Escrito por José Maria e Silva
| 15 Abril 2014
No
país do analfabetismo funcional, novo plano de educação negligencia o
mérito, põe a escola contra a família e, em vez de estimular a leitura,
policia as palavras, transformando a língua num instrumento de opressão
ideológica.
Durante
uma audiência pública da Comissão de Educação, Cultura e Esporte do
Senado Federal, realizada em 22 de outubro do ano passado, o economista e
professor Cláudio de Moura Castro, ao término de sua palestra, resolveu
apresentar uma proposta ao Plano Nacional de Educação (PNE 2011-2020).
Professor visitante de renomadas universidades estrangeiras, Ph.D. em
Economia pela Vanderbilt University, nos Estados Unidos, e conceituado
pesquisador da educação, com vários livros publicados, Moura Castro, com
um ligeiro sorriso no rosto, anunciou:
“Já que todo mundo botou um
negócio no plano, um artiguinho, eu também quero propor um artiguinho no
plano: um bônus para as caboclinhas de Pernambuco e do Ceará
conseguirem se casar com os engenheiros estrangeiros, porque aí eles
ficam [no País], e aumenta o capital humano no Brasil, aumenta a nossa
oferta de engenheiros”.
Cláudio de Moura Castro, economista e pesquisador, denuncia os delírios
do Plano Nacional de Educação. (Foto: Paulo Antunes)
A
declaração provocou um manifesto de repúdio de cerca de 50 entidades de
todo o País, desde a União Nacional dos Estudantes até o Instituto
Paulo Freire, passando pela Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (Anped) e a Campanha Nacional pelo Direito à
Educação, um movimento que congrega cerca de 200 entidades, entre elas o
indefectível Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que,
por mais estranho que pareça, é um de seus coordenadores.
Para essas
entidades, a declaração de Moura Castro é “inadmissivelmente machista e
discriminatória” e “manifesta um preconceito regional e racial
inaceitável”, inclusive sugerindo a subjugação das mulheres por
estrangeiros. Elas exigiram uma retratação do professor e prometeram
recorrer até a Dilma Rousseff, como se já vivêssemos numa ditadura
totalitária e a presidente tivesse poder para autorizar ou não o livre
pensamento.
O
humor pode não ser o forte do professor Cláudio de Moura Castro e sua
declaração revela certo mau gosto. Como carioca, ele poderia propor o
bônus para as calipígias passistas das escolas de samba que se expõem
muito mais ao olhar estrangeiro do que as caboclinhas do sertão
nordestino, poupando Pernambuco e Ceará de uma referência gratuita. Mas
é um exagero considerar uma mera frase infeliz como discriminatória,
preconceituosa e machista, até ameaçando o professor com processo
judicial, sobretudo quando se conhece o contexto em que foi formulada.
Essas entidades participaram da audiência pública no Senado e sabem que
Cláudio de Moura Castro, com seu chiste, queria apenas mostrar o quanto o
Plano Nacional de Educação não passa de uma absurda colcha de retalhos,
que carreou para dentro de si os particularismos dos mais diversos
guetos ideológicos, que nada têm a ver com a sociedade brasileira, muito
menos com a sala de aula.
Marxismo avança até nas engenharias
O
Brasil herdou o ensino retórico de Portugal, calcado nas humanidades, e
não consegue formar profissionais técnicos em número suficiente para
atender sua indústria. Uma forma de enfrentar esse problema seria
priorizar as ciências naturais e exatas no ensino básico, formando nos
jovens um espírito prático, voltado para os fatos e não para a retórica,
mas esse não é o caminho adotado pelo ensino atual; muito pelo
contrário, a educação brasileira é cada vez mais conceitual, afetada,
metalinguística, encarquilhada sobre si mesma, num quase completo
desprezo pela realidade em torno, salvo quando essa realidade se presta a
devaneios ideológicos, como a “resistência” dos sem-terra, a “tradição”
dos quilombolas, a “cultura” das favelas, o “empoderamento” dos
drogados, entre outras minorias de estimação nas quais se proteja a
utopia de boa parte da elite intelectual.
Hoje,
mesmo os cursos técnico-profissionalizantes são profundamente
contaminados pela retórica ideológica da esquerda. Em grande parte das
faculdades de Engenharia, por exemplo, as disciplinas de ciências
humanas são calcadas numa bibliografia marxista ou neomarxista, privando
o aluno de uma visão plural, que incorpore, também, pensadores liberais
ou conservadores. Isso ocorre, sobretudo, nas faculdades de Engenharia
Ambiental, em que a bibliografia da parte de humanidades do curso
parece destinada a inculcar no aluno que o capitalismo é o inimigo por
excelência do meio ambiente, esquecendo-se que os regimes totalitários,
como o stalinismo ou a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, não têm
motivo algum para respeitar a natureza bruta, uma vez que não são
capazes de respeitar nem a natureza humana.
É
no contexto de uma educação que tenta transformar em instrumento
ideológico até as engenharias que Cláudio de Moura Castro saiu-se com
seu gracejo sobre os engenheiros e as caboclinhas. Foi uma forma que
encontrou de atacar também o holismo obsessivo do ensino brasileiro, que
professa uma suposta visão integral de cada fenômeno social e humano,
buscando dominar o homem e a natureza por todos os poros e átomos no afã
de construir o outro mundo possível, em que tudo deve ser planejado nos
mínimos detalhes, como queria a União Soviética no esplendor de sua
utopia totalitária. A pedagogia de Paulo Freire é herdeira dessa utopia
holística, que transforma o professor em aprendiz e o aluno em mestre,
sob o falso pretexto de que o ensino jamais pode ser transmissão de
conteúdo e deve dar à embrionária vivência de um adolescente o mesmo
peso que o conhecimento acumulado pela humanidade adquiriu em séculos.
Não
poderia haver ironia melhor – até em face da teoria de gêneros que se
tenta impor na educação, negando os sexos biológicos – do que associar o
aumento do número de engenheiros no País à cadeia hormonal das
caboclinhas, estimulada pela intervenção holística do Estado através da
concessão de bônus. O Plano Nacional de Educação está cheio desse tipo
de associação indevida entre aprendizado e fatores sociais diversos,
como se aprender a ler e contar fossem atividades indissociáveis da vida
cotidiana e não pudessem ser ensinadas sem que antes se revolucionasse
todo o contexto social da criança. É esse tipo de mentalidade holística
que faz com que o Plano Nacional de Educação se ocupe de ninharias tão
absurdas que, já em sua Meta 2, uma das estratégias preconizadas é a
renovação e padronização da frota rural de veículos escolares, como se
prescrever o modelo e a cor desses veículos, desde a Amazônia aos
Pampas, passando pelo Cerrado, fosse tão importante quando dispor de uma
boa metodologia de ensino da tabuada, por exemplo.
Plano é “advocacia em causa própria”
É
esse tipo de problema que levou o professor Claudio de Moura Castro, em
sua palestra no Senado, a chamar o novo Plano Nacional da Educação
2011-2020 de “equivocado e inócuo”. Acertadamente, ele observa que o PNE
é um somatório das idiossincrasias de diversos grupos advogando em
causa própria, o que resultou num conjunto de mais de 2 mil propostas
para a educação, muitas vezes incompatíveis entre si e quase sempre
impossíveis de serem postas em prática. Entre as medidas que considera
impossíveis, Moura Castro citou uma das estratégias da Meta 12, que
pretende elevar para 90% o porcentual de conclusão dos cursos de
graduação do ensino superior, quando se sabe que, mesmo nos Estados
Unidos, o índice de evasão nas universidades chega a 50%. Outra meta que
considerou irreal é a proposta de erradicação do analfabetismo absoluto
até 2020, sobretudo – acrescento eu – porque a própria escola
construtivista, regida pela aprovação automática, é uma usina de
produção de analfabetos que, com alguma sorte, se tornam analfabetos
funcionais quando chegam à universidade.
Parafraseando
o delírio de Brás Cubas, do célebre romance de Machado de Assis,
pode-se dizer que o Plano Nacional de Educação é “uma figura nebulosa e
esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de
improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a
agulha da ideologia”. O PNE 2011-2020 já é sintoma de uma das mais
graves doenças da era lulo-petista: o conferencismo – versão oficial do
assembleísmo que o PT levou para as entranhas do Estado ao chegar ao
poder em 2002. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), desde que Getúlio Vargas convocou a primeira
conferência nacional no Brasil, sobre saúde, no início da década de 40,
já foram realizadas 115 conferências nacionais, das quais 74 (64,3%)
ocorreram no governo Lula, envolvendo cerca de 10 milhões de pessoas. E
com um diferencial: antes, as conferências quase sempre se restringiam a
setores como a saúde; com Lula, passaram a contemplar os mais variados
setores, sobretudo as minorias.
O
PNE é fruto da I Conferência Nacional de Educação, realizada em 2010 e
precedida por conferências municipais e estaduais, contabilizando, no
seu sistema de relatoria, 5.300 registros de inserção com propostas dos
segmentos participantes. Já o documento-base da II Conferência Nacional
de Educação, a ser realizada em novembro deste ano, contabiliza 11.488
registros de inserção, o que significa aproximadamente 30 mil emendas.
Como se vê, não é por falta de palpiteiros que a educação brasileira vai
mal. Essa segunda conferência estava programada para fevereiro deste
ano e já foi precedida de conferências municipais e estaduais,
mobilizando a militância de esquerda travestida de movimento social
espontâneo. Mas o MEC acabou adiando sua realização para novembro
próximo, fato que gerou indignação entre as entidades envolvidas.
Segundo elas, o objetivo do adiamento foi esvaziar o poder de pressão da
conferência, que iria coincidir com a votação do Plano Nacional de
Educação no Congresso. As entidades defendem o projeto aprovado na
Câmara e acusam o governo de apoiar a revisão feita pelo Senado, que
excluiu, por exemplo, a polêmica questão de gênero.
O
projeto de lei do Plano Nacional de Educação foi enviado pelo então
presidente Lula ao Congresso em dezembro de 2010, com a proposta de
“ampliar progressivamente o investimento público em educação até
atingir, no mínimo, o patamar de 7% do PIB” – mas sem data para se
concretizar. Em 2012, o projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados,
que, dominada pelo petismo mais radical, se encarregou de piorar o que
já era ruim, estabelecendo um investimento de 7% do PIB em educação até o
quinto ano de vigência do plano e, no mínimo, 10% do PIB ao final de
dez anos. Com a ressalva: esse investimento seria feito exclusivamente
na educação pública, deixando de fora entidades filantrópicas e
assistenciais. O Senado manteve esses índices, mas suprimiu a restrição
aprovada na Câmara, permitindo o investimento público em entidades
assistenciais, entre as quais, é bom lembrar, encontram-se as Apaes, que
prestam um relevante serviço para as crianças com deficiência mental.
Ideólogos criam guerras de raça e gênero
Outro
ponto polêmico do plano é a questão de gênero, que já constava do
projeto original do Executivo, mas de forma menos radical, falando
apenas em “implementar políticas de prevenção à evasão motivada por
preconceito e discriminação à orientação sexual ou à identidade de
gênero, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão”.
Na Câmara, acrescentou-se a esse texto a discriminação racial. Como se
não bastasse a incitação à guerra de raças, os deputados tornaram o
texto mais prolixo, acrescentando novas diretrizes ao plano, entre elas a
“superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da
igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Percebem a
brutal diferença? Não se trata mais de combater a possível
discriminação de um aluno homossexual, mas de promover a “igualdade de
gênero”, o que significa igualar ao sexo biológico as mais variadas
fantasias de desajustados sexuais, perseguindo o que os ideólogos
chamam pejorativamente de “heteronormatividade”, isto é, o sexo
papai-e-mamãe, que deve ser discriminado na escola em nome das relações
homem-com-homem, mulher-com-mulher, trans-com-todos etc.
Para
se ter uma ideia da importância que a maioria petista da Câmara dá à
questão, essa diretriz é a terceira, logo depois da “erradicação do
analfabetismo” (primeira) e da “universalização do atendimento escolar”
(segunda) e à frente de “melhoria da qualidade da educação” (quarta) e
“formação para o trabalho e a cidadania” (quinta). O Senado bem que
tentou corrigir essa insanidade e, onde a Câmara falava em preconceito
de gênero e raça, os senadores falam em “políticas de prevenção à evasão
motivada por preconceito”. Já no trecho em que a Câmara falava em
“promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação
sexual”, o Senado, agindo com bom senso, sintetizou: “com ênfase na
promoção da cidadania”. Agora que o Plano Nacional de Educação voltou à
Câmara, o relator do substitutivo oriundo do Senado, deputado Angelo
Vanhoni (PT-PR), já recomendou, em seu relatório, que o texto aprovado
na Câmara seja restabelecido, com a ênfase na questão de gênero – para
gáudio das minorias de estimação do PT e desespero da bancada
evangélica, talvez o único setor da sociedade a perceber, até agora, o
grande perigo da ditadura gay.
Instituindo a novilíngua orweliana
O
preciosismo ideológico da maioria petista na Câmara é tanto que o
projeto do Executivo foi reescrito na novilíngua orwelliana: sempre que
apareciam expressões como “os estudantes”, “os alunos”, “os
profissionais da educação”, foram acrescentadas as partículas “os/as”,
tornando o texto ilegível: “os(as) estudantes”, “os(as) alunos(as)”;
“os(as) profissionais de educação”. O Senado, primando pela boa técnica
legislativa e pelo bom senso antropológico, suprimiu todos esses
penduricalhos feministas do texto, para indignação do deputado Ângelo
Vanhoni, que, em seu relatório, já recomendou a recomposição da vulgata
feminista da Câmara. Caso o Plano Nacional de Educação seja aprovado, em
definitivo, com essa redação sexista (isso mesmo: sexista), a nação
brasileira corre o risco de ter sua língua sequestrada pelos ideólogos
de esquerda. Não tardam e hão de querer revisar o texto da própria
Constituição para adicionar-lhe esses penduricalhos de mau gosto.
Um
ideólogo nunca é apenas antiético – é também ilógico. Como dizia
Durkheim, um mínimo de lógica exige um mínimo de moral e vice-versa. Não
adianta lutar contra a natureza da língua, que, mesmo se realizando nos
seus falantes, é muito maior do que eles. De que adianta escrever
“aluno(a)”, achando que assim se evita o suposto machismo da língua
portuguesa, sem perceber que o gênero masculino do substantivo (“aluno”)
aparece como a palavra principal, da qual o gênero feminino é apenas um
apêndice, feito uma Eva linguística retirada da costela masculina do
idioma?
Qual seria a solução para evitar isso? Escrever “aluna(o)”,
“amiga(o), “irmãs(os)? Nem as feministas têm coragem suficiente para
fazer essa inversão, tanto que os grupos mais radicais preferem
subverter completamente a língua, escrevendo impronunciáveis “alunxs”,
“amigxs”, “namoradxs”, muito mais para agradar o sexo cambiante dos
gays do que para valorizar, de fato, as mulheres.
Uma
opção seria variar o gênero da palavra principal. Mas como decidir os
critérios para essa escolha? Contabilizando quantos homens e mulheres há
na categoria mencionada e optando pelo gênero que fosse a maioria?
Ainda assim, o suposto machismo não iria desaparecer – apenas mudaria de
lugar, transferindo-se da língua para a sociologia. As funções e
profissões socialmente valorizadas, nas quais os homens são a grande
maioria, continuariam sendo escritas primeiramente no masculino:
neurocirurgião(ã), engenheiro(a), ministro(a), juiz(a); enquanto para as
mulheres sobrariam: “doméstica(o)”, “enfermeira(o)”, “educadora(or)”.
Isso mostra que a língua é complexa demais para caber na lógica
mecanicista da luta de classes ou no ressentimento maniqueísta das
minorias de estimação.
Ao
querer neutralizar as palavras de suas eventuais cargas negativas, a
esquerda revela seu espírito totalitário, pois uma língua que não
soubesse exprimir desigualdade, preconceito e ódio não seria uma
linguagem humana e mataria seus falantes de angústia. A propósito, os
ideólogos que não acreditam nas determinações sociais do sexo biológico e
acham que tudo é construção de gênero saberiam me dizer se o masculino
de “babá” é “babão”? Como se vê, um Plano Nacional de Educação que, no
país do analfabetismo funcional, negligencia o mérito, incita a escola
contra a família e, em vez de estimular a leitura, policia as palavras,
transformando a língua num instrumento de opressão ideológica, nada tem a
ver com ensino – é apenas uma doutrinação totalitária que tenta fazer
da escola uma incubadora de subversões.
José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.