Deixemos de ser ingênuos!
É fato. Vivemos uma crise multidimensional. Talvez a maior crise que a humanidade já experienciou. Hoje os holofotes estão na crise sanitária promovida pela covid-19 e nas suas antecipadas consequências – como uma recessão econômica mundial –, mas pouco se fala de suas causas. Sem dúvida, a maioria dos países enfrentará, ou já está enfrentando, uma crise econômica sem precedência na história. Muita inovação, criatividade e novos acordos e pactos sociais serão necessários para navegar os tempos difíceis que teremos pela frente. Entretanto, para (re)pensar e planejar o futuro é fundamental que aprendamos com as lições do passado. Parece clichê, mas não é. A história mostra que evoluímos e acumulamos conhecimentos por tentativa e erro. Temos que ter humildade para olhar os erros e acertos do caminho já percorrido e que nos levou à crise multidimensional que enfrentamos atualmente.
A crise sanitária é reflexo também da crise global da perda da biodiversidade. A perda de habitat de espécies selvagens devido a expansão agropecuária, urbana e de infraestrutura e a mineração, entre outros, juntamente com o consumo dessas espécies têm favorecido o surgimento de muitas zoonoses como a covid-19. Essa mesma crise da perda da biodiversidade está intimamente ligada à crise global das mudanças climáticas. Ambas resultam de um modelo econômico de crescimento ilimitado, que já se provou insustentável ao longo de mais de um século, e que continua regendo o modus operandi da esmagadora maioria dos países e nações do mundo. A crença nesse modelo econômico, que privilegia o crescimento ilimitado e o acúmulo de capital nas mãos de poucos indivíduos e corporações em detrimento do esgotamento de recursos naturais, mudanças climáticas e elevada desigualdade de renda, contribuiu enormemente para eleger recentemente governos de ultradireita em alguns países, como o nosso.
A crise sanitária é reflexo também da crise global da perda da biodiversidade
A ganância de parte dos seres humanos pelo acúmulo de riquezas gera um contínuo aumento das desigualdades socioeconômicas, étnicas e de gênero. A prepotência de muitos em achar que o ser humano é capaz de controlar a natureza permitiu que zoonoses como a covid-19 surgissem e se alastrassem por todo o planeta. Tristemente, o descrédito e a desvalorização da ciência promovidos por alguns governos de ultradireita só fizeram acirrar a crise sanitária em seus países, como é o caso do Brasil e Estados Unidos, líderes mundiais em casos e mortes por covid-19.
Nas últimas três décadas, muito avançamos no conhecimento científico e nas políticas públicas sobre as questões ambientais e socioambientais, e o Brasil ganhou destaque e foi liderança internacional nesses âmbitos. Inovou em políticas sobre áreas protegidas – como as reservas extrativistas – e em políticas sociais e socioambientais – como o Bolsa Família, o Bolsa Verde e o reconhecimento de povos indígenas e comunidades tradicionais e seus territórios –, contribuindo assim para a redução das desigualdades socioeconômicas. Construiu um arcabouço de legislação ambiental, incluindo o antigo Código Florestal, considerado do ponto de vista ambiental um dos melhores do mundo, que possibilitava a produção agropecuária em larga escala alinhada à conservação da biodiversidade e à manutenção de serviços ecossistêmicos essenciais a tal produção, como a regulação climática, da quantidade e qualidade de água, de organismos prejudiciais ao ser humano e suas atividades, a polinização, e a formação e proteção dos solos.
Nos últimos anos, entretanto, temos visto um acelerado retrocesso em todas essas conquistas. Todas as semanas, cientistas e ambientalistas no Brasil se deparam com mais uma ação (senão muitas!) de desmonte realizada pelo governo federal. Enquanto escrevia estas linhas recebi a notícia de que o Ministério do Meio Ambiente pretende reduzir a meta oficial de preservação da Amazônia, uma meta compromissada em acordos internacionais.
Ex-ministros do Meio Ambiente e da Fazenda (hoje Economia), cientistas, ambientalistas, educadores, sociedade civil organizada, instituições religiosas – e mais recentemente até mesmo parte do setor privado – têm se mobilizado para combater a agenda de desmonte social e ambiental implantada pelo atual governo federal, que declaradamente utilizou a crise sanitária da covid-19 como “boi de piranha” para “passar a boiada”.
Grande parte da articulação dos diversos setores tem sido no âmbito da divulgação de dados científicos e da comunicação de princípios éticos e democráticos que colocam em xeque a atual agenda social e ambiental. E aqui tiro o chapéu para todos os esforços feitos nesse sentido, a exemplo da Coalizão Ciência & Sociedade. Entretanto, há muito vivemos uma guerra de (des)informação motivada enormemente pela ganância por riqueza e poder (mas também pela intolerância à diversidade cultural e religiosa), o que tem levado a um negacionismo da ciência em nosso país.
Deixemos de ser ingênuos! É hora de olharmos e enfrentarmos com coragem e responsabilidade a raiz do problema.
Necessitamos compreender que nossas escolhas de consumo e estilo de vida têm impacto direto na crise da perda da biodiversidade (e dos serviços ecossistêmicos dela derivados), nas mudanças climáticas e nas crises sanitária, política e econômica que vivemos.
Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 das Nações Unidas jamais serão atingidos se continuarmos operando dentro do modelo econômico vigente, assim como a grande maioria das Metas de Aichi da Convenção da Diversidade Biológica da ONU também não o foram.
Precisamos de um novo modelo de desenvolvimento econômico para lidar com a crise multidimensional que vivemos: um modelo que fomente a cooperação e não a competição, a prosperidade e não o crescimento, a saúde e a educação pública de qualidade para todos, a ciência e a inovação, e o respeito à biodiversidade e à diversidade de culturas e conhecimentos. Mais do que tudo, precisamos de um modelo que combata veementemente as desigualdades sociais. Um passo fundamental desse esforço será reconectar o “Homo urbanus” com a natureza que provê a maioria dos bens e serviços ecossistêmicos que afetam sua qualidade de vida e seu bem-estar. A natureza nos faz contribuições materiais, como alimento, água, fibras, biocombustível e recursos medicinais; contribuições imateriais, como inspiração, conexão espiritual, espaço para lazer, aprendizagem e continuidade cultural; e contribuições como a regulação do clima, da qualidade da água e do ar.
Que modelo seria esse? Não sei, mas estou disposta a me juntar àqueles que querem pensar e agir para construir esse novo modelo de desenvolvimento, pois é fato que o atual não é e nunca será sustentável! Só chegamos a este ponto de uma crise multidimensional por conta das escolhas que fizemos até o momento. Insistir nas mesmas escolhas, nas mesmas fórmulas e modelos não nos trará a solução que precisamos para enfrentar esta crise.
Cristiana Simão Seixas é Ph.D. em gestão ambiental e de recursos naturais pela Universidade de Manitoba, no Canadá. É também pesquisadora do Nepam (Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais) da Universidade Estadual de Campinas, membro da coordenação da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) desde 2016 e expert junto à IPBES (Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos) desde 2014. Na IPBES, foi cocoordenadora do Diagnóstico Regional das Américas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos.
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