Publicado em dezembro 21, 2015 por
Redação
Irresponsabilidade das empresas e omissão do Estado já
anunciavam a tragédia em Mariana. Entrevista especial com Ana Flávia
Santos
“Um ponto de partida para compreender o rompimento da
barragem de Fundão é frisar que não foi um desastre natural”, aponta a
pesquisadora.
|
Foto: Colada Web
|
Uma série de negligências, burocracias e desrespeito aos direitos
humanos e ao meio ambiente engrossam a lista de problemas gerados em
nome do lucro.
No
Brasil essa é a lógica que rege a
implementação de grandes empreendimentos que provocam vultosos impactos
nos espaços onde são construídos. Vide o caso da estrutura da empresa
Samarco, instalada em
Mariana – MG para a exploração de minérios na região.
De acordo com a pesquisadora e professora
Ana Flávia Santos,
os movimentos do mercado, que funcionam a partir de ciclos de alta e
baixa de preços de commodities, acabam prevalecendo sobre a segurança
das pessoas e da natureza. “Muitas vezes há um aumento do
ritmo de extração
para manter a lucratividade dos empreendimentos, que se expandiram no
momento de alta e que na baixa dos preços não se sustentam, não têm
viabilidade econômica, mas há uma pressão enorme para que se mantenha a
lucratividade. Com isso, se aumenta o ritmo de extração de minério”, explica em entrevista por telefone à
IHU On-Line.
Conforme alerta a pesquisadora, o aumento da
exploração dos minérios
implica também na geração de maior quantidade de resíduos e, por
conseguinte, na necessidade do aumento de capacidade das barragens,
fator que não é respeitado pelas empresas, que postergam até as últimas
consequências a regularização desse quadro. Para garantir a continuidade
do trabalho desses empreendimentos, são utilizados subterfúgios nos
processos de
licenciamento, a chave de todas as
irregularidades nesse campo.
“Há um fato que se torna flagrante nesse
caso da Samarco e que, em minha opinião, é um problema de fundo nos
licenciamentos ambientais no Brasil: é a questão de que os
licenciamentos acabaram se tornando grandes processos burocráticos, em
que tudo ocorre como se o empreendedor tivesse que cumprir meras etapas
burocráticas, para depois necessariamente obter a licença. Nesse
cenário, tem se perdido de vista a questão crucial do processo de
licenciamento, que é fazer uma avaliação da viabilidade ambiental desses
empreendimentos, e não apenas econômica”, aponta.
Segundo
Ana Flávia, nesses processos burocráticos as
verdadeiras falhas e insuficiências, muitas vezes denunciadas pelas
populações locais, não são levadas em conta e os empreendimentos seguem
sendo construídos e funcionando, e os desastres sendo aguardados a
qualquer momento.
“É claro que ficamos profundamente indignados e
entristecidos com isso que aconteceu em
Mariana, pelo
grau de irresponsabilidade que demonstra, não só da empresa, como também
do Estado. Mas, na verdade, se acompanharmos um, dois ou três
processos, é possível perceber que os licenciamentos são tão
insuficientes como instrumentos de garantia de segurança e
direitos
para a sociedade, que a tragédia acaba não sendo uma surpresa, pelo
contrário, se pensa que realmente pode acontecer, tendo em vista todo
esse contexto”, constata.
Ana Flávia Santos é graduada em Ciências Sociais
pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, mestra em Antropologia
pela Universidade de Brasília – UnB e doutora em Antropologia Social
pelo Museu Nacional – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Atualmente é professora adjunta da UFMG e integra grupos de pesquisa e
extensão sobre a temática de conflitos ambientais, entre esses os
causados por empreendimentos de mineração.
Confira a entrevista.
|
Foto: Gazeta do Povo
|
IHU On-Line – Quais foram as falhas que geraram a explosão da barragem da Samarco em Mariana?
Ana Flávia Santos – Um ponto de partida para compreender o rompimento da barragem de Fundão é frisar que
não foi um desastre natural.
Pelas informações que têm me chegado desde o acontecimento e com base
nos estudos que vêm sendo realizados, sabe-se que as commodities e o
minério de ferro têm ciclos. Então existe um processo em que há uma alta
de preços, e com isso uma expansão rápida da atividade, e depois há um
declínio; desde
2012 estamos vivendo esse processo de queda dos preços.
Nesse movimento do mercado, muitas vezes há um aumento do
ritmo de extraçãopara
manter a lucratividade dos empreendimentos, que se expandiram no
momento de alta e que na baixa dos preços não se sustentam, não têm
viabilidade econômica, mas há uma pressão enorme para que se mantenha a
lucratividade. Com isso, se aumenta o ritmo de extração de minério.
Esse é um aspecto da questão. Sabe-se, por exemplo, que a
Samarco
de fato aumentou o ritmo de deposição de resíduos nos últimos anos
naquele complexo de barragens. Já acompanhei outros casos semelhantes em
que há esse aumento do ritmo de deposição em decorrência da expansão da
capacidade produtiva.
Nessas situações há também a necessidade de
aumentar a capacidade de acondicionar os rejeitos. Muitas vezes seria
preciso até a construção de uma nova estrutura para este fim.
Entretanto, licenciar as barragens não é uma tarefa simples, pois elas
são grandes estruturas, que causam muitos impactos sociais e ambientais e
oferecem alto risco. O que acontece com frequência é que se fragmenta o
processo de licenciamento, onde é licenciado o aumento
da capacidade produtiva com base na argumentação de que é possível
alterar as barragens que já estão em operação, postergando o
licenciamento de uma nova estrutura.
Isso faz com que seja levada até o
limite máximo a utilização desses depósitos.
Então, o que se percebe é que há uma série de solicitações de
licenciamentos que são fragmentados do complexo como um todo. Nesse
processo de fragmentação, que não ocorre só nos empreendimentos
minerários, mas em diversos outros setores, acaba-se perdendo a visão do
conjunto, da dimensão total dos impactos e das sinergias que cada
estrutura causa sobre outras estruturas que foram construídas próximas.
IHU On-Line – Dado o acidente em Mariana, que mudanças
deveriam ocorrer no modo como se faz o licenciamento ambiental das
barragens de rejeitos? Quais são os principais problemas envolvidos?
Ana Flávia Santos – Há um fato que se torna flagrante nesse caso da
Samarco e que, em minha opinião, é um problema de fundo nos
licenciamentos ambientais
no Brasil: é a questão de que os licenciamentos acabaram se tornando
grandes processos burocráticos, em que tudo ocorre como se o
empreendedor tivesse que cumprir meras etapas burocráticas, para depois
necessariamente obter a licença. Nesse cenário, tem se perdido de vista a
questão crucial do processo de licenciamento, que é fazer uma avaliação
da viabilidade ambiental desses empreendimentos, e não apenas
econômica.
A materialização disso se vê, por exemplo, em respostas como a que a
Samarco
deu, principalmente logo depois do desastre, quando eles foram
perguntados sobre o porquê de não haver um sistema de alarme para avisar
a comunidade de
Bento Rodrigues da ruptura da
barragem. A resposta que eles deram foi absurda, mas é cotidiana nesses
processos: eles disseram que a lei não exigia.
Então se vê que o que
está em causa nesses processos não é o que seria preciso para prevenir
impactos e, efetivamente, colocar na balança os danos e os benefícios
para avaliar se os prejuízos aos interesses coletivos vão ser mais
graves do que os ganhos que serão gerados. Os licenciamentos ficam sendo
meramente o cumprimento de questões burocráticas.
Especificamente nesse caso da
Samarco, não é verdade que não se exigia a instalação do
alarme, mas se não está colocado
ipsis litteris
“é obrigatória a instalação do alarme”, se interpreta como se quiser a
lei e simplesmente se passa por cima disso porque, na verdade, o que
interessa é o cumprimento burocrático formal das etapas do
licenciamento.
Esse comportamento é possibilitado por duas situações:
Primeiro, algo que é muito prejudicial é o fato de que as empresas é
que contratam diretamente as consultorias ambientais que vão elaborar os
estudos de
impacto ambiental, numa relação direta
entre o empreendedor, o principal interessado no empreendimento e a
consultoria que vai realizar as análises. Acrescenta-se a esse quadro a
pouquíssima ou nula participação da população local, que é quem
efetivamente conhece as características daquela região.
Assim, esses empreendimentos são licenciados com o
Estudo de Impacto Ambiental – EIA/RIMA
elaborado por uma empresa contratada diretamente pelo empreendedor, sem
a participação efetiva da sociedade. Aí entramos no segundo ponto: os
licenciamentos previstos são extremamente restritos para participação, a
qual efetivamente não tem gerado nenhum eco nesses processos de
regulamentação.
Quando há audiências públicas, elas se configuram em
ocasiões extremamente vazias em que as manifestações e os
questionamentos da população não têm gerado retornos efetivos no âmbito
do licenciamento; quando muito, as reivindicações geram repostas
meramente formais.
Por exemplo, o licenciamento, em tese, deveria ser um instrumento
capaz inicialmente de prever todos os impactos – todos -, com base em um
estudo minucioso, que para ser realizado com a profundidade necessária,
só poderia ser feito com a participação efetiva da
população local,
o que não tem acontecido.
Somente dessa forma se poderia efetivamente
ter ciência de todos os danos, mudanças e transformações que aquele
empreendimento vai gerar no ambiente, que compreende um conjunto de
elementos que inclui a dimensão social, humana e cultural daquela
realidade. A partir disso seria possível avaliar seriamente se um
empreendimento é viável ambientalmente e socialmente.
Então, a
licença prévia, que é a primeira fase, em
tese significaria que o empreendimento é viável, o que nem sempre é
verdade, pois os estudos são mal feitos. Geralmente não importam as
inúmeras falhas e ineficiências, que são muitas vezes denunciadas pela
população nas poucas ocasiões em que ela pode participar, que são as
audiências públicas. Nada é levado em consideração, quando muito essas
falhas e insuficiências são transformadas em condições para que o
processo continue, que são as chamadas
condicionantes.
Isso é feito em todas as etapas do processo, assim é possível ver que as
falhas não são de fato sanadas, elas são sempre postergadas para a fase
seguinte.
Portanto, isso implica desde questões de fundo, até medidas relativas à segurança – como o próprio caso da
Samarcoindica – que são postergadas para depois da fase de
licença de operação,
ou seja, transformam-se em condicionantes que não são cumpridas. Desse
modo, tem-se um instrumento de licenciamento que efetivamente perdeu seu
sentido de ser, virou uma mera etapa burocrática.
Para que isso aconteça, há a implicação de outros aspectos, como insuficiência da
atuação do Estado,
que não fiscaliza e não atua no processo de licenciamento ambiental
como instância que exige que a legislação se cumpra e contemple
substantivamente os aspectos apontados nos estudos ambientais.
O Estado
acaba por cooperar para a burocratização do processo na medida em que,
ao invés de exigir que todos os problemas sejam sanados na primeira
fase, ele próprio gera condicionantes, das quais muitas vezes sequer tem
condições de fiscalizar o cumprimento. Dessa forma, o cumprimento das
condicionantes também vira uma questão burocrática, porque tais
solicitações são consideradas cumpridas mediante a apresentação de um
relatório do empreendedor.
IHU On-Line – Uma das críticas feitas à Samarco é a de que
não havia um plano de contingenciamento. Em que deveria consistir esse
plano?
Ana Flávia Santos – A
Samarco não
tinha, ou se tinha era um plano desenhado meramente para cumprir uma
etapa burocrática. Quando disseram “ninguém exigiu o alarme”, eles estão
falando que na verdade tinham um
plano de emergência,
mas um plano que foi feito para cumprir uma fase burocrática, e não um
plano que foi desenhado para efetivamente funcionar e ser eficaz, caso,
eventualmente, houvesse um processo de ruptura daquelas barragens.
Aliás, um plano de contingenciamento, que previsse inclusive os efeitos de um possível evento como esse sobre toda a
bacia do Rio Doce,
como fazer para conter a lama e uma série de outras medidas, parece
que, efetivamente, não foi elaborado, porque eles não fizeram nada, ou
seja, não tinham plano nenhum e não sabiam o que fazer.
Então, há um conjunto de fatores: um instrumento de
licenciamento
que é efetivamente ineficaz e burocrático, e atuais mudanças de
legislação que estão aprofundando esta característica – tanto em
Minas Gerais
quanto em âmbito federal – e não trabalhando no sentido de tornar os
processos de licenciamento realmente efetivos nas funções que eles
deveriam desempenhar, que são:
1) Formar o devido juízo de habilidades socioambientais do empreendimento;
2) Fazer com que, caso ele seja viável ambientalmente, que seja feito
dentro das melhores práticas no sentido de prevenir e de causar menos
impactos possíveis, dentro da ideia da precaução. Estes são princípios
legais, que estão previstos na
Constituição e com respeito aos direitos das comunidades e das pessoas.
O relatório publicado pelo
Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade – PoEMAS
aborda essa questão de fundo que citei, mas também mostrou que tudo
indica que a empresa desconsiderou o aumento dos riscos, imprimindo um
ritmo maior de extração, não levando em conta as questões de segurança,
elevando ao limite máximo a exploração daquele sistema, dentro da lógica
do ciclo de queda do preço. No momento de baixa se “espreme” de todos
os lados para elevar os
lucros, se aumenta a produção e se diminuem os gastos com outras dimensões do empreendimento.
IHU On-Line – Poderia falar um pouco sobre o projeto de mineração Minas-Rio? Quais são os conflitos envolvidos nesse projeto?
Ana Flávia Santos – O
projeto Minas-Rio é um megaempreendimento composto por um complexo de extração e beneficiamento de minério e de um
mineroduto – o maior do mundo, com cerca de 525 km de extensão – que liga esse complexo minerário, localizado na região de
Mato Dentro e entorno, ao
Porto do Açu, um megaporto construído em
São João da Barra, região do litoral norte fluminense, e que tem causado inúmeras preocupações.
Esse complexo teve um
processo de licenciamento que foi fragmentado desde o início porque eles licenciaram primeiro o mineroduto, que em tese é aquela estrutura onde os
impactos
são menos explícitos – eu não diria que são menores, mas que são mais
fáceis de serem camuflados pelo fato de que é uma estrutura subterrânea
-, mas na qual hoje sabemos que os impactos foram subdimensionados.
Então, primeiro houve três conjuntos de licenciamento separados:
mineroduto, mina e porto, e que têm causado impactos enormes, são
licenciamentos extremamente complexos.
Eu acompanhei mais de perto o licenciamento que ocorreu no sistema ambiental de
Minas Gerais,
que foi a parte do complexo minerário a qual teve um licenciamento
eivado de ilegalidades, de inúmeros problemas que não foram tratados ao
longo do processo.
Tinha-se um
EIA-RIMA inicial
extremamente falho, inclusive no reconhecimento dos impactos e das
populações que seriam afetadas. O Estudo falava apenas de duas
comunidades afetadas,
quando há um universo de dezenas de comunidades que estão sofrendo os
efeitos desse empreendimento, com impactos como a desagregação de
territórios de comunidades rurais, que é um processo extremamente
agressivo e lesivo de aquisição de terras, pois há ali o que chamamos na
antropologia de “territórios de parentesco”, e essas pessoas não foram
reconhecidas como atingidas nesse trâmite.
Portanto, houve um processo
de
desagregação familiar muito grande, que envolve
outras questões mais complexas, pois se tratava de terras sem partilha,
que funcionavam de acordo com um “sistema de uso comum”, em que as
famílias regulam o uso de certos recursos e de territórios considerados
comunitários.
Além disso, existem efeitos extremamente danosos no que diz respeito aos
recursos hídricos,
tanto o assoreamento quanto a poluição de córregos, inviabilizando
completamente o uso múltiplo da água feito por essas comunidades. Outro
problema apontado, antes mesmo da operação do empreendimento, foi o
desaparecimento de
nascentes nas áreas de entorno e, em
consequência, a completa inviabilização da vida de dezenas de
comunidades.
Como impactos ainda é possível listar a modificação da
paisagem, a poluição provocada pela alta quantidade de poeira, a
poluição sonora etc.
Enfim, há toda uma
desarticulação, uma completa
transformação das condições de trabalho e das relações que as
comunidades mantinham para poder produzir e dar um destino a sua
produção, tudo sendo transformado sem que seja efetivamente reconhecido
como impacto. Além desses fatores, há a criação de áreas de risco,
porque também foi construída uma
barragem de rejeitos sem considerar as populações que estão nessa área de risco, a qual foi instaurada pelo próprio empreendimento.
Ainda houve nesse processo de licenciamento do
Minas-Rio a criação espúria de um termo que é o “
impacto suposto”,
ou seja, a empresa argumentava que tudo que a população do entorno
sofria e denunciava como sendo impacto do empreendimento era da ordem
dos impactos supostos. Isso incluía, por exemplo, o receio de um
eventual rompimento da barragem de rejeitos, que deveria ser tratado,
então – já que era “suposto” –, por meio de um sistema de comunicação
social, ou seja, as pessoas deveriam ser convencidas de que aquilo
efetivamente não implicaria um risco.
É por isso que quem trabalha com
licenciamento não se espanta diante de um acontecimento como o da
Samarco.
É claro que ficamos profundamente indignados e entristecidos com isso
que aconteceu, pelo grau de irresponsabilidade que demonstra, não só da
empresa, como também do Estado, o qual deveria atuar para que as coisas
fossem feitas de maneira a considerar as precauções de forma
substantiva.
Mas, na verdade, se acompanharmos um, dois ou três
processos, é possível perceber que os licenciamentos são tão
insuficientes como instrumentos de garantia de
segurança e direitos
para a sociedade, que a tragédia acaba não sendo uma surpresa, pelo
contrário, se pensa que realmente pode acontecer, tendo em vista todo
esse contexto.
Por Leslie Chaves e Patricia Fachin
(
EcoDebate, 21/12/2015) publicado pela
IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[
IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo,
RS.]