2016, o Imac estava criado. E, no próximo mês de agosto, já chegam aos supermercados do país os primeiros lotes de carne com o selo do instituto, que promete atestar a qualidade, a sanidade e a rastreabilidade do produto desde o nascimento dos animais. A adesão da indústria e dos produtores ao Imac é voluntária. "Mas nas mesas redondas, já está todo mundo otimista e querendo fazer parte o quanto antes", afirma Wagner. "Queremos deixar de vender a carne como um produto comum no mercado e agregar valor a ela".


Para fazer parte da iniciativa, o produtor precisa ter sua propriedade registrada no CAR e estar em dia com os mesmos critérios socioambientais do TAC da Carne. Nos próximos meses, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso (Sema-MT) promete fazer uma força-tarefa para regularizar os produtores que tenham alguma pendência com os órgãos ambientais e queiram entrar no Imac. "A Sema vai liberar 20 mil processos de produtores que estavam parados na secretaria. Como nosso sistema é todo integrado dentro do governo, fica muito mais fácil a resolução desses problemas", diz Wagner.


É justamente por esta integração de sistemas do governo que a iniciativa do Imac está sendo aguardada com entusiasmo pelo Grupo de Trabalho Fornecedores Indiretos (GTFI). Numa primeira fase de rastreabilidade, o Imac também pretende usar as Guias de Trânsito Animal para enxergar as fazendas de cria e recria que comercializam com os fornecedores diretos. A diferença é que ninguém vai precisar convencer o produtor a abrir os dados: o extrato das GTAs já está com o próprio governo.
"O Imac vai pegar essas informações com o Instituto de Defesa Agropecuária, fazer o cruzamento de dados e a checagem para saber se os fornecedores indiretos atendem os critérios socioambientais", explica Pedro Burnier, do GTFI. "Se você depende da voluntariedade do produtor para chegar às GTAs, é muito mais demorado isso ganhar escala. No caso do Imac, como eles já têm acesso à documentação, a expansão disso pode ser bem mais rápida", aposta.


Atento às demandas de mercados externos, porém, o instituto não pretende parar nas GTAs. A ideia é que numa segunda etapa os animais sejam rastreados individualmente. Apesar de ser considerada a forma mais eficaz de controlar o rebanho, o rastreamento individual não costuma ser aplicado por ser um processo mais caro. O que é relativo: segundo cálculos do pecuarista Jordan Timo, o custo seria de apenas dez centavos de real por quilo de carne. Wagner diz que o desenho da proposta ainda está em discussão, mas possivelmente serão colocados brincos com chips de identificação nos animais, até que, pouco a pouco, todo o rebanho esteja dentro do Sisbov, o Serviço de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos.


Sob o guarda-chuva do Ministério da Agricultura, o Sisbov tem o objetivo de identificar, registrar e monitorar individualmente os animais ao longo de sua vida, por meio de um chip que traz informações como origem, deslocamentos, estado sanitário, produção e produtividade de cada boi. O uso do sistema é obrigatório para quem exporta o boi à União Europeia. "Pretendemos fazer isso para agregar valor. Lá fora eles querem saber a origem dos animais. O mercado vem pedindo isso há anos", diz Wagner.


De baixo para cima
"Não estamos nos antecipando a nada: estamos no meio de um processo que já começou com a primeira operação Carne Fria. Por isso estamos desenvolvendo um projeto que atenda aos produtores. Senão, inventam um Frankenstein qualquer e a gente pode sair prejudicado"(Mauricio Fraga, Acripará)

O rastreamento individual pelo Sisbov também é a aposta de Jordan Timo, ex-presidente do Sindicato Rural de Redenção, no Pará, e dono da Apoio Consultoria, uma das primeiras empresas a desenvolver um sistema para monitorar os fornecedores diretos de frigoríficos que assinaram o TAC da Carne.
Antenado e influente na região, desde que as discussões sobre indiretos começaram a ganhar força Jordan se apressou em sentar com governo, produtores e frigoríficos para pensar numa solução que viesse de baixo para cima. Seu receio era que as propostas "feitas no ar condicionado", longe da realidade do campo - como ele enxerga, por exemplo, o decreto que vincula o CAR à GTA - fossem impostas sobre o setor produtivo sem conversa.


"Não podemos enfiar a cabeça no buraco e ficar esperando acontecer", diz Mauricio Fraga, da Acripará, que está junto com Jordan na empreitada. "Não estamos nos antecipando a nada: estamos no meio de um processo que já começou com a primeira operação Carne Fria. Por isso estamos desenvolvendo um projeto que atenda aos produtores. Senão, inventam um Frankenstein qualquer e a gente pode sair prejudicado". Francisco Victer, da União Nacional da Indústria e Empresas da Carne (Uniec), que também está no jogo, faz coro: "Antes que sejamos obrigados a fazer, vamos fazer. Porque não vamos permitir que essas situações fiquem atropelando a atividade, gerando transtornos e traumas".


Contradizendo a maioria das ONGs que dizem não adotar o rastreamento individual por ser uma opção mais cara para o produtor - um brinco com chip custa cerca de três dólares - é o próprio Jordan quem defende o mecanismo como saída. "Não existe outro caminho prático. Todas as outras alternativas podem ser burladas", diz, evocando o conhecimento de quem há décadas lida cara a cara com os pecuaristas.


E prossegue: "O brinco com o chip do Sisbov é o que garante que o animal nasceu numa determinada propriedade. A partir dali, todas as suas transferências entre fazendas são registradas na plataforma do Ministério da Agricultura. Assim, o frigorífico tem a certeza absoluta de onde o boi nasceu e por onde ele passou".


Jordan explica que o que vai fazer o produtor aderir ao projeto obviamente não é o fato de ele ser monitorado. O brinco com chip espetado na orelha do animal carrega uma série de informações sobre os processos produtivos - como peso, vacinação e alimentação -, que podem melhorar o planejamento, a gestão e o manejo de seu rebanho. Em parceria com a ONG Amigos da Terra e apoio da Uniec, já estão sendo desenvolvidos vídeos e cartilhas para comunicar aos produtores sobre as vantagens de apoiar esse processo.


"Os workshops que vamos fazer com os produtores já vão começar assim: 'O uso da rastreabilidade para melhoramento e controle da produtividade'. Aí já se justifica pôr um brinco no boi. E pagar três dólares para aumentar a gestão do meu rebanho acaba sendo barato".


A ideia é começar o projeto em pequena escala, com alguns fazendeiros parceiros, e ir testando, aperfeiçoando, enxergando as brechas e crescendo aos poucos. Para tornar a iniciativa viável, Jordan ressalta que todos os elos da cadeia vão ter de levantar da cadeira e botar a mão no bolso - seja com redução de tributos, celeridade nos processos de regularização ambiental, facilitação de crédito etc.
"O que sobrou de bom da Operação Carne Fria foi que o setor entendeu que precisa tomar alguma atitude, que precisa ter algum projeto com relação ao controle dos fornecedores indiretos. Porque se a gente não começar a fazer, não tomar uma providência, o Ibama vai vir de novo. E aí vão acabar com a cadeia da pecuária"(Jordan Timo, Apoio Consultoria)
"Os bancos não devem financiar qualquer pecuária. Projetos como esse que estamos desenvolvendo, que pretendem monitorar a origem do animal, devem ter apoio total das fontes de financiamento. Se conseguirmos recursos para dar a arrancada nesse processo, a partir de um ponto ganhamos escala e ele se sustenta sozinho", diz Victer, da Uniec.


"O que queremos do governo é que ele faça os processos e protocolos de forma prática, respeitando os prazos e atendendo o produtor, que não pode estar sozinho. Se a licença ambiental demora para todo mundo, que ele dê prioridade para quem está enquadrado nesse processo, tentando se regularizar e colocando brinco nos animais para criar uma cadeia de sustentabilidade de fato", afirma Jordan. "Precisamos basicamente que o governo funcione da forma como deveria funcionar. É só isso".


Jordan sabe que ainda não tem resposta para tudo. O projeto - como quase todos os outros que estão saindo do papel - ainda está em fase de desenho, articulação e testes. "Alguns falam que é loucura, que vai encarecer, que não é possível. Outros acham que a solução é mesmo por esse caminho que estamos seguindo. Mas o que sobrou de bom da Operação Carne Fria foi que o setor entendeu que precisa tomar alguma atitude, que precisa ter algum projeto com relação ao controle dos fornecedores indiretos. Porque se a gente não começar a fazer, não tomar uma providência, o Ibama vai vir de novo. E aí vão acabar com a cadeia da pecuária", diz.


Quando a conferência online organizada pela Tropical Forest Alliance terminou, a organizadora do encontro, Fabíola Zerbini, ficou satisfeita de ver tantos projetos tentando resolver o rastreamento da cadeia da pecuária. E confirmou o que já desconfiava: "É uma das cadeias produtivas mais complexas que já vi na vida", diz.


Jordan Timo, que há 25 anos mexe com boi na Amazônia, sabe disso como ninguém. Ele ri da pergunta: "quanto tempo vai levar para que 100% da carne da Amazônia chegue nas prateleiras dos supermercados com garantia de estar livre de desmatamento?" Ajeita seu chapéu de boiadeiro e responde meio brincando, meio sério: "Rapaz, isso vai levar uns 200 anos".

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Esta reportagem faz parte do projeto que busca melhorar a eficiência dos acordos da carne e da soja, realizado em parceria com o Imazon e apoio da Gordon and Betty Moore Foundation
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