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O discurso da modernização levará ao desmonte do sistema regulatório dos agrotóxicos. Entrevista especial com Fernando Carneiro
IHU
A decisão favorável da Comissão Especial da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei nº 6.229/2002, que propõe a simplificação do registro deagrotóxicos no país, “vai representar, para o Brasil, um retrocesso de 30 anos em relação ao que podemos considerar como cuidados necessários em termos de saúde e meio ambiente”, avalia Fernando Carneiro, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz do Ceará, na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line.
Segundo ele, o PL proposto pela bancada ruralista é sustentado pelo discurso da modernização e por uma crítica ao processo de registro dos agrotóxicos no país, entretanto a nova legislação não propõe reavaliar o corpo técnico dos órgãos envolvidos no processo. “No Brasil, o agronegócio argumenta que o registro dos agrotóxicos é muito lento e não se discute, por conta disso, o melhoramento dos órgãos responsáveis. O órgão similar à Anvisa nos EUA, que cuida da análise toxicological (FDA), tem 700 funcionários, enquanto a Anvisa tem 30. Essa situação não está sendo discutida no sentido de modernizar o país em relação aos agrotóxicos. Essa situação não está sendo discutida no sentido de modernizar o país em relação aos agrotóxicos. Os ruralistas usam o discurso da modernização para flexibilizar critérios de saúde e ambiente para permitir novos registros”, critica.
Fernando Carneiro | Foto: João Vitor Santos – IHU
Fernando Carneiro é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, especialista em Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências da Saúde — área de Concentração de Saúde Ambiental pelo Instituto Nacional de Salud Pública de México e doutor em Epidemiologia pela UFMG. Atualmente é pós-doutor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, tendo como orientador o Prof. Boaventura de Sousa Santos. Foi consultor do Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Saúde e servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. É pesquisador da Fiocruz Ceará e do NESP UnB. Atualmente integra o GT de Saúde e Ambiente da Abrasco e o Observatório da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas – Teia de Saberes e Práticas – Obteia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Como o senhor avalia a decisão da Comissão Especial da Câmara que decidiu pela simplificação do registro dos agrotóxicos? O que deve mudar na regulamentação de registro dos agrotóxicos em relação ao modo como a regulamentação ocorre hoje?
Fernando Carneiro — A decisão da Comissão Especial vai representar, para o Brasil, um retrocesso de 30 anos em relação ao que podemos considerar como cuidados necessários em termos de saúde e meio ambiente. A lei que será revogada é de 1989, mas para a época ela foi muito importante, porque a regulação era muito limitada e, inclusive, essa lei cunhou o termo agrotóxicos, dando o nome adequado à substância com a qual estamos lidando.
Num momento em que o mundo todo, de alguma forma, está preocupado com as questões ambientais que têm repercussão na saúde, o Brasil regride – Fernando Carneiro
Num momento em que o mundo todo, de alguma forma, está preocupado com as questões ambientais que têm repercussão na saúde, o Brasil vai regredir nesse assunto. Então nós temos que começar a dar o devido nome a tudo isso que está acontecendo, porque o discurso do agronegócio é o discurso da modernização, mas nunca vi uma modernização que implica em maiores riscos para a saúde. Para mim, ser moderno hoje significa considerar o respeito à saúde e ao meio ambiente sustentável. Portanto, há uma contradição entre o discurso e a prática.
IHU On-Line — Quais são as justificativas e o discurso da Comissão para permitir a simplificação do registro de agrotóxicos? Por que esse tipo de proposta é cogitado no país? Quais são os interesses em jogo nessa medida?
Fernando Carneiro — Essa pergunta é importante porque esse discurso é uma retórica que precisa ser confrontada com a realidade. Quando o setor do agronegóciodiz que está modernizando, pergunto: modernizar significa a valorização de uma metodologia, no caso de avaliação de risco, que permitirá a entrada de produtos, por exemplo, carcinogênicos? Isso é ser moderno? Na década de 1980, durante a ditadura militar, o Brasil criou Cubatão e os militares tinham um discurso muito parecido com esse da modernização, e diziam: poluição, venha a nós, isso é desenvolvimento. Parece que voltamos à década de 1980 e ao mesmo discurso falacioso de que é o agronegócioque alimenta o Brasil. O censo agropecuário do IBGE de 2016 mostra que a agricultura familiar é responsável por quase 75% dos alimentos que vão para a mesa do brasileiro e que grande parte da produção do agronegócio é exportada como commodities para China e Estados Unidos, sem ter relação direta com a alimentação humana.
O agrotóxico é a terceira causa de morte para tentativas de suicídio no Brasil. Como pode ser chamado de defensivo algo que tem, em média, uma letalidade de 70%? É outra falácia – Fernando Carneiro
O Brasil, muito pelo contrário, corre o risco de voltar para o Mapa da Fome, porque o que determina realmente a segurança alimentar das pessoas é a distribuição de renda, o acesso a políticas públicas de saúde, educação, moradia e transporte, ou seja, tudo isso que não estamos vendo no Brasil recentemente.
O discurso da bancada ruralista é altamente falacioso, tanto que está perdendo a guerra por argumentos: já foram publicadas mais de 20 notas técnicas contrárias a esse PL. Como a Comissão não quis fazer esse debate, o setor está contratando publicitários para vender clichês, porque não tem como vencer o debate técnico, pois no debate técnico existe quase uma unanimidade nacional entre as instituições, com exceção da Embrapa.
Nós acabamos de organizar um Dossiê Científico contra esse PL e a favor do PNARA (Abrasco e ABA-Agroecologia), que envolveu mais de 20 notas técnicas, o qual está disponível na página da Abrasco e da ABA –Agroecologia). Inclusive fizemos uma análise da nota técnica da Embrapa, mostrando os conflitos de interesse que aparecem na nota, a qual foi redigida por um ex-funcionário da Syngenta, que agora é concursado da Embrapa.
IHU On-Line — O senhor disse que “agrotóxico” é o nome correto para essas substâncias. O PL, de outro lado, prevê que a palavra “agrotóxico” seja substituída por “pesticida”. Qual é a razão dessa mudança? Existe um significado simbólico ou estratégico por trás dessa proposta ou trata-se de alguma questão técnica?
Fernando Carneiro — Essa mudança tem a ver com o que é chamado de greenwashing, que na tradução literal significa “lavagem verde”. Trata-se de uma estratégia do capital de “dourar a pílula”, de evitar “dar nome aos bois”, ou seja, de evitar dizer que agrotóxico é um veneno e é tóxico. Alterar o nome significará um recuo se a mudança for efetivada, porque o termo agrotóxico qualifica melhor o tipo de substância com a qual estamos lidando. Estamos falando de produtos que podem causar danos à saúde e que têm que ser chamados pelo nome adequado. Querem resolver o problema dos agrotóxicos no Brasil mudando o nome, mas não é isso que irá resolver os problemas que de fato existem, como a falta de fiscalização do uso de agrotóxicos, a avaliação de impactos que está havendo no país etc. O agrotóxico é a terceira causa de morte por suicídio entre jovens no Brasil. Como pode ser chamado de defensivo algo que tem, em média, uma letalidade de 70%? É outra falácia.
IHU On-Line — Que tipos de agrotóxicos não podem ser regulamentados e passariam a ser regulamentados com a mudança na legislação?
O Brasil vai se tornar um país atrativo para quem quer lucrar fácil e rápido com os agrotóxicos, porque o atual sistema regulatório seria praticamente desmontado e toda a decisão vai ficar concentrada no setor de agricultura – Fernando Carneiro
Fernando Carneiro — Qualquer um dos agrotóxicos que já foi identificado como causa de câncer, causa de má-formação congênita, poderá ser comercializado segundo essa nova legislação, desde que seja utilizado conforme algumas avaliações de risco, porque pode ter um risco aceitável; essa é a questão.
Por exemplo,é a IARC, uma agência de pesquisa relacionada ao câncer vinculada a OMS, que classificou o Glifosato como provável carcinógeno para humanos. Ele é hoje responsável por 50% das vendas de agrotóxico no Brasil. Se já existe uma suspeita como essa encontrada no glifosato, não haveria razão para usá-lo, mas a nova lei permitirá seu uso. O glifosato é um exemplo interessante porque ele é de faixa verde, supostamente de baixa toxicidade, mas os estudos estão dizendo que as coisas não são bem assim. A Monsanto respondeu a essas pesquisas fornecendo alguns dados, mas como são as empresas que fornecem esses dados aos órgãos reguladores, isso dá margem para suspeitas, como a que está ocorrendo em relação às denúncias públicas de que a Monsanto escondeu parte dos estudos sobre o glifosato.
IHU On-Line — Quais serão as implicações dessa medida caso ela seja aprovada na Câmara?
Fernando Carneiro — O Brasil vai se tornar um país atrativo para quem quer lucrar fácil e rápido com os agrotóxicos, porque o atual sistema regulatório seria praticamente desmontado e toda a decisão vai ficar concentrada no setor de agricultura. Isso pode levar à aprovação de substâncias que serão muito danosas ao meio ambiente e irão afetar a flora e a fauna, as áreas de conservação, áreas de interesse de biodiversidade, assim como a saúde não só do trabalhador, mas da população em geral que consome alimentos contaminados por esses produtos. É uma luz amarela, quase vermelha, que está se acendendo e que vai na contramão da história e das pesquisas científicas que estão sendo feitas. Vou mencionar o exemplo do Dossiê, que fizemos recentemente contra o PL: são fartas as evidências de que os agrotóxicos causam impactos na saúde. Mas estamos falando de um grupo da bancada ruralista que é financiado pela indústria química, como demonstram as doações oficiais de campanha, e a bancada age segundo os interesses da classe ou das empresas que financiam a bancada.
Quando os agrotóxicos começaram a ter seus riscos mais evidenciados, na década de 1960 — época em que também foi publicado o livro Primavera Silenciosa —, foi criada nos Estados Unidos uma comissão técnico-científica no governo Kennedy. Essa comissão gerou uma série de legislações e serviu de base para a criação da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. Então, nos EUA, quando os riscos dos agrotóxicos foram evidenciados, foram sendo tomadas medidas de regulação e proteção no sentido de melhorar a regulação do Estado em relação ao agronegócio. No Brasil, o agronegócio argumenta que a liberação dos agrotóxicos é muito lenta e não se discute, por conta disso, o melhoramento dos órgãos de registro. O órgão similar à Anvisa nos EUA, que cuida da análise toxicological (FDA), tem 700 funcionários, enquanto a Anvisa tem 30. Essa situação não está sendo discutida no sentido de modernizar o país em relação aos agrotóxicos. Os ruralistas usam o discurso da modernização para flexibilizar critérios de saúde e ambiente para permitir novos registros.
IHU On-Line — A decisão da Comissão Especial da Câmara pode ter alguma relação com as eleições deste ano?
O órgão similar à Anvisa nos EUA, que cuida da análise toxicológica, tem 700 funcionários, enquanto a Anvisa tem 30. Essa situação não está sendo discutida no sentido de modernizar o país em relação aos agrotóxicos – Fernando Carneiro
Fernando Carneiro — Essa bancada é financiada oficialmente pela indústria química e do agronegócio, sem falar do que pode acontecer com uso do caixa 2. Então, a bancada ruralista cumpre o script determinado por essas indústrias e setores que devem estar criando mecanismos para financiar essa bancada. Duvido que a sociedade queira votar nesses 18 deputados que votaram a favor dos agrotóxicos, mas como eles terão muito recursos, poderão compensar essa medida eleitoralmente. Eles usaram essa questão dos agrotóxicos como moeda de troca política caso seja votada a Previdência.
IHU On-Line — Como a votação repercutiu entre órgãos ambientais e da área da saúde? Que notícias o senhor tem sobre isso? Está sendo preparada alguma medida para responder à decisão?
Fernando Carneiro — A indignação está aumentando. O que está acontecendo é um absurdo tão grande que se não gritarmos e defendermos os avanços conquistados, eles vão “passar o trator”. Mas a bancada ruralista está contratando publicitários e fazendo parcerias com o Movimento Brasil Livre – MBL para criar fake news e fazer o embate nas redes sociais. Esse é o impacto mais recente.
Como resposta, a Abrasco e a ABA-Agroecologia publicaram o dossiê que mencionei anteriormente, com notas técnicas dos órgãos ambientais. Também apresentamos uma proposta para o Congresso, que consiste num outro PL, o PNARA que visa a redução do uso dos agrotóxicos, o qual já teve a possibilidade de ter virado Programa, mas Dilmanão teve coragem de enfrentar o Congresso e publicá-lo. Mas essa proposta foi reativada no Congresso e nós fizemos a defesa da agroecologia para demonstrar que ela é ciência, e não achismo, porque a agroecologia tem relações com a saúde e com os alimentos. Fizemos vários textos para desmontar os clichês que o agronegócio vai criando. A próxima etapa é trabalhar na comunicação com a sociedade, porque temos que pressionar mais o Congresso, para colocar essa pauta a nosso favor.
(EcoDebate, 05/07/2018) publicado pelaIHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
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Para Fernando Carneiro, da Fiocruz, deixar o registro de novos produtos a cargo de Ministério da Agricultura, como prevê projeto de lei, representa perigo para a população brasileira
Cerca de 30% dos alimentos no país já estão fora do padrão de segurança Pesticidas podem diminuir QI das crianças e provocar vários tipos de câncer Riscos se agravam pela falta de capacidade do Estado de monitorar o uso
Na última segunda-feira (25), a comissão especial criada na Câmara dos Deputados para discutir o projeto de lei 6.299/2002, que propõe alterações na atual legislação de agrotóxicos, aprovou texto que divide opiniões. De um lado, empresários do agronegócio comemoram o parecer do relator Luiz Nishimori (PR-PR) sob o argumento de que moderniza a aprovação e regulação dos pesticidas. Do outro, organizações de promoção à saúde coletiva e defesa do meio ambiente afirmam que o relatório flexibiliza significativamente o processo, o que representa riscos não só aos trabalhadores do campo, mas também aos consumidores dos alimentos expostos aos agrotóxicos.
O pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Ceará Fernando Carneiro engrossa o coro do segundo grupo. Integrante do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e coordenador do Observatório da Saúde das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (OBTEIA), ele garante que as mudanças na lei significam um “retrocesso gigantesco”.
Para Carneiro, um dos pontos mais críticos trazidos pelo texto – que agora vai a plenário – é a centralização das avaliações de novos produtos e autorização de registros no Ministério da Agricultura, em detrimento da estrutura tripartite de regulação – a lei em vigor determina que os ministérios da Saúde e Meio Ambiente também atuem nas análises. “O processo fica concentrado em um órgão totalmente dominado pelo agronegócio, então o risco é de realmente haver a aprovação de substâncias que possam causar todo tipo de problema”, declara.
Por que o senhor considera que o PL 6.299/2002 represente um retrocesso?
Há 60 anos, Rachel Carson, bióloga norte-americana, escreveu “A primavera silenciosa”, um clássico da literatura ambientalista, que marca o movimento ambiental mundial e ficou muitos meses entre os livros mais vendidos dos Estados Unidos. Teve uma repercussão tão grande que o governo americano criou uma comissão de cientistas comprovando tudo o que ela havia pesquisado, o que gerou, inclusive, a criação da agência de proteção ambiental nos Estados Unidos. Nós, em 2015, publicamos o dossiê Abrasco, com quase 700 páginas e mais de 60 autores colocando isso. Só que o que a gente vê hoje com esse PL é que, em vez de fazermos um movimento para cuidar da saúde da população e do meio ambiente, estamos vendo exatamente o contrário. O PL é a liberalização, o desmonte do aparato regulatório brasileiro do registro de agrotóxicos, com a perspectiva de permitir, inclusive, que substâncias muito mais danosas à saúde adentrem nosso mercado. Estamos assistindo a um retrocesso gigantesco. Era para estarmos diminuindo, mas estamos potencializando o uso.
Quais riscos – sociais, ambientais e para a saúde pública – essa proposta representa?
Vai ter um impacto direto na saúde do trabalhador, do consumidor brasileiro, da população. Você de repente concentra [o processo de avaliação e aprovação dos agrotóxicos] na agricultura, tirando o papel da saúde e do meio ambiente de olhar a questão por seus ângulos – a saúde pela Toxicologia e o meio ambiente pela Ecotoxicologia. O processo fica concentrado em um órgão totalmente dominado pelo agronegócio, então o risco é de realmente haver a aprovação de substâncias que possam causar todo tipo de problema, tanto de saúde quanto de contaminação do ambiente, o que representa um risco à vida como um todo. Os danos causados pelos agrotóxicos são de várias ordens. Isso que querem chamar de defensivo é um veneno, causa efeitos imediatos e crônicos, desde câncer e até diminuição de QI em crianças. Isso para não falar nos impactos na cadeia alimentar, na nossa fauna. É muito grave o que está acontecendo.
O uso de agrotóxicos ainda parece um tema distante na realidade urbana – não são todos os consumidores que se preocupam com isso quando vão ao mercado, por exemplo. Quais os riscos à saúde desse consumidor final?
Para fazer estudos de seguimento e analisar essas questões, pode-se levar 20, 30 anos. São estudos caros e complexos; há a carga hereditária e a carga ambiental de doenças, é necessário que os estudos controlem esses fatores. Mas isso não tem sido prioridade na ciência brasileira. O agronegócio capitaliza o lucro e socializa o prejuízo: analisar uma amostra de agrotóxico no ambiente pode custar mil reais, e poucos laboratórios fazem isso no Brasil.
Estamos liberando uma substância que não temos a capacidade de monitorar e vigiar. É caro e o ônus fica para o setor público – o ônus da pesquisa, da vigilância –, enquanto eles capitalizam em cima disso – e a maior parte dos agrotóxicos no Brasil nem paga imposto, em vários estados eles têm 100% de isenção. O que já se fez nesse sentido foi por meio da Anvisa, através do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos [PARA]. A série histórica que apresentamos no dossiê da Abrasco [com base em dados da Anvisa] dos últimos dez anos mostra que 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros têm resíduos de agrotóxicos e 30% estão irregulares.
Então, pelo menos, um terço do que a gente come está fora do padrão, ou seja, tem potencial de dano. Recentemente eles mudaram para essa metodologia de avaliação de riscos e, de um ano para o outro, de repente, esses 30% viraram 1%. A substância é carcinogênica, mas na avaliação de risco, que o PL quer implantar, você tem premissas. Quais são elas? A pessoa vai estar com luva e com máscara. Estando com isso, o risco é aceitável. Agora, vamos olhar para a realidade do Brasil. Como é possível aceitarmos premissas desse tipo sendo que o trabalhador não usa [as proteções], é caro, o patrão não paga o equipamento, que também não é adequado à nossa realidade, é quente. A premissa da avaliação de risco é que tudo isso está funcionando muito bem, cabe tudo no modelo teórico. Esse é o cavalo de troia desse projeto de lei: mudar de avaliação de perigo para avaliação de risco.
Para Fernando Carneiro, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Ceará, um dos pontos mais críticos trazidos pelo texto é a centralização das avaliações de novos produtos e autorização de registros no Ministério da Agricultura. Foto: Abrasco
Outra questão apontada como delicada pelos críticos do projeto é a criação do registro temporário para produtos que já sejam registrados em pelo menos três países membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e que obedeçam ao código da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Você pensa da mesma forma?
Estão dizendo que existe uma tal burocracia, que leva-se até oito anos para obter o registro de um agrotóxico no Brasil, mas isso é fake news porque compara a estrutura de países como Brasil e Estados Unidos. Na Anvisa há 20 ou 30 técnicos para analisar os pedidos de [registro] de agrotóxicos, na FDA [Food and Drugs Administration], a similar norte-americana, são 700. Aqui uma empresa paga poucos mil reais para fazer o processo de registro, nos Estados Unidos pode chegar a um milhão. A fila aqui é grande porque não se investe na capacidade de órgãos reguladores e porque é barato registrar, sendo que o registro é eterno – para você tirar um produto de circulação, tem que fazer uma reavaliação a partir de denúncia etc. O registro temporário é para forçar a barra e, em vez de investir na capacidade de análise dos órgãos – fazendo concurso, pagando equipe –, colocar uma faca no pescoço do órgão e dizer “se você não liberar o pedido em dois anos, o produto entra no mercado”. Eles falam dos problemas, mas o PL não é solução para nenhum deles. Ele está longe de resolver o problema da população, só resolve o problema das empresas. Vai virar o paraíso dos agrotóxicos, porque já é barato e eterno, vai poder tudo.
Ao discutir a flexibilização da legislação de agrotóxicos, o Brasil segue uma tendência mundial ou vai na contramão dos países mais desenvolvidos?
Vai totalmente na contramão. Na Europa, foram colocadas mais restrições [ao uso de agrotóxicos]; a própria China, que tem um modelo selvagem de desenvolvimento, tem feito ações desse tipo. O Brasil está na contramão da história mundial. Lembra um pouco a década de 80, na época de Cubatão, em que os militares diziam “poluição, venha a nós, poluição é desenvolvimento”. Está muito parecido.
Em contraposição ao PL 6.299/2002, seus críticos defendem a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA), transformado em projeto de lei que tramita na Câmara. É possível reduzir o uso de agrotóxicos sem repensar o modelo de produção agropecuário que hoje vigora no Brasil?
O Brasil adotou um modelo que chamamos de neoextrativismo. Basicamente, nas últimas décadas nos desindustrializamos e a economia foi puxada pela exportação de bens primários, tanto agrícolas como minerais. Houve o tempo da bonança, mas depois, com a crise e a queda dos preços, esse modelo entrou em colapso. O agrotóxico simboliza o modelo capitalista selvagem. Um modelo que distribua renda e preserve os ecossistemas, acho que seria possível apenas com a aplicação plena da agroecologia.
Recentemente estive no Encontro Nacional de Agroecologia, o ENA, em Belo Horizonte, onde mais de 70% [do público] era de agricultoras e agricultores. Eles contam que começam a fazer a transição agroecológica, aí vem o vizinho com o avião, [pulveriza] o agrotóxico e as pragas fogem para onde? Para as áreas onde não há veneno. Isso causa um problema. Outra situação: escutei vários agricultores que têm caixas de abelhas, aí vem o avião e mata tudo. Vem a deriva [produzida quando o agrotóxico ultrapassa os limites da área que se pretende atingir], vai para a propriedade vizinha e dizima as abelhas.
Há também casos de aviões sendo utilizados como forma de expulsar indígenas de suas terras, usados como arma de guerra. O PNARA surge quase como uma transição: vamos pelo menos reduzir o uso de agrotóxicos e trabalhar para fortalecer a agroecologia, porque é muito desigual o apoio de um modelo em relação ao outro. Quando se definiu que 30% da merenda escolar tem que ser proveniente de agricultura familiar, preferencialmente agroecológica, foi uma canetada que ajudou a desenvolver a agroecologia em todo país. Uma simples medida como essa.
É possível criar formas de promover um modelo em relação ao outro, pois historicamente a gente vê o contrário. O agricultor que quer plantar sem veneno tem até hoje dificuldade de conseguir empréstimo no banco, porque se exige a nota fiscal fiscal do veneno, do adubo químico. É muito difícil convencer o gerente que não é necessário gastar com isso, que é possível gastar com outras coisas.
*AAgência Públicaé uma organização sem fins lucrativos.
[CC BY-NC-SA 3.0][ O conteúdo da EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, à EcoDebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]