quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Governador não aparece, sociedade civil não fala e ZEE/DF tem mais problemas



CARTA ABERTA
Governador não aparece, sociedade civil não fala e ZEE/DF tem mais problemas
Mônica Veríssimo dos Santos – Secretária-Executiva Fórum ONGs Ambientalistas do DF
              A questão climática é um tema global e local e precisa ser trabalhada dentro das agendas de curto e longo prazo pela sociedade.  Nesse contexto, o Governo do Distrito Federal tem papel-chave.  Afinal, as mudanças climáticas precisam ser vistas como política de Estado e não de Governo. O êxito de sua implementação passa necessariamente pela participação ativa da sociedade civil e tudo isso carece de termos instrumentos válidos de planejamento e ordenamento territorial e ambiental,  que precisam ser robustos, no sentido de dar respostas confiáveis à sociedade e, cientificamente, chancelados.  Contudo, parece que o Governador não entende assim.
              O I Fórum do Clima do Distrito Federal teve sua abertura hoje cedo (28/11/17).  Esperava-se um rotundo e emblemático evento, considerando estarmos diante de uma escassez hídrica, que não tem previsão de acabar.  Contudo, o que vimos foi o desprestígio do Governador dentro de uma das principais agendas eleitas pela sociedade para o Distrito Federal.  Primeiro, o Governador não apareceu, embora estivesse confirmado, o que mostra um certo descrédito com o tema.  Segundo, em vez de enviar seu substituto direto, que é o Secretário da Casa Civil, preferiu ser representado por uma servidora da SEMA. Terceiro, as crianças que iriam entregar uma carta ao Governador se deram conta, de forma tocante, que o representante máximo do GDF não estava tão preocupado com o futuro delas.  Por último, os convidados que compunham a mesa de abertura, em sua maioria, não puderam falar, incluído o Fórum das ONGs Ambientalistas do DF.
              Durante as ponderações da representante do Governador, Sra. Maria Silvia Rossi, foi destacada a importância do instrumento Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE/DF) como estratégico para as mudanças climáticas.   Ocorre que o ZEE/DF continua a não cumprir suas promessas e há intenção do GDF de encaminhá-lo à Câmara Legislativa ainda este ano.   O instrumento tem problemas tanto dentro de seu projeto quanto no processo de tramitação.  Durante a 1a. e 2a. audiências públicas foram apontadas diversas incongruências de conteúdo e legais que permanecem insanáveis.  Contudo, da última vez, a sociedade civil organizada soube que a SEMA havia encaminhado o ZEE/DF à Casa Civil de forma relâmpago. Sem dar satisfação das modificações que haviam sido aceitas.  Um total desrespeito e desprestígio com a comunidade.   No caso do Fórum das ONGs Ambientalistas do DF, temos mais de vinte e cinco anos de história e lutas por um Território inclusivo, educador,  saudável,  sustentável e democrático. Durante anos, fomos incansáveis na necessidade do instrumento ZEE para o Território, exatamente por saber de sua importância.  
              O estágio em que nos encontramos é de extrema gravidade.  A sociedade vem perdendo os canais oficiais de diálogos, vide o expurgo de conselheiros no Parque Burle Marx e hoje não foi dada a palavra à sociedade civil no Fórum Clima.   Os reservatórios de abastecimento de água se encontram na “UTI”, o que nos leva a perdas econômicas e de qualidade de vida.  Por fim, o ZEE/DF, principal instrumento da política pública ambiental, ainda possui mais problemas, os quais serão apresentados a seguir. A maior parte deles é fruto de um somatório de acontecimentos relacionados ao processo de tramitação do ZEE/DF.   Por isso, tomei a decisão de entrar com uma representação no Ministério Público Federal, ocorrida em 25/10/17, antes da 2a audiência do ZEE/DF.  Essa representação é de conhecimento do Ministério Público do Distrito Federal – MPDFT.   Os motivos que levaram a tal medida são elencados abaixo em ordem cronológica:
·      Em março deste ano, a SEMA formaliza convite ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  (IBGE), para que o Dr. Mauro César Lambert de Brito Ribeiro, pesquisador e diretor da Reserva Ecológica do IBGE (RECOR), participasse na elaboração do texto do Projeto de Lei do ZEE/DF. Isso ocorreu em função, à época da 1a Audiência do ZEE/DF, de terem sido apontados vários problemas conceituais, metodológicos e de resultados dentro do trabalho;
·      Em março, o Instituto de Geociências (IG) da Universidade de Brasília é apontado em um caderno produzido pelo GDF como integrante da Academia que tinha elaborado o ZEE/DF.  O material foi produzido em papel e se encontra na página da SEMA.  O caderno contém, na página 7,  a frase “As muitas mãos que construíram o ZEE no DF”. Ocorre que o material tem erros grosseiros conceituais, metodológicos e de conteúdo.  Isso levou a um questionamento interno feito ao Prof. Dr. José Elói Guimarães Campos, diretor do IG,  sobre se houve participação formal do Instituto na elaboração do ZEE/DF.   Em resposta, o Prof. José Elói afirma que  o IG não foi formalmente envolvido na execução do ZEE/DF. Eventualmente, docentes e técnicos dos quadros da Universidade de Brasília ou do Instituto de Geociências podem ter tido participação direta ou indireta na execução de análises que culminaram na confecção do ZEE. A participação do Instituto de Geociências não foi formalizada junto ao Conselho de Instituto e caso o Governo do Distrito Federal considere necessária a formalização desta participação, será necessário que o conselho se manifeste. (...) Caso seja solicitado, por canais oficiais ou por instituições formais, o Instituto de Geociências constituirá comissão de docentes especialistas para proceder às avaliações pertinentes;
·      Desde  que a SEMA solicitou contribuição formal do IBGE,  este Órgão, em diversos momentos, pediu todo material digital do ZEE/DF, para ajudar nas suas análises. Contudo, isso nunca foi atendido.  Foi necessário que o MPDFT intercedesse e solicitasse à SEMA o envio dos dados.  Entretanto, o material disponibilizado foi incompleto.  Cabe destacar que, até agosto, o MPDFT desconhecia o fato de a SEMA ter pedido ajuda ao IBGE;
·      Devido à carga de trabalho em relação ao ZEE/DF, o IBGE solicita ajuda de pesquisadores afetos à temática Zoneamento Ambiental e também de professores do Instituto de Geociências. Mais adiante, o IBGE  oficializa o pedido de parceria com o Instituto de Geociências;
·      Em final de maio, a SEMA agenda uma reunião para início de junho com o IBGE, para tratar do andamento dos trabalhos dessa instituição. Contudo, devido à mudança na presidência do IBGE, é solicitado pelo órgão adiamento do encontro para final do mês. Depois disso, nunca mais houve contato da SEMA com o IBGE para tratar do ZEE/DF;
·      Na primeira quinzena de outubro, a SEMA divulga novos dados e produtos referentes ao ZEE/DF, já com um link denominado ZEE/FINAL. Também indicava a última audiência pública do ZEE/DF, agendada para  28/10/17;
·      Desde março, embora o IBGE estivesse trabalhando no ZEE/DF e contasse com ajuda do Instituto de Geociências, não foi comunicado oficialmente da  2a. Audiência Pública.  A instituição soube por terceiros.  Além da perplexidade da notícia, o Órgão desconhecia o  ZEE/FINAL;
·      Em outubro, a 2a. Audiência Pública do ZEE/DF foi realizada pela SEMA. O IBGE nem ao menos foi convidado a participar.  Na ocasião, novamente a SEMA aventa que o Instituto de Geociências estaria contribuindo naquele instrumento. A audiência foi toda gravada em vídeo e áudio.
              Os fatos acima são graves e envolvem duas instituições federais, o IBGE e o Instituto de Geociências (UnB). Ambos disponibilizaram o conhecimento adquirido e seus profissionais para aprimorar o ZEE/DF, principal instrumento da política ambiental do Distrito Federal.  As informações geradas por eles são de extrema importância para preencher as diversas lacunas do ZEE/DF. Cabe realce as seguintes temáticas:

·           Questões hídricas (superficiais e subterrâneas). Como o Instituto de Geociências detém a maior quantidade de trabalhos publicados sobre águas subterrâneas no DF, sua participação é de suma importância;
·           Grau de integridade dos ecossistemas terrestres e aquáticos, com especial atenção às espécies endêmicas e ameaçadas de extinção, que constam do Livro Vermelho;
·           Grau de fragmentação do cerrado dentro e fora  das unidades de conservação e de pressão antrópica sobre as áreas protegidas;
·           Formação de corredores ecológicos entre Reservas Legais, Áreas de Preservação Permanente e unidades de conservação, com especial atenção às áreas prioritárias para a conservação definidas pelo Ministério do Meio Ambiente;
·           Densidade populacional máxima dentro das bacias hidrográficas, com ênfase para as bacias do Lagos Paranoá e Descoberto.  No primeiro caso, isso irá contribuir para subsidiar o planejamento urbanístico na área de tutela do Conjunto Urbanístico de Brasília. Para ambas as bacias os resultados irão ajudar a estabelecer parâmetros mais fidedignos referentes ao grau de  proteção do sistema hídrico;
·           Inserção e compatibilização de todos os zoneamentos ambientais das unidades de conservação em relação ao atual PDOT e a proposta do ZEE/DF, com destaque para a APA do Planalto Central.

              Embora os fatos narrados envolvam instituições federais, o Ministério Público Federal teve entendimento de promover o declínio de atribuições em favor do Ministério Público do Distrito Federal, que vem acompanhando mais de perto a elaboração do ZEE/DF. O fato é que os vícios nesse instrumento crescem  e se tem evidências claras que ainda não temos o ZEE/DF que necessitamos e almejamos.  Assim, a saída para preencher as lacunas no ZEE/DF passa pelos resultados que o IBGE e o Instituto de Geociências estão produzindo. Afinal, tratam-se de instituições idôneas, confiáveis e com larga experiência científica na área.
              A falta de deferência do GDF para com as instituições federais não pode significar a perda de um trabalho que está em andamento.  Não está claro os motivos que levaram a SEMA a desprezar o aporte de conhecimento do IBGE em ZEEs nacionais e insistir com a alegação que o Instituto de Geociências contribuiu com o atual projeto ZEE/DF.  Por tudo isso, a sociedade merece garantias para ter um instrumento sem vícios,  que contenha o máximo de informações científicas e atenda aos objetivos da política ambiental do Distrito Federal.  Logo, não cabe ao GDF vaticinar, como fez hoje no Fórum Clima,  ao citar  o projeto ZEE/DF  como instrumento que irá contribuir no enfrentamento  das mudanças climáticas.  Diante dos fatos narrados, fica cada vez mais evidente que o atual ZEE/DF não é toda aquela panaceia que o GDF produziu. 
        

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Quanto vale a preservação de Brasília como patrimônio cultural da humanidade?





Brasília já nasceu com o caminho da preservação traçado. A primeira lei de organização administrativa do Distrito Federal, nº. 3.751, de 13 de abril de 1960, que definiu toda a estrutura administrativa para a gestão da cidade, a NOVACAP, cabendo à época, o poder de legislar, ao Congresso Nacional, por Comissão especial do Senado Federal. O artigo 38 dessa Lei assegurava: “ Art. 38. Qualquer alteração no plano piloto, a que obedece a urbanização de Brasília depende de autorização em lei federal.” Já se percebia não só a preocupação com a preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, como também a sua vulnerabilidade a depender de decisões de âmbito local. Afinal, a nova Capital do país era e ainda é responsabilidade Federal.

O primeiro ato específico para a preservação do projeto urbanístico de Lúcio Costa foi internacional, com sua inscrição pela UNESCO, como Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1987, baseado no Decreto Distrital nº. 10.829, que em regulamentação ao Artigo 38 da Lei Federal 3.751/60, em 16 Artigos estabelece os dispositivos essenciais de sua concepção urbanística que deveriam ser preservados, agregando-os em Escalas: “ Monumental”, “Residencial”, “Gregária” e “Bucólica”.

Três anos depois é que o Conjunto Urbanístico de Brasília – CUB , foi inscrito como Patrimônio Histórico Nacional pela Instituto Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, com a publicação da Portaria nº 04/90, substituída pela Portaria 314/92, mantido praticamente todo o conteúdo do Decreto Distrital nº. 10.829/87.

Esta Portaria foi “acolhida” por nossa Lei Orgânica, o que lhe confere categoria de Constitucionalidade, sendo que qualquer modificação na Portaria 314/92, para efeito no Distrito Federal, pode ser questionada por inconstitucionalidade.

Com a instalação da Câmara Legislativa do Distrito Federal e a independência do Poder Executivo local em planejar sobre uso, ocupação e controle do solo do território, inúmeras foram as tentativas de desconfiguração do Conjunto Urbanístico de Brasília.

Houve Governo que propôs lotear e parcelar o canteiro central do Eixo Monumental, ferindo de morte a “Escala Monumental”. Houve proposta de alterar o número de pavimentos da W3, para seis e até doze andares, por concurso público sob o título de “revitalização” da W3. Felizmente o vencedor do concurso não feriu nenhum dispositivo da legislação de tombamento. Entretanto, até a presente data não houve iniciativa em implementar seu projeto. Alterou-se o projeto dos comércios locais para regularizar as invasões conhecidas como “puxadinhos” da Asa Sul e recentemente da Asa Norte, cujos prazos JAMAIS foram cumpridos e sempre prorrogados, á revelia da posição dos moradores, que recebem os impactos negativos dessa alteração.

Houve propostas de cercamento das superquadras do plano piloto, de alterar o número de pavimentos das projeções, de vender para exploração por particulares os lotes destinados a educação pública de jardim de infância e escola-classe, também houve proposições de venda de lotes destinados a equipamentos públicos comunitários destinados a serviços de segurança, educação e outros, situados nas entrequadras, o que descaracterizaria as Unidades de Vizinhança; houve negócios duvidosos para implantação de uma quadra ( quadra 500) a mais no Setor Sudoeste, inexistente nos documentos legais, a omissão do Governo quanto a habitação nas faixas 600 sul e norte, a permissão de habitação revestida de hotel no setor de clubes esportivos e mais um cem número de proposições e modificações completamente inadequadas e contraditórias a toda legislação de preservação de Brasília.

Lamentavelmente este Governo retoma essa iniciativa quando, inicialmente, ignora a participação popular na gestão da cidade, na medida em que não responde a questionamentos de várias Entidades da sociedade civil, divulgadas por Carta Aberta. Após um ano de espera, recebe essas Entidades, solicita sugestões sobre a Lei de Uso do Solo – LUOS, questionada também pela sociedade civil e, antes de receber as sugestões, encaminha o projeto de lei para aprovação do Conselho de Planejamento do Distrito Federal – CONPLAN, órgão máximo de deliberação do Poder Executivo. Exclui representação de Entidades da Sociedade Civil do Comitê Gestor do Park Burle Marx; não considera as sugestões apresentadas por Entidades da Sociedade Civil sobre o Zoneamento Ecológico e Econômico do DF, apresentado em Audiência Pública. Propôs, também, a regularização e novas ocupações de áreas públicas, áreas verdes, em todo o DF, inclusive no plano piloto de Brasília, em total afrontamento ao projeto de Lúcio Costa, contrariando a concepção da cidade parque e sua “Escala Bucólica”.

E mais, como se não bastasse, insiste em NÃO constar, no Zoneamento Ecológico e Econômico do DF, o “NÃO PODE”, deixando livre para o licenciamento, essa possibilidade, que certamente estará sujeita a pressões políticas, como até agora assistimos. Se buscarmos as licenças ambientais do projeto Noroeste verificaremos exatamente do que estaremos sujeitos no futuro próximo, sem essa proposição em andamento pelo Executivo em total desrespeito as proposições da sociedade civil.

E mais, insiste este Governo na implantação do projeto conhecido como Taquari 1, etapa 2, amplamente discutido com a sociedade civil e experts em meio ambiente, que concluíram pela total impossibilidade de implantação desse projeto, por razões ambientais. Ainda , a proposição de alterar usos e incluir possibilidades de construções no Setor Esportivo de Brasília, em pleno Eixo Monumental, pura e simplesmente para “viabilizar a parceria público-privada”, nos leva a duvidar da seriedade dessas proposições e intenções governamentais.

E agora, em sequência, na postura de ignorar a legislação de preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília, o Executivo local “propõe debate” sobre a possibilidade de habitação nas áreas centrais do plano piloto de Brasília, ferindo, agora, duas de suas Escalas: as “Residencial e Gregária”. A definição de onde, em Brasília, poderia ocorrer uso residencial está absolutamente identificado no documento legal denominado: “Brasília Revisitada”. O centro da cidade até poderá receber outras atividades, como culturais, por exemplo, exceto a residencial, que definitivamente enterrará o projeto de Lúcio Costa.

O procedimento deste Governo, agora, após conhecermos que a TERRACAP está no vermelho, tudo faz sentido. Vender áreas verdes, alterar usos do solo, afrontar de morte o Conjunto Urbanístico de Brasília, amparado por legislação de âmbito internacional, tudo para arrecadar recursos.

A entrevista publicada por Chico Santanna, com o presidente da TERRACAP é a resposta para todo esse imbróglio que o GDF impõe a seus habitantes e ao Distrito Federal, aumentando a crise de gestão hídrica, desconfigurando o plano de Lúcio Costa, afastando e desrespeitando o direito legal adquirido pela sociedade em participar da gestão da cidade.

Afinal, quem está atenta a tudo isso é a sociedade e não as autoridades em ação. E certamente tais ações e proposições não estão atendendo ao interesse público.

27 de novembro de 2017


terça-feira, 28 de novembro de 2017

A agonia do cerrado-Devastação do cerrado gera desequilíbrio ambiental

Devastação do cerrado gera desequilíbrio ambiental

Seca, incêndio e temporais são recados da natureza

“Barbas de raiz, braços de tronco seco, pele de casca de pau — era o seu aspecto bravio. E ali, entre os troncos imemoriais, à luz azinhavrada e doentia que a mata coava, como se fosse um fundo de mar, tinha o velho um ar asperamente sagrado de profeta e demônio”

Conto Pai Norato, Bernardo Élis

O súber é um tecido formado por células mortas e que envolve troncos e galhos. Foto: Minervino Junior/CB/DA Press

O cerrado sempre foi um bioma arredio. Quem quis vida fácil, atrás de riqueza passageira, como o ouro abundante do século 18, deu meia volta. Quem buscou progresso, insistiu, ficou. Com cal, o solo tornou-se menos ácido e passou a aceitar espécies, até então, estranhas. A terra ganhou gado e lavoura. De uma clareira na mata, as árvores passaram a dividir espaço com o concreto das cidades. De arisco, o bioma ganhou ares generosos. Com trabalho e com uma mudança ali e acolá, o homem fez dele a casa de muitos brasileiros.

Nos últimos 60 anos, o cerrado mudou como nenhum outro bioma brasileiro. Em suas terras, o Brasil expandiu a fronteira agrícola, garantiu a integração nacional e possibilitou a mais monumental façanha arquitetônica brasileira: a construção de Brasília. Mas o que tinha aspecto de simbiose começou a apresentar desgaste. O preço da transformação veio em forma de desequilíbrio. Se as chuvas tinham data para começar e período certo de ação, agora são perseguições diárias dos meteorologistas. Se jorrava água pelas nascentes, os rios e reservatórios estão cada vez mais secos. Se do fogo brotavam espécies, agora elas morrem nas chamas.






O desequilíbrio ambiental começa a fazer parte do cotidiano e passa a ter um custo social e monetário para os moradores do cerrado. A mais drástica crise hídrica da história do Brasil Central é um exemplo. Brasília passa por racionamento e o Descoberto, seu principal reservatório, registrou 5% de volume. Em Cristalina (GO), as outorgas para irrigação foram suspensas e os agricultores tiveram que aprender a gerir o recurso. Em Goiânia (GO), moradores invadiram a caixa d’água da empresa de saneamento para conseguir o líquido. A falta de água também atingiu a geração de energia. O governo acionou as termelétricas, levando os consumidores a pagarem mais caro, por meio da bandeira vermelha.

Mas a conta não para por aí. As chuvas cada vez mais raras e intensas causam destruição quando chegam, como o vivido por Brasília e Abadiânia (GO) há duas semanas. O maior incêndio do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO), mês passado, também foi um alerta do prejuízo da perda de biodiversidade. Para mostrar o cansaço do bioma, o Correio publica a partir de hoje uma série de reportagens sobre a situação e as perspectivas para o cerrado.



Incêndio criminoso na Chapada dos Veadeiros queimou árvores e matou animais. Foto: Breno Fortes/CB/DA Press

Contagem regressiva 






Infográfico: Cristiano Gomes/CB/DA Press 


Especialistas calculam que, se a perda de 1,1% da superfície original por ano se mantiver, o bioma deixará de existir na primeira metade deste século. Alguns estudos cravam que o fim será em 2030. Os mais otimistas estimam 2050. De acordo com números do Ministério do Meio Ambiente, a média são mais de 9 mil quilômetros quadrados de perda da cobertura vegetal por ano. Área correspondente a um território e meio do Distrito Federal. Há uma divergência entre a quantidade de área de cerrado devastada. O governo federal divulga 43,42%. Organizações ambientalistas falam em 50% de perda.


A escalada da destruição provoca uma cadeia negativa. A perda de cobertura vegetal nativa e a consequente modificação no ambiente impactam no ciclo hidrológico, com lençóis freáticos cada vez mais vazios, chuvas mais esparsas e fortes e rios com vazão menor.

“Acabando com a savana mais rica do planeta, estamos dando um tiro no pé. Nas cidades, a impermeabilização não deixa mais penetrar água no solo. No campo, o agronegócio consome de 70% a 80% da água do Brasil. A demanda só aumenta. Vai haver um colapso”,
alerta Reuber Brandão, professor de Engenharia Florestal da Universidade de Brasília (UnB).

Animais ameaçados 

 

Com o aumento do desmatamento, em 12 anos, as espécies animais ameaçadas de extinção passaram de 75 para 176. O mais grave: nesse período, nenhuma conseguiu deixar a lista. Quatro estão categorizadas como criticamente em perigo, sob risco iminente de desaparecerem. Trata-se da borboleta Hyalyris fiammetta, de duas aves — o pararu-espelho e a rolinha-do-planalto — e do rato candango. Exemplares desse foi visto pela última vez por funcionários da Novacap, durante a construção de Brasília, na região onde hoje estão a Candangolândia e o Zoológico de Brasília.

Na flora, há 310 tipos ameaçados. Das 1.140 plantas que podem ser perdidas, 657 já são consideradas condenadas à extinção, apontam estudos baseados nos dados da organização britânica Lista Vermelha de Espécies em Extinção. A velocidade da destruição maior do que a capacidade de ações públicas e privadas de conservação preocupa especialistas. “O planeta não aguenta do jeito que a gente está indo. Não é só o cerrado. O planeta vai estourar antes e o cerrado vai embora junto”, lamenta José Felipe Ribeiro, pesquisador da Embrapa Cerrados.

A lavoura e o pasto ameaçam de extinção 44 espécies nativas do cerrado, segundo levantamento do ICMBio


Considerado um dos biomas mais ricos do planeta, o cerrado abriga 4% da diversidade mundial — há 17.487 tipos de animais e plantas no bioma. A representatividade de mamíferos e pássaros é ainda maior (8%). A savana brasileira é a casa do lobo-guará, da onça, da paca, da jaguatirica, do gato-palheiro, do tamanduá bandeira, da seriema, do inhambu-chororó, da coruja-buraqueira. Praticamente toda essa riqueza está concentrada em terras brasileiras (95%). O restante pode ser encontrado na Bolívia e no Paraguai. No entanto, só 3% da área de cerrado está efetivamente protegida em reservas. O resultado é a perda de metade da formação original e o extermínio das espécies. O desmatamento no cerrado é 2,5 vezes maior do que o da Amazônia, por exemplo.

A agropecuária, a expansão urbana, os empreendimentos de energia elétrica, o desmatamento, a poluição, as queimadas e a mineração são as atividades humanas que mais colocam em risco os animais do cerrado. A lavoura e o pasto ameaçam de extinção 44 espécies, de acordo com o ICMBio.

O crescimento desordenado das cidades, 21. Os empreendimentos de energia, como os alagamentos de áreas para construção de hidrelétricas, 20. O desmatamento da cobertura vegetal, 14. A poluição de cidades, de fábricas e rejeitos agrícolas, 13. As queimadas, 12, e a mineração, 9.

Ocupação desordenada


Crescimento urbano desenfreado ameaça 21 espécies de animais. Foto: Breno Fortes/CB/DA Press
Mapeamento feito pela Organização Não-Governamental WWF, aponta que o Distrito Federal e os estados de Goiás, Minas Gerais, e São Paulo são os locais de maior perda da biodiversidade. Nem o fato de grande parte do DF estar inserido na Área de Proteção Ambiental (APA) do Planalto Central impede a perda de tipos vegetais e animais. Na capital da República, a principal influência é a urbana: a partir dos anos 2000, a crescente mancha urbana tomou fôlego e duplicou.

A população do DF chegou a mais de 3 milhões em 2017. Há ainda a pressão populacional exercida pelos municípios goianos do Entorno. São mais 1,12 milhão de pessoas, contando apenas as 11 cidades limítrofes com o DF. Em São Paulo, Minas Gerais e Goiás, o impacto mais significativo é o do agronegócio. A pressão urbana acaba concentrada perto das cidades de maior porte.

Para o professor de Engenharia Florestal Reuber Brandão, da UnB, a perda de biodiversidade pode ser bem maior do que o registrado, uma vez que áreas inteiras foram devastadas antes de registrar as espécies existentes no local e, uma característica do cerrado são os animais que concentram em determinadas regiões. “O avanço do desmatamento das áreas naturais é mais rápido que o avanço científico. O país investe pouco em ciência. É difícil saber se algumas espécies foram extintas, porque a gente sequer soube da existência delas”, comenta.

O que preocupa os ambientalistas é que em estados onde a devastação já ocorreu a terra tem valor mais alto. O preço médio por hectare em São Paulo, Minas Gerais e Goiás é maior do que em estados como Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Por isso, a expansão agrícola brasileira vem ocorrendo no sentido desses estados, o chamado Matopiba, que tem a faixa mais preservada. “Temos um contraponto da preservação: no cerrado, as terras mais baratas são onde há mais biodiversidade. As não ocupadas são as mais baratas, o que tem levado a expansão agrícola para essa região do Matopiba e é uma grave ameaça”, afirma Júlio César Sampaio, coordenador do programa Cerrado-Pantanal da WWF Brasil.


Pequenos sentem efeitos 

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A família Mesquita mora a 30 quilômetros da charmosa Pirenópolis (GO), no Povoado de Caxambu. A casa simples não tem janelas e as portas estão sempre abertas. Árvores rodeiam a residência. Na cozinha, o fogão a gás divide as tarefas com o tradicional fogão a lenha, abastecidos com o que se cria na propriedade de três alqueires. Os Mesquita tiram o sustento da agricultura familiar e de produtos caseiros como geleias. Mas, além do plantio, a família transformou o cerrado em fonte de renda. Antes restritos ao consumo, os frutos passaram a ser vendidos.

O principal produto é a castanha do baru, vendida desde 1994. “Os índios usavam o baru, mas na roça a gente não tinha esse costume. Comíamos o baru cru e diziam para não comer muito para não dar pereba. Mas, em 1994, torraram a castanha e deu muito certo”, conta Érica Danielle de Mesquita, 31 anos.

Mas as árvores da redondeza não produzem mais o fruto com o mesmo vigor do passado.”Tivemos um 2017 ruim. Colhemos apenas 100kg. Em bons anos, como 2009, chegamos a ter 2 mil kg”, lembra Érica. Ela diz que, para honrar os compromissos firmados com os clientes, teve que comprar a castanha em outras cidades goianas, como Barro Alto e Goianésia.

Da coleta na árvore à torra e o embrulho para a venda, o trabalho com o baru é todo artesanal. Não há uma plantação de baru, a família coleta o fruto nas matas da região. “Uma vez, ouvi um chefe de cozinha dizendo que o baru era caro porque estava na moda. Mas dá muito trabalho. A gente pega 16 vezes no fruto até a castanha chegar no consumidor final”, explica Érica.

Seca prolongada

https://youtu.be/HtDCK2VtQnA


Dependendo da terra para sobreviver, os Mesquita sofrem com a falta de água. “A bica do nosso quintal nunca tinha secado. Este ano foi a primeira vez. Pode ser por isso que os frutos não estão como antigamente”, analisa o pai de Érica, Gabriel Divino de Mesquita, 65 anos, conhecido na região como Seu Bié. “Este ano, as árvores até tiveram flores, mas como choveu de forma irregular, a chuva forte destruiu as flores antes de virarem frutos”, completa Érica.

A família chegou a receber uma proposta para vender a castanha a uma grande fábrica de chocolate brasileira. “Mas eles queriam 700kg por mês. No cerrado, não é possível prever a colheita”, diz Érica. Seu Bié lembra que nos tempos de moleque, voltava da escola comendo a grande oferta de frutas do cerrado que via pelo caminho. “Não tinha merenda escolar, aí, da escola pra casa, a gente vinha comendo araticum, murici, cajuzinho e até o baru cru”.