A saga de João e Raimunda tem seu ápice em dois atos de uma guerra
amazônica não reconhecida pelo Estado e pela maioria dos brasileiros.
Ainda assim, ela está lá. Aqui. E
ssa história, decidida neste momento no
Pará, na região de Altamira e da bacia de um dos rios mais ricos em
biodiversidade da Amazônia,
o
Xingu, é contada por um homem e por uma mulher, apenas dois entre
dezenas de milhares de expulsos pela hidrelétrica de Belo Monte,
gente que hoje vaga por um território que não reconhece – e no qual não
se reconhece.
Mas esta não é mais uma entre tantas narrativas dramáticas
em um país assinalado pela violação sistemática dos direitos de negros e
de indígenas. Raimunda e João trazem inscritos no corpo uma
encruzilhada histórica. A de um país que chegou ao presente, depois de
tanto ser futuro, e se descobriu atolado no passado. O epílogo de um
partido que chegou ao poder com a promessa de dar dignidade aos mais
pobres e aos mais desprotegidos e os traiu na porção mais distante do
centro do poder político e econômico, a Amazônia.
Esta é também a
anatomia de uma perversão: a de viver numa democracia formal, mas
submetido a forças acima da Lei. O não reconhecimento da violência
sofrida inflige a suas vítimas uma dor ainda maior, e uma sensação de
irrealidade que as violenta uma segunda vez. É a experiência de viver
não fora da lei, mas sem lei que escava a existência de Raimunda e de
João – e os faz escolher destinos diferentes diante da aniquilação.
Raimunda decidiu viver, ainda que carregando seus pedaços. João não
sabe como viver. Para ele, só há sentido na morte em sacrifício.
Neste momento, João e Raimunda vivem esse impasse.
Enquanto isso, a Norte Energia espera apenas que o Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA)
dê a Licença de Operação da hidrelétrica, mesmo sem que a empresa tenha
cumprido as medidas de redução e compensação do impacto, para começar a
encher o lago de Belo Monte.
O terceiro ato ainda é uma incerteza.
Ato 1: João perde a fala e trava as pernas para não matar
Segunda-feira, 23 de março de 2015. João Pereira da Silva estava
diante do preposto da Norte Energia, a empresa que venceu o leilão de
Belo Monte, apresentada como uma das três maiores hidrelétricas do
mundo. Ele esperava receber um valor justo pela sua casa, roça e demais
benfeitorias, na ilha da qual era expulso pela barragem.
Em vez disso,
impuseram-lhe o valor de 23 mil reais, insuficiente para comprar uma
terra onde pudesse voltar a plantar, pescar e extrair os frutos da
floresta para ganhar o sustento.
João percebeu ali que estava condenado à
miséria, aos 63 anos. E que, para ele, a Lei não valia. Desde os oito
anos de idade ele peregrinara por vários Brasis em busca de uma terra
sem dono, arrancando cada dia da força dos braços. Depois de um percurso
de faltas, João acreditou ter encontrado uma casa e uma existência sem
fome na ilha do Xingu.
E agora arrancavam-no também dali. João sentiu
que era a vida que lhe roubavam, e que ele já não tinha mais juventude
nem saúde para recomeçar. Para João, já não haveria uma última
fronteira, a esperança de todos os brasileiros sem lugar. Acabavam de
lhe tirar tudo, e também o sentido. Para ele, o passado-presente-futuro
fora reduzido a um tempo só, que se repetia.
João quis matar o homem na sua frente. Matar não como uma vingança, é preciso compreender. Matar como um sacrifício.
– Se eu fizesse um dano com um grande, um grande lá de dentro, talvez
melhorasse para os outros. Eu sacrificava a minha vida, mas a dos
outros melhorava. Se eu pudesse, eu passaria por dentro do maior chefe
dessa firma, passaria por dentro umas duzentas vezes. E não tenho medo
de dizer. Eu era muito satisfeito de fazer isso, mesmo que na mesma hora
minha vida se acabasse.
João não conseguiu fazer o gesto. O desejo de matar não virou
movimento. João descobriu ali que matar não era um ato possível para
ele. As pernas travaram, a fala travou. João imobilizou-se por inteiro
para não matar aquele que encarnava a obra que acabava de matá-lo.
Sacrificou a si mesmo. Teve de ser carregado pela mulher, Raimunda, e
por uma das filhas, para fora do escritório da Norte Energia.
– Eu perdi… Chegou um ponto de eu perder a fala. Perdi tudo. Ficava
só espumando. E o nervo travou tudo. Travar de não poder andar. Hoje eu
ando um pouco, mas minhas pernas doem, e incham. Minha senhora, não é
fácil, ter tanta raiva que trava o corpo.
Desde então, João é um homem traumatizado.
Não no sentido banal que a
palavra “trauma” ganhou ao se popularizar, mas no sentido do “trauma”
como aquilo que não é possível simbolizar, do buraco que não vira marca.
Sem saber para onde ir nem onde está, João só consegue andar uns poucos
passos e logo precisa sentar-se num banquinho.
Quando sai, perde-se
porque já não reconhece o território. João tornou-se um desterrado de
tudo e também de si. Dias atrás um amigo ligou para Raimunda: “Seu João
está sentado no meio do nada, debaixo do sol. Vai morrer ali”. Raimunda
pediu a uma das sete filhas para resgatá-lo.
E se, em vez de paralisar, João tivesse conseguido falar naquele dia, o que teria dito?
– Muié, eu teria dito muita coisa. A primeira delas é que o país brasileiro não tem justiça.
João faz uma pausa antes de esclarecer:
– Muié, você tem que entender uma coisa. Não era falar, era fazer. Eu
tenho nojo desse pessoal. Que Deus me perdoe, mas eu tenho nojo.
Sem palavra e sem ato, João é uma vítima de catástrofe. E torna-se
vítima duas vezes, porque essa catástrofe não é reconhecida pelo seu
país. Assim, João também torna-se um sem país, na abissal condição de
sentir-se dentro e fora ao mesmo tempo, atingido por uma lei não
escrita, ignorado pela lei que deveria inscrevê-lo na trama da
cidadania.
Para referir-se ao Brasil, a expressão mais frequente de João
é “o país brasileiro”. Nessa escolha de linguagem, o Brasil é um corpo
ao qual ele não pertence. E, assim, João é condenado como pária.
– Cheguei a dizer e digo. Digo pra Dilma, digo pra Deus, pro Satanás e
para qualquer cão que aparecer, que a justiça do país brasileiro é
dinheiro. Se Jesus bater aqui, nesse país, os altos empresários catam
ele e compram ele. E, se ele se abestalhar, é vendido. Entendeu?
João repete a interrogação “entendeu” muitas vezes. Depois de
escutá-lo por algum tempo percebe-se que não é uma bengala de linguagem,
como se poderia supor, mas sua certeza de não ser compreendido.
Ato 2: Raimunda descobre que sua casa virou cinzas
Terça-feira, 1 de setembro de 2015. Raimunda Gomes da Silva, 56 anos,
chamou um conhecido, comprou dez litros de gasolina para a viagem no
rio e fez “um rancho e um frito” para comer no caminho de sua ilha, a
Barriguda, no lugar batizado de Furo do Pau Rolado.
Partiram às 5 horas
da manhã. Um dia antes, na segunda-feira, haviam ligado da Norte
Energia: “Dona Raimunda, quando nós podemos tirar os seus resíduos lá da
ilha?”. “Resíduos” eram as posses de cozinha e de pesca de Raimunda.
Ficou combinado que ela retiraria seus pertences na terça-feira cedo.
Depois de duas horas e meia de rio, Raimunda alcançou a sua ilha.
Sua casa, feita de acapu, madeira resistente, ainda queimava.
“Quando eu vi minha casa queimada, me apagou, branqueou. Que mundo é esse que a gente vive?
– Você sabe que, pra te falar a verdade, amiga, eu desci do barco e
não senti o solo. Eu não senti o chão no pé, porque aquilo me deu um
branco. Ali, na hora, eu não sei o que senti. Porque, quando eu vi de
longe, eu não achei que tinha...
Quando nós chegamos lá, que eu vi minha
casa queimada, eu desci, subi a barreira, sentei, e me apagou,
branqueou, eu não sei. Não sei nem lhe falar o que eu sei, o que eu
senti, não sei, porque eu não senti nada... Eu fiquei anestesiada do que
vi. Porque, como que eles ligam pra eu tirar o que é meu e queimam a
casa toda um dia antes? Fiquei parada, pensando na vida, só, viu. Que
mundo é esse que a gente vive?
A Norte Energia não considerava a casa de Raimunda uma casa. Disseram
a ela que era um tapiri. Raimunda retrucou: “Na sua linguagem ela pode
ser tudo isso aí. Mas, na minha, é minha casa. E eu me sentia bem nela,
viu?”. Quando encontrou a casa em cinzas, Raimunda sentou-se na beira do
rio.
– Eu nunca imaginei que eles iam tocar fogo. Se eu for tocar fogo no
escritório deles, fico presa pro resto da vida. Eles botam fogo na minha
casa e não acontece nada. É a profecia do fim do mundo que o meu pai
falava, a roda grande passando por dentro da pequena.
Raimunda fez uma Certidão de Ocorrência na Polícia Federal de
Altamira.
Relatou que, naquele momento, as demolições e “remoções” dos
ribeirinhos estavam suspensas pelo IBAMA. A medida havia sido tomada
depois que uma inspeção realizada em junho revelara uma série de
violações de direitos humanos no processo de expulsão das famílias,
em relatório assinado pelo Ministério Público Federal,
instituições públicas, organizações não governamentais e acadêmicos do
porte de Manuela Carneiro da Cunha (USP/UChicago), Mauro de Almeida
(Unicamp) e Sônia Magalhães (UFPA). Mas, ainda assim, a casa de Raimunda
queimava.
Ela concluiu:
– Eles têm certeza que podem fazer o que quiserem e nunca vão ser punidos.
E Raimunda, o que acha?
– Eu acho que eles tão certo. Eles têm certeza do que fazem. Talvez
eu não tenha certeza do que digo. Mas eles sabem o que fazem.
A procuradora da República em Altamira, Thais Santi,
comunicou ao IBAMA o descumprimento da ordem de suspensão das
“remoções” e demolições no caso de Raimunda. “A violência dessa atitude
de demolir e incendiar a casa dessa moradora é imensurável, pois
simboliza a soberania do empreendedor, que mesmo diante de tantos
pronunciamentos, das mais diversas instituições, retorna com a mesma
postura.
A empresa descumpre a determinação do IBAMA, com a certeza de
que a consequência não advém. Talvez receba uma multa”, afirma a
procuradora.
“A empresa está blindada pelo Estado e tem a segurança de
que, independentemente do que fizer, obterá a Licença de Operação.”
O Ministério Público Federal já entrou com 23 ações contra Belo
Monte, por descumprimento das medidas obrigatórias de redução e
compensação do impacto da obra sobre o meio ambiente, os povos
tradicionais e a população rural e urbana. Nenhuma delas conseguiu fazer
com que a lei fosse cumprida.
Seis delas tiveram decisões favoráveis,
que em seguida foram derrubadas pelo instrumento autoritário da
Suspensão da Segurança, que autoriza a continuidade da obra em nome do
“interesse nacional”.
A Defensoria Pública da União acaba de entrar com
uma ação no valor de R$ 3,5 bilhões contra Belo Monte, para compensar a
violação de direitos dos atingidos pela barragem.
Nem o IBAMA nem a Norte Energia responderam aos pedidos de entrevista do EL PAÍS até o fechamento da reportagem.
Diante das cinzas da sua ilha, Raimunda procurou seu pé de pinhão-pajé, plantado na frente da casa.
– Esse pinhão era meu amigo principal. Porque eu acreditava assim. Se
eu chegasse de manhã cedo, e ele tivesse com as folhinhas moles, bem
coladinhas, naquele dia eu não saía pro rio. Porque ele tava me dizendo
algo, na linguagem dele. Tava buscando me proteger de alguma coisa. Mas,
se ele tava todo arregaçadinho, eu já tava sabendo que tava tudo bem
comigo.
Raimunda buscou seu “amigo principal”, mas ele já era um não havia.
– Agora eu não tenho mais quem me guie.
Raimunda então canta diante das cinzas.
– É muito difícil você ver o que é seu ser queimado. A única maneira
pra me expressar é cantando. Pra que a minhas plantas saibam que eu
jamais queria que elas fossem queimadas, ou fossem lesionadas. Pra que
elas sintam que eu tou aqui. Como elas não sabem falar, e eu não sei a
linguagem das plantas, eu canto pra elas. Digo pra elas que o mundo não
acaba aqui porque minha casa tá sendo queimada.
O mundo ainda tá de pé.
Enquanto Deus me der a vida, eu vou levar comigo isso, esperança e fé.
Que um dia a Justiça seja verdadeira. Porque agora a Justiça é uma
visagem, uma lenda. Dizem que existe, mas os pobres nunca veem.
O Antes: O pai ensina Raimunda a caminhar sem fazer barulho
Raimunda desfila pelo corredor com suas sandálias havaianas. “Olha,
caminho com qualquer calçado sem fazer nenhum barulho”, ela diz. Eu faço
uma brincadeira que só uma branca que leu muitos contos de fadas é
capaz de fazer: “Andar de princesa, né, dona Raimunda?”. Ela me
chicoteia na hora: “Andar de quem passou a vida na casa dos outros”.
O pai é a raiz de Raimunda. Ela vai repetindo seu ensinamento
enquanto apresenta a dissolução do seu mundo, como se um pudesse
costurar o rasgo do outro. Natalino Gomes era bisneto de escravos com
muita dor no falar, e uma avó índia canela para apimentar o sangue
africano com tropicalidades.
– Meu bisavô passou a corrente para o meu avô, que passou para o meu
pai, e assim sucessivamente. Nunca deixou de ser escravo, o meu pai,
porque só sabia trabalhar pros outros. Não sabia mexer com esse negócio
de dinheiro, nem sabia ler. Meu pai ensinou todos os filhos a não fazer
barulho ao andar. Eu fui criada nessa cultura do sim senhor, não senhor.
Mas, não, nunca me acostumei.
Talvez Raimunda tenha herdado o arrebatamento da mãe, Maria Francisca
Gomes. Ela era mãe de santo do candomblé, desafiando o catolicismo do
pai. A mãe era alegre, era livre, no dizer de Raimunda. Tão livre quanto
a pobreza permite. Um livre de viver em outras realidades, para além
das correntes.
A mãe era também arretada, não deixava homem nenhum
botar-lhe canga, nem mesmo o marido, muito menos o marido. Quebradeira
de coco de babaçu, partia para a lida com uma saia de meninos rodopiando
ao seu redor. Raimunda carrega coco desde os cinco anos, quebra-os com o
facão desde os sete. Guarda na mão as cicatrizes desse ofício que
mutilou tantas crianças, amputando-lhes dedos e futuros.
Mas isso foi
antes de trotar para a casa dos outros, com passinhos de feltro, aos 10
anos de idade. Aprendeu a ler sozinha, juntando uma letra na outra para
ver no que dava. Escola, não conheceu.
Raimunda avisa:
– Eu não levo recado, eu dou.
E então dá:
– A escravidão não acabou, ela só camuflou. A escravidão taí, nua e
crua. Num outro modelo, mas tá. Porque ser escrava é isso. É não ter
direitos. Olha o que aconteceu com a minha pessoa e com milhares de
outros com essa Belo Monte? E cadê a Justiça? Taí, um monte de
injustiças na cara da justiça. Então, sou escrava.
Em seguida, Raimunda acha que o recado ainda está curto e decide dá-lo todo:
– O negro sempre tá na segunda parte da história. Nunca na primeira.
Ou na terceira, quem sabe? O primeiro lugar pro negro é muito difícil. É
quase impossível.
Se as correntes encurtavam os passos silenciosos de Natalino, o pai
de Raimunda, ainda assim ele sonhou. E foi pelo sonho, por essa
esperança fininha que circula no corpo dos brasileiros que ainda hoje
andam o mapa inteiro em busca de uma terra sem dono, que ele carregou a
família para a Amazônia, no encalço de uma terra para quem nada tinha.
Não conseguiu, e é por isso que Raimunda diz que o pai morreu escravo.
Raimunda seguiu sendo babá, empregada doméstica, em casa alheia, também
nas Amazônias do Pará.
Para ela, o pai legou uma série de dizeres, e também algumas
profecias. Uma delas é esta, na qual Raimunda vai fazendo pontes entre o
passado de escravidão e o presente de escravidão, entre o desterro de
um continente ao outro e o desterro dentro do desterro.
– Meu pai dizia que um dia o mundo ia ser movido por um papel. E taí,
o dinheiro.
Não foi isso o que aconteceu? Belo Monte chegou impondo,
derrubando, passando por cima e jogando umas migalhas de papéis que são
os dinheiros que eles dão. Não veem que acabaram com aquela pessoa por
dentro quando lhe tiram a sua casa. Entendeu? Tiram tudo da pessoa e
jogam uns papeizinhos, daí fica assim. Entendeu?
Como João, seu marido, Raimunda também usa esse “entendeu” para
concluir as frases, fazendo da interrogação quase uma faca no pescoço do
interlocutor. Mas a esse “entendeu” ela dá um outro sentido. Raimunda
acredita que ainda pode ser compreendida.
E assim, continua.
– Ninguém vive de dinheiro. Se perde no mato com uma sacola de
dinheiro e vê o que o dinheiro vale: nada! Mas fica no mato sem uma
sacola de dinheiro, perdido, que você consegue sobreviver. Você acha uma
planta, você acha uma fruta, você bebe água. A mata lhe oferece tudo o
que você precisa pra viver, pra sobreviver até alguém lhe encontrar. E
você, com dinheiro, você morre com ele nas costas, não serve de nada.
Raimunda agarra-se ao chão que são as palavras do pai. Ela ali tem
uma raiz que ninguém pode lhe arrancar. E como a catástrofe já estava
prevista por aquele que arrastava as correntes, a sensação de que tudo
está para além de qualquer controle é brutal, mas não a paralisa: “O
papel acabou com o mundo, como meu pai dizia. Ele sabia”. O pai também
dizia: “Siga as trilhas”. Raimunda, como se verá mais adiante, sempre dá
jeito de encontrar uma trilha.
O Antes: abandonado pelo pai, João ganha o trecho e vira barrageiro
João também nasceu no Maranhão, mas esta não é uma terra de
pertencimento para ele. João não migrou, como Raimunda, ele tornou-se um
indo. Seu pai foi acometido por uma febre mais forte do que a malária, e
que dura muito mais. E às vezes também mata. A do ouro. “Bamburrar”,
encontrar tanto ouro que a pobreza será só uma fotografia empoeirada no
passado, é o que faz bater o coração de milhares de homens Brasil afora.
A cada “fofoca”, como se chama a descoberta de um novo veio de ouro,
eles se lançam no território em barco, em ônibus, em pau de arara, em
pés, com pouco mais do que a roupa do corpo e um sonho feroz. É a sua
maneira de recusar-se a uma só sina, a da miséria, ou a de viver uma
vida de aventuras e de consumição, uma vida, como um dia um garimpeiro
me disse, de personagem de livro. Ao me dizer, esqueceu-se de que não
sabia ler.
Como costuma acontecer no Brasil, em que os pobres são criminalizados
toda vez que recusam seu destino e levantam a cabeça caçando horizonte,
os garimpeiros são tratados como bandidos, enquanto as grandes
mineradoras, as multinacionais, as que arrasam enormes porções de
floresta e concentram o lucro, estas são purificadas pela palavra
“negócio” ou “empreendimento” ou ainda “desenvolvimento”.
Essa
metamorfose também acontece neste momento, quando Belo Sun, a mineradora
canadense, tenta se instalar bem perto de Belo Monte para explorar
imensa jazida de ouro, esmagando os garimpeiros artesanais que por lá
vivem há décadas. Se conseguir, terminará de arrasar com o Xingu e com
os povos tradicionais, que pertencem à floresta e a preservam para o
Brasil e o mundo.
O pai de João era um destes homens febris, que abandonou a família e
também esse filho pequeno para consumir-se em seu eldorado íntimo. Tinha
terra no chão nordestino e até um pouco de gado, mas não era homem
plantado. Embrenhou-se nos garimpos de Itaituba, no Pará, lá onde hoje
cresce o cerco do governo para mais duas grandes hidrelétricas: São Luiz
do Tapajós e Jatobá.
Como a maioria dos garimpeiros, encontrou uma
mulher nova, e possivelmente várias outras. As prostitutas chegam antes
dos garimpeiros nas fofocas, ou pelo menos junto com eles. Lá são
chamadas de “mulher livre”, e os arranjos são variados. Podem ser mulher
de um homem só em troca de uma quantidade previamente acertada de
gramas de ouro, e cozinhar e lavar e namorar na “corrutela”, a vila que
se forma no garimpo, como se esposa fossem. E às vezes se tornam.
Quando
o pai veio buscar o filho para levá-lo com ele ao garimpo, era tarde
para um encontro que nunca houve. O pai tentou duas vezes, numa delas
apareceu até de avião. João desacreditou das asas do pai e recusou-se a
seguir com ele. Preferiu fazer-se homem quando ainda era menino.
Primeiro João trabalhou na roça de parentes, com oito anos de idade,
um fiapo de gente. Aos 12, desgarrou-se. Lançou-se no “trecho”, uma das
palavras mais enigmáticas na linguagem variada dos Brasis, que vai
ganhando significados diferentes país afora. O trecho é o mundo, é a
estrada, é a vida em movimento, é um fora prenhe de possibilidades.
João
viveu no trecho, trabalhando duro, carregando mais pedras do que podia,
inventando músculos quando ainda não os tinha, porque a vida de menino
pobre e sem letras é sustentada na força dos braços. Condenado pelo pai,
que dizia que “escola de menino é cabo de enxada e cabo de facão”.
João não se filiou ao garimpo, esta era a escolha do pai, do qual ele
não se considerava mais filho. Preferiu fazer sua própria filiação.
Entre as sinas dos brasileiros pobres, ele escolheu a de se tornar
barrageiro, um operário de barragem que vai seguindo a trilha dos
grandes projetos do governo. E, quando não há nenhuma grande usina para
construir, alista-se em contratos fora do país, negócios assumidos pelas
gigantes do setor de construção.
“Trabalhei na Mendes Júnior, trabalhei
na Queiroz Galvão, trabalhei na Camargo Corrêa, trabalhei na Odebrecht,
trabalhei na Andrade Gutierrez, trabalhei na Constran, trabalhei na
Construpar. Trabalhei em outras firminhas sem vergonha. Eu sei que foram
umas 12 firmas que eu trabalhei.”
João foi peão num jogo que tem como tabuleiro a Amazônia e o Brasil.
Nos anos 50, no governo democrático de Juscelino Kubitschek, as
empreiteiras construíram Brasília e nunca mais saíram do centro do
poder. Cresceram e multiplicaram seus lucros logo em seguida, nos
grandes projetos da ditadura civil-militar (1964-1985), com ênfase nas
obras megalômanas na Amazônia, como a Transamazônica, uma entre tantas
que aniquilaram floresta e vidas.
Seguir o dinheiro das grandes
empreiteiras é contar pelo menos 60 anos da história do Brasil, um
período que vai da segunda metade do século 20 até esses primeiros 15
anos do século 21. Os empregadores de João hoje amargam a cadeia,
acusados pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal. A operação
investiga a corrupção em contratos da Petrobras e, mais recentemente,
também do setor elétrico.
Delatores já revelaram a prática de propina em Belo Monte, paga ao PMDB e ao PT. A investigação está em curso.
No começo de sua vida de barrageiro, João foi trabalhador braçal.
Depois, conquistou uma profissão e tornou-se operador de máquinas. Sua
primeira grande hidrelétrica foi Itaipu, no Paraná, a obra binacional
que afundou uma das maravilhas do mundo, as Sete Quedas, uma obscenidade
sem reparação. Mas foi só em outra hidrelétrica, Tucuruí, que João
compreendeu seu papel descartável no jogo comandado por reis e depois
por uma rainha.
No momento dessa descoberta, João começava o capítulo
definitivo da sua vida, ao lado de Raimunda.
O casamento: João e Raimunda se encontram num “pancadão”
Raimunda tinha 16 anos quando conheceu João num baile. “Era um pancadão”, ela informa. “Eu olhei ele, ele
olhonimim.”
Foi assim, entre o azulado do olho de João e o negro de Raimunda, que
se quiseram de imediato. Raimunda foi logo avisando que não era “da
tradição de gente que se junta, se quiser me dê aliança e sobrenome e
vamos fazer história”. Fizeram.
Tempos depois se oficializaram num
casamento coletivo. Raimunda enfeitou-se com um vestido lilás, segundo
ela “a cor da mulher”. Em seguida, inauguraram uma fileira de filhas, no
total de sete mulheres, todas com nome iniciado pela letra “L”. E
apenas um filho homem, que morreu de meningite com um ano e cinco meses,
batizado como Leodeí:
– Eu trabalhei na casa de uma senhora, e ela tinha um filho que era
militar. E ele morreu numa cidade chamada Indonésia. Então eu guardei
aquele nome na cabeça, Indonésia... E o sonho da mãe era conhecer essa
cidade porque o filho morreu, ficou pra lá. Anos depois, trouxeram os
restos mortais, mas não era mais o filho. Eu fiquei pensando comigo...
Indonésia... Se a Indonésia é uma cidade que foi guerreada numa guerra
inútil, e ela hoje tem paz, quero que a minha filha tenha esse nome. Aí
coloquei Lindionésia. E depois vieram a Lindionisia, a Livia, a Liviane,
a Leidiane, a Luciene e a Liliane.
Lindionésia é uma síntese e um desejo: depois de João e Raimunda
atravessarem uma vida de guerra, a paz inscrita no corpo de letras da
filha. A saga, porém, ainda não tem conclusão na concretude dos dias. A
paz, na vida de Raimunda e de João, ainda não deixou de ser palavra para
virar a coisa que representa. O “L” tem outro porquê:
– É de liberdade. Liberdade de expressão, né? Queria que minhas
filhas fossem livres, que tivessem livre expressão de estudar, de
brincar, de ser o que quisessem na vida.
Raimunda persegue a paz desde que se entende como Raimunda. Mas, sobre a paz, o pai não deu certeza.
– Meu pai colocou um ‘talvez’, talvez o mundo um dia tenha paz. Ele
não deu como certo, e morreu sem encontrar a paz. E eu continuo
procurando a paz.
Nesta busca, um dia João apareceu anunciando:
– Tão contratando em Tucuruí.
Foi ali que Raimunda descobriu, como ela diz, “que tem sangue doce
pra barragem”. E a condição de peão revelou-se para João em toda a sua
magnitude. Se antes ele andava de barragem em barragem, de obra em obra,
agora ele tinha uma família. João não podia mais percorrer o trecho,
ele precisava enraizar-se.
Enquanto uma das barragens mais devastadoras
da ditadura era construída também pelas suas mãos, no rio Tocantins, no
Pará, João e Raimunda fizeram pouso e fizeram casa. Ao final,
descobriram o que acontecia quando o rio é barrado, a floresta é
inundada e um pedaço da Amazônia se finda. É Raimunda quem conta sobre o
momento em que o círculo se fechou para João, e ele teve a revelação:
– Meu João trabalhou em Tucuruí a partir de 1976. Em 1983, ele se deu
conta que tava feito pombo. Porque o pombo, ele faz o ninho, e no dia
em que ele bota o ovo, ele começa a desmantelar o ninho. No dia em que
termina de tirar o derradeiro fagulho do ninho, o filho já foi embora. E
ele tava fazendo isso, mesmo. Porque ele trabalhou, comprou uma terra e
uma casa com o dinheiro da barragem que construía, e essa mesma
barragem alagou tudo nosso.
A Hidrelétrica de Tucuruí era um projeto da ditadura. E não se negociava na ditadura:
– E lá a gente era, eu não vou dizer burra, mas desinformada. O que
aconteceu? Meu lote valia dois barão. Naquele tempo, era um dinheiro
muito alto. Então, a Eletronorte falou o seguinte: “Eu não posso lhe
depositar esse dinheiro sem o título da terra”. Nós tinha terra
legalizada. E nunca mais nós vimos esse título.
E não podia provar,
porque era a palavra deles contra a nossa. Então, além de perder tudo,
ficamos por mentirosos, de frente pra uma Justiça que tava lá. Por isso
que eu me revolto com a Justiça, por conta disso. Nunca tivemos o que
fazer. Não tinha como pagar um advogado, não tinha como pagar nada.
Deram outra terra pra gente, que não tinha quem aguentasse os mosquitos
nem as pragas.
A água subiu por causa da barragem, e apodreceu toda a
vegetação. Se formou um mar de insetos. Não tinha como sobreviver ali. O
que que nós fizemos? Pegamos os filhos pequenos e fomos pra Marabá (na
beira da Transamazônica) no finalzinho de 1985. Não deu certo. Em 1988
fomos pra Altamira.
Em Altamira, João e Raimunda descobriram que havia um lugar para pobre ficar rico: a floresta. Mas isso foi depois.
Antes, João passou por ainda mais duas provações. Logo depois de
Tucuruí, ele partiu para o Iraque, contratado pela construtora Mendes
Júnior Internacional. João, que se sentia vítima de uma guerra não
declarada, foi despachado para o outro lado do mundo, para construir
“uma pista para tanques de guerra”.
Sofreu um ano longe da família. Quis
voltar lá pelo meio, mas tinha assinado contrato. De lá ditou a
Francenildo, o amigo que sabia escrever, uma carta para Raimunda.
Terminou dizendo: “Só o amor constrói”. A carta está plastificada, como
uma prova de que o amor deles constrói pontes entre exílios.
Depois da expulsão pela Hidrelétrica de Tucuruí, Raimunda tornou-se
uma documentadora. Guarda tudo, registra tudo, agarra-se aos papéis.
João também mudou. Da experiência de construir em países do Oriente
Médio, ele faz uma analogia com Belo Monte:
– Conheci vários países, mas só vi o que acontece aqui, no país
brasileiro, em lugar com terrorismo. Aqui, a empresa escolhe o dia de
matar hoje e o dia de matar amanhã. Entendeu? Justiça não existe.
Em outra ocasião, João migrou pelo “país brasileiro” em busca de
trabalho. Explica com essa lembrança por que não é capaz de pedir
esmola, embora não tenha mais como ganhar o pão, desde que foi expulso
da ilha:
“Tenho cara de morrer de fome, mas não tenho coragem de pedir. E com que força eu vou recomeçar tudo agora, velho e doente?”
– Eu nunca pedi nada, me acho com vergonha. Eu não tenho cara pra
isso. Eu tenho cara de morrer de fome, mas não tenho coragem de pedir.
Entendeu? Numa ocasião eu fui pra uma firma em Imperatriz (Maranhão), lá
perto de Marabá (Pará). Eu tava com 50 contos. E já tava com três dias
sem comer.
Não comia porque aquele dinheiro era pro transporte. De noite
eu tô num banco lá na rodoviária, um cara diz pra outro: “Rapaz, lá na
cidade de Balsas (Maranhão) tão fichando gente por 3 e por 4”. Eu saí e
comprei a passagem com os cinquenta contos. Sobrou cinco. Cheguei lá,
eram cinco horas da manhã. Já passei na frente do escritório e vi logo a
placa. “Não ficho ninguém. E não insista”.
Mas eu, pra tirar a dúvida,
tomei um café lá na rodoviária, de cinco contos sobrou só um, e fui
caçar emprego. Quando eu passava nos restaurantes, naqueles restaurantes
que tavam comendo, eu pedia um copo de água e bebia. Quando foi meio
dia, eu voltei lá e falei pro cara: “Rapaz, não tem emprego e eu não
tenho dinheiro pra nada. Acabou a minha condição”. Ele disse: “Olha,
deixa a boroca (bolsa) aí. Você trabalha de estivador?”.
Eu respondi:
“Trabalho de qualquer coisa”. Arrumou uma carreira com oitocentos sacos
de adubo, pra descarregar na fazenda perto. Aí, o que acontece? Antes do
meio da carreta, eu já não dei mais conta. Tinha uma garrafa de água
assim, e eu bebi a água e fui me esmorecendo, me esmorecendo, até que eu
arriei mesmo.
Contei que fazia quatro dias que não comia. Quando
terminaram de botar o adubo, a mesa tava lá, pronta pro pessoal jantar.
Queria que a senhora visse, de tudo. E botei duas colheres de arroz
assim, botei um pedacinho de carne no prato. Mexi assim, comi a metade.
Aí saí pra beber um copo de água. E vomitei tudinho.
Na farmácia tomei
uma injeção. Aquela injeção pra fortalecer. Fiquei lá um mês e pouco
trabalhando. Mas nunca perdi a resistência e nem a esperança. Mas, muié,
o que faz eu perder tudo é na situação que eu tou. Com que força eu vou
trabalhar, agora que tou velho e doente? Eu não tenho mais resistência
pra começar tudo de novo. E não sei pedir.
Quando reencontrou o rio, agora não mais para violentá-lo, mas para colher os peixes, João encontrou-se.
A virada: João e Raimunda se descobrem ricos
A virada do milênio marcou a descoberta da floresta. Não como um
contra ou um fora, mas como parte. Depois de peregrinar pelo que era
chamado de progresso e só encontrar tribulação, João e Raimunda foram
acolhidos por uma das centenas de ilhas do Xingu.
Aprenderam a extrair o
alimento da floresta, a plantar sem violar a terra, a pescar e a
navegar no rio. Adotaram a vida dos ribeirinhos pescadores e
agroextrativistas, que há séculos vivem em dupla casa, uma na rua, uma
na ilha ou na beira do rio. “Rua” é como o povo que mora na floresta
chama a cidade, o que já é muito revelador de sua visão de mundo.
A casa
na rua é para a venda dos produtos na feira, para resolver as
oficialidades da burocracia, que sempre são muitas, para buscar
tratamento para doenças mais enroscadas, para o estudo dos filhos; a
casa na ilha ou na beira do rio é onde se ganha a vida e se vive livre.
Pela primeira vez, João e Raimunda sentiram que haviam chegado. Tinham
um lugar, nada lhes faltava. A fome era um passado.
Trataram de enraizar-se fundo. A vida era assim:
– Tinha nossa casa na ilha, de onde a gente trazia o peixe, o feijão,
o milho, o abacaxi, a banana, o murici, a cebolinha, o cheiro verde, a
chicória. Tudo isso era fonte de renda. Tudo isso eu fazia dinheiro. Do
rio, eu tirava a cédula maior. Vinha pra cidade com as coisas que
plantava, e com o meu peixe, e já cheguei a fazer mil e duzentos reais
na semana, em dinheiro livre. Eu mesma ficava mais na rua, porque
comecei a me envolver com movimento social.
Meu marido morava lá na
ilha. Quando ele vinha com o peixe, no sábado, eu vendia o peixe na
feira e voltava com ele. E vinha de lá na quarta-feira no barco de
linha. Ficava aqui esperando ele de novo com o peixe. A nossa rotina era
essa. Nas férias, final de ano, eu ficava lá, com ele. Então, a nossa
vida era um vaivém. Quando você vive no rio, você entende o rio que nem
ele lhe entende. Você respeita o limite dele, que ele respeita o seu. É
uma parceria entre você e as águas. É assim, ó: o remo é a minha caneta e
o rio é a minha lousa.
Primeiro João e Raimunda compraram uma palafita nos baixões de
Altamira, depois construíram uma casa de alvenaria. Raimunda faz questão
de esclarecer que mesmo na palafita ela deu jeito de ter suíte, porque
gosta muito de suíte.
– O sonho de uma casa na terra firme era muito longo. Ter um casa no
chão. O rio nos deu. Consegui comprar minha geladeira, consegui comprar
minha televisão, meu fogão a gás, meu botijão. Consegui comprar a minha
cama, o meu colchão do jeito que eu queria. Eu fui na loja, comprei,
porque eu sabia que o rio ia me dar retorno, eu ia poder pagar a
prestação. O rio era meu banco, era meu cartão de crédito, era meu
supermercado, era a minha farmácia, a minha loja. Tudo eu tirei do rio.
Tudo o que eu tenho hoje veio de dentro do Xingu. O que o rio não dava, a
terra dava.
Já não eram mais migrantes, João e Raimunda haviam finalmente
chegado. Raimunda então entranhou-se nas lutas de Altamira e da
Amazônia. A das mulheres, a da terra, a do meio ambiente. Filiou-se ao
Partido dos Trabalhadores (PT), tornou-se militante de movimentos
sociais. Ela agora pertencia. Seu verbo não era mais um ir, mas um
ficar. Quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu o poder, pela primeira
vez, em 2003, os movimentos sociais de Altamira e da região acreditaram
que o projeto da hidrelétrica de Belo Monte estaria sepultado de vez.
Desde os anos 70, na ditadura civil-militar, a usina no Xingu era uma
ameaça que ressurgia a cada governo, mesmo na redemocratização do país.
No passado, a Eletronorte a chamou de Kararaô, palavra que é um grito
de guerra na língua dos Kaiapó. Em 1989, produziu-se a cena histórica: a
índia Tuíra encostou um facão no pescoço do diretor da Eletronorte,
José Antônio Muniz Lopes. Tuíra demonstrava no gesto a resistência à
barragem de um rio mítico, que era vida, cultura, espiritualidade e
sustento para os povos tradicionais.
A fotografia correu mundo. A
Eletronorte recuou e trocou o nome da usina para Belo Monte. Nenhum
governo conseguiu tirar Belo Monte do papel. E então Lula assumiu o
poder com o voto da maioria das lideranças e dos militantes dos
movimentos sociais da Amazônia. Um trabalhador, um sofredor, um homem do
povo que conhecia a dor do povo. A partir daquele momento, Raimunda
achou que a paz tinha chegado. O talvez do pai virava certeza.
É nesse momento, e não em qualquer um, que Sofia entra na vida de
Raimunda. E torna-se sua mais íntima companheira.
“É uma neguinha,
cabelinho ruim, amarradinho”, descreve Raimunda. Sofia é uma boneca, a
primeira boneca da vida de Raimunda. Ela estava num encontro de
mulheres, em Belém do Pará, quando viu um homem vendendo bonecas na rua.
Sofia custou cinco reais. Raimunda achou caro. Mas já tinha se
encantado.
Deu a ela esse nome por conta de uma história contada por uma
freira de Manaus, sobre uma alemã chamada Sofia, que havia sido uma
criança pobre e, ao crescer, criou uma instituição para cuidar de
crianças pobres. Sofia agora cuida de Raimunda. E já acompanhou-a na
Marcha das Margaridas, das trabalhadoras rurais, extrativistas,
indígenas e quilombolas, na Rio+20, por todo canto.
Escondida, porque
João garante que “vão bulir” com Raimunda se descobrirem que ela carrega
uma boneca na bolsa, ela, uma avó de 15 netos. “A Sofia significa para
mim uma paz profunda, que não tem resposta”, poetiza Raimunda.
É no momento em que encontra um lugar que Raimunda pode ter até uma boneca.
– Eu não fui criança, porque trabalhei muito. Também não tive
juventude. Por isso não dou minha velhice. Não abro espaço pra ninguém.
Minhas filhas dizem que tou ficando perturbada. Nada, eu tou é vivendo.
Demorou alguns anos para que Raimunda e tantos outros compreendessem que haviam sido traídos.
Lula era um sindicalista do ABC paulista,
sua visão de mundo era a da indústria, do concreto, da cidade grande.
Progresso, para um operário, era ter carro, TV de tela plana, churrasco
no fim de semana. Progresso, para um país, era transformar a Amazônia em
soja e pasto pra boi, exploração de minérios por grandes mineradoras
para exportação de
commodities (matérias-primas).
Lula não
tinha o menor conhecimento sobre esse outro viver, o da floresta.
Mudança climática não fazia parte do seu universo. Seu projeto para a
Amazônia era o mesmo da ditadura, que considerava a região uma questão
de segurança nacional, um deserto de gente e um corpo para espoliação.
A
única voz no governo federal e no PT com alguma força para se contrapor
a essa visão estacionada no século 20 era Marina Silva, ambientalista
que se criou nos seringais do Acre e teve como um dos mentores o líder
Chico Mendes, assassinado em 1988 por sua luta pela floresta. Marina só
suportou a pressão até 2008, quando deixou o Ministério do Meio Ambiente
e logo depois o PT.
Raimunda e as principais lideranças do Xingu perceberam tarde demais
que somente Lula poderia tirar Belo Monte do papel. Ao trair os
compromissos de campanha, por um lado o PT no poder desmobilizou os
movimentos sociais, por outro os cooptou. A resistência, que por décadas
foi coesa, rachou.
O setor elétrico atravessou governos como um feudo
do coronel do Maranhão, o oligarca José Sarney (PMDB). Um exemplo: José
Antônio Muniz Lopes, o homem que teve o facão de Tuíra no pescoço, em
1989, é hoje, em 2015, o presidente do Conselho de Administração da
Eletronorte e o diretor de transmissão da Eletrobras, já tendo ocupado
diversos outros cargos de comando, nas décadas de 90 e 2000. “A
Eletronorte é a mesma antes e agora”, resume Raimunda. “Só mudou a
coleira, o cachorro é o mesmo.” Mas só o PT e Lula teriam força política
para minar a resistência e fazer de Belo Monte uma realidade de
toneladas de concreto no meio do Xingu.
Essa é a arquitetura que se mostrou capaz de consumar uma obra
gigantesca e ultrapassada, na aliança entre os grupos que atuam desde o
passado e o grupo do presente, uma alquimia que talvez a Operação Lava
Jato possa começar a desvendar. São também esses interesses que
atravessam governos que podem explicar por que Belo Monte vai se
tornando fato consumado, mesmo violando a Constituição, com um governo
cada vez mais fragilizado e parte dos donos das empreiteiras que a
constroem presa por corrupção. Belo Monte é o nó que, quando totalmente
desfeito, revelará o Brasil.
Para Raimunda, restou uma conclusão. O PT, para ela, não significava
um partido a mais no poder, mas um projeto político que se confundia com
sua busca de um lugar no país – e com a crença de que esse lugar
existia. O simbolismo para ela era uma literalidade. Ao sentir-se
traída, desacreditou:
– Se o Lula visse esse povo que o elegeu, jamais faria Belo Monte. É
difícil pra mim falar isso, mas eu votei no Lula e votei na Dilma. E
eles nos traíram. Porque o Lula disse claramente que Belo Monte não ia
sair. E depois a Dilma falou que Belo Monte era preciso, que não tinha
como voltar atrás. Eles são traidores da humanidade. Ah, meu pai do céu!
Se eu visse eles, eu não diria.
Eu avançaria na cara deles tudo, pra
tomar vergonha. Que presidente é esse que mente pra nação? Eu não voto é
mais nunca. Se eu não precisasse do título de eleitor, eu rasgava. Como
eu preciso dele, não posso rasgar. Meu plano é não botar mais meu voto
na urna. Eu vou lá e justifico. Eu não sei se é certo, mas esse é o meu
plano.
Belo Monte é onde o PT traiu não a classe média, mas sua razão de
ser: os mais frágeis e os mais desprotegidos, os historicamente
arrancados da sua terra, como os indígenas, os historicamente exilados
dentro do próprio país, como Raimunda e João. É nesse ponto do mapa, a
última fronteira para quem palmilhou o Brasil inteiro em busca de paz,
que o discurso petista em defesa dos pobres gira em falso há muito mais
tempo. Mas como a Amazônia é um longe para o centro-sul, essas vozes
foram ignoradas.
Raimunda quer falar:
– Eu vou dizer mais uma coisa: o rio tá doente, os peixes tão
noiados, tão tudo grogues por causa do pouco oxigênio. Ninguém tem noção
do tamanho desse monstro aí no Xingu. Ninguém sabe o que vai acontecer
quando começar a funcionar. Ninguém.
Interrupção: “Belo Monstro” barra a vida de Raimunda e de João
Depois de travar as pernas e a fala no escritório da Norte Energia,
João não voltou mais a ser o mesmo homem que varou Brasis e fomes. Em
maio de 2015, Raimunda o levou para a capital, Belém do Pará, em busca
de tratamento. Só voltariam de lá no fim de agosto. Nesse período, as
filhas trataram de fazer a mudança da casa na cidade, porque sabiam que a
mãe não permitiria se estivesse em Altamira, disposta a resistir até
que o valor fosse justo.
Quando Raimunda e João voltaram, já não tinham
mais casa “na rua”. Em troca, tinham recebido 84 mil reais, valor
insuficiente para comprar uma casa do mesmo tamanho e qualidade, e em
localização similar. Raimunda reciclou 3.500 tijolos das casas demolidas
dos vizinhos para começar a sua num loteamento fora da cidade.
A canoa
São Sebastião, nome dado em homenagem ao santo injustiçado, flechado
tantas e tantas vezes, tornou-se um monumento à insanidade, objeto
deslocado nos fundos da casa, em terra firme e a quilômetros do rio.
Raimunda planeja fazer dela um banco para visitas quando a casa ficar
pronta.
Dos três cachorros que viviam com João e Raimunda na ilha, dois não
suportaram viver amarrados na cidade e morreram. Barão do Triunfo, um
cachorro grande, mestiço de Fila, que se instalava na proa do barco para
cuidar da casa na ilha, quando os donos estavam fora, morreu primeiro.
“Dei esse nome porque ele era um lorde”, explica Raimunda. Xena, uma
pitbull que ganhou o nome por ser “tão autoritária quanto a princesa”,
personagem de filmes e de animação, foi a segunda a amanhecer morta. “Eu
não podia deixar eles soltos na rua, porque na cidade eles são
violentos.
Mas não sabia que iam morrer. Se soubesse, tinha deixado eles
morrerem soltos, pra morrer livres. Morreram na coleira”, lamenta uma
Raimunda culpada. “Eu mesma não sei se um dia vou me libertar dessa
coleira que a Norte Energia me botou. Vivo errando, me perdendo, indo
pra uma casa que não existe mais. Deus não deu asas pra cobra porque ela
já tinha veneno. Essa Norte Energia tem os dois, asas e veneno.” O
único que restou foi o vira-lata Negão, “um cachorro que não se emociona
assim tão fácil”. Negão, sem nome de princesa nem de barão, é um
sobrevivente. Como Raimunda.
Ela documentou em fotos e vídeos o “antes, o durante e o depois de
Belo Monte”. Assim, pode provar tudo o que diz. No “durante”, duas de
suas filhas chegaram a trabalhar na construção da hidrelétrica, uma na
cozinha, outra na mecânica. Raimunda peleou com elas. “Isso é que nem
dinheiro de jogo, vocês não podem fazer isso comigo”, esbravejou.
“Demorou, mas libertei minhas filhas.” De máquina fotográfica cor de
rosa em punho, registrou até a Força Nacional protegendo Belo Monte do
povo: “Veja bem, eles acham que sou eu a ameaça!”.
A documentação de Raimunda é um percurso de memória, ao mesmo tempo
brutal e poético. Ela vai narrando a sua travessia enquanto mostra as
imagens, ela vai narrando a sua travessia.
A vida antes de Belo Monte:
– Documentei toda a minha história esperando o futuro, e o futuro
taí. Antes de Belo Monte, a minha história era essa. Ó, a minha casa. O
meu plantio, o meu pomarzinho, tudo limpo. Tudo varridinho, direitinho.
Aqui o meu velho com a roça dele, limpando o chão. Aqui é
capim-de-cheiro pra remédio, pra dor de barriga, essas coisa assim. Aqui
é o murici carregado, é uma outra fase. Olhe esse pé de murici!
Eles
queimaram. Tá tudo queimado. Aqui, amigos me visitando. Macaxeira, muito
bonito de se ver. Olhe. O meu cachorro, o Negão, aqui. Então, isso
aqui, pra eles, não é nada. Pra mim era tudo. O meu amigo é esse aqui
que eu tou falando, que era o pé de pinhão. Chegava em casa era o
primeiro que eu via. Meu pinhão pajé. Olhe a beira do rio. Aqui, ó. O
meu outro cachorro, que morreu só de tristeza porque não era acostumado
com coleira, e eu amarrei. Aqui a gente vai parar.
A vida durante Belo Monte:
– Agora vou lhe mostrar durante Belo Monte. Durante o processo de
vaivém, vaivém, vaivém. Aqui é o meu barco. Aqui, ó. Esse aqui é o meu
fogão a gás, à lenha... A sobrevivência do rio é muito gostosa. Pra quem
sabe o que é isso. Pra quem não sabe, não dá valor. Meu marido
roçando... Óia. Plantando macaxeira, que ia chegar a chuva, então já
tava se prevenindo.
O meu cachorro, que já não tenho mais...O outro
cachorro, também morreu. O meu velho. São 38 anos de convivência, sempre
juntos. Eu corto, e ele planta. Hoje ele tá sentado numa cadeira,
esperando sair minha casa. Aqui o final de semana em que eu cerquei, por
causa das galinhas, pra fazer um plantio de cebolinha, mas não deu
certo, porque as galinhas são mais rápidas do que eu. Esse aqui é meu
velho branco de olho azul, um gato. Que hoje tá... Eu digo pra ele que
ele não tá inútil, porque eu ainda vejo ele na minha frente. Então, ele
ainda é meu gato. E tem um outro ângulo da ilha, aqui, que é onde ela tá
produtiva.
Deixa eu lhe mostrar aqui...As plantas que foram queimadas.
As que eram mais próximas da casa eles queimaram, acabaram com tudo.
Aqui é no inverno. Ó, a gente planta e colhe durante a cheia, por conta
que a cheia, ela vem, mas ela tem a data certa. Olhe o meu canteiro, as
cebolinhas...Cheiro verde... Eu tirando o tomate, o gengibre, que é pra
dor de cabeça, dor de barriga e bucho inchado. Remédio caseiro. E aqui
eu, dentro d’água, que eu adoro água, também.
Aqui, eu com medo de uma
cobra, que ela tinha ido na minha frente, eu fui atrás dela. Mas ela foi
mais rápida que eu, foi embora. A gente dorme na rede durante o
inverno. O meu neto, que ia pra ficar umas férias comigo. Meu pé de
capim-santo, ele também não morre na água, ó, fica um tempo submerso. Só
se cobrir essas folhinhas aqui que ele morre. Mas, se ele respirar, ele
não morre. Minha casa, que pra Norte Energia não era uma casa.
Bananeira... ó, os cacho de banana. Tudo carregado. A macaxeira toda de
pé. Olha lá o milho.
Aqui, ó. O milho todo carregado. Aqui, eu com medo
da cobra de novo. Ela com medo de mim, eu com medo dela. Então, isso
aqui... é o fim de uma história da vida de uma ilha, que pra mim é muito
importante. Porque eu não vivia na ilha. Eu vivia dela, e ela vivia de
mim. Porque a gente era como amiga. Abacaxi. Mais milho verde. Ó, o
milho lá atrás. Olha esse cacho de banana, o tamanho.
Deixa eu pegar pra
você ver. Essa aqui, olha, além de ser uma fruta pra alimentação, ela é
um antídoto contra inseto. Tem o pescador que vive na ilha, e eu vivia
da ilha. Cultivava ela, e ela me cultivava. A gente era amiga. Entendeu?
Deixa eu lhe mostrar uma foto aqui em que o rio se despede, vai embora.
A vida depois de Belo Monte:
– Aqui sou eu, pensando... Quando será esse dia, que eu não quero
sair? O meu genro dizendo que já era, não tem mais jeito pra fazer nada,
é isso mesmo. E eu falando pra ele que eu ainda tinha esperança. Aqui
eu dizendo pras minhas plantas que eu ia, mas eu voltava. Mas era só
história, que eu não voltei. Meu véio pensando se voltava lá um dia, ou
não: “Será que eu ainda volto aqui?”. Eu falei: “Não sei, Deus que
sabe”. Óia eu olhando pro horizonte, pedindo a Deus que deixasse a gente
ficar na ilha. Meu marido chorando. Isso aqui tá tudo queimado.
A Norte
Energia queimou. Olhe aí. Toda aquela beleza que eu lhe mostrei, aquele
murici, aquela coisa mais linda...Tá aqui, sapecado. Eu fui lá,
registrei de novo. Registrei o antes, o durante e o depois de Belo
Monte. Aqui, ó. Não sobrou nada. Diz que um crime sempre deixa uma
prova. Eles deixaram.
Aqui, ó. A impunidade só existe porque a Justiça
não se manifesta. Enquanto a Justiça tiver com aquela venda na cara, que
é aquela estátua que fizeram lá em Brasília, é assim, ó. A Justiça só
vê quem ela quer. Quem não quer, ela não vê.
Raimunda quer escrever um livro. Já tem o título: “História de um
pescador: antes, durante e depois de Belo Monte”. Começa a acreditar que
o único lugar seu será a sua cova. Já encomendou a mortalha: “de cetim,
em branco da paz”.
Terceiro ato: o impasse
Raimunda desenhou a planta da casa nova com o cuidado de que ela seja
bem diferente daquela que foi destruída. “Eu não quero mais porta que
entre pela frente, quero uma porta que entre de lado, porque quero que
meu futuro seja diferente. Então, comecei pela infraestrutura da casa”,
explica.
“Quando eu entrar nessa casa hoje, eu não quero chegar pensando
que tou na outra.” Raimunda marcou toda a história na casa nova, ainda
em construção: as paredes são verdes, “porque é a esperança no futuro”,
os rodapés são marrons, para mostrar “a barreira da barragem”, as grades
das janelas são pretas, “em sinal de luto”. “Tudo na minha vida tem uma
história”, ela reforça. E tem.
Raimunda é uma criadora de sentidos, e por isso consegue seguir a
vida. João, não. No dia em que paralisou, ele perdeu a capacidade de
criar sentidos. Por dentro, ainda está travado. João viu demais, e o
excesso de lucidez o cegou. Agora, não consegue voltar. “Perdi a ponta
da meada. Estou dentro dessa casa hoje, mas de fato, toda hora, eu não
tenho casa. Eu não tenho casa. Entendeu?
Eu tou fora. Me perco. Não sei
onde tou. Perdi o rumo de tudo”, inflama-se, os olhos de rio, mas um rio
de amazônica tempestade. “Estou pior que a Dilma, porque ela perdeu o
rumo do país, mas eu perdi o rumo de casa.”
É este hoje o impasse entre João e Raimunda.
Raimunda diz:
– Sou uma pindova, uma palmeira muito perseguida lá no Maranhão.
Quanto mais casca Belo Monte arranca de mim, mais eu me renovo. Fiquei
queimada por dentro, como a minha ilha, mas me renovo. A pindova é
assim, ninguém mata ela com fogo nem arrancando nem com nada. Ela volta.
Como eu. Já venho de uma naturalidade de pessoas muito sofridas, o
sofrimento faz parte da nossa história. Não vou morrer porque peguei
porrada. De jeito nenhum, sou descendente de escravos e de uma etnia
indígena quase extinta. Então, venho de um povo sofrido lá da base. Sou
pindova e quero viver.
João responde, e é como se os dois estivessem num diálogo de repentistas:
“Eu só vejo escuridão. E o buraco...”
– Mas eu não sou assim. Quando eu perdi a ilha, eu perdi a minha
vida. Eu perdi a linha. Parou ali, entendeu? Daqui pra frente eu só vejo
escuridão na minha vista. Eu não vejo mais aquele mundo limpo. Eu só
vejo escuridão. Fico aqui, olhando pro mundo, procurando a mim mesmo.
Quem sabe me responder essa procura? Ninguém. O buraco na minha vida, o
buraco na minha vida...
O impasse atingiu seu ápice em 4 de setembro de 2015. Nessa data, João “enlouqueceu” dentro de casa. Raimunda conta:
- O João chamou a família pra ir lá na ilha queimada. Pra servir de
mártir. Ele quer se matar lá, como protesto. Eu disse que não ia nem
deixava ele ir. Se ele se matar lá na ilha, avisei que deixo ele lá, pra
ser comido pelos urubus. Por isso tirei a canoa dele. Qualquer parte do
rio ele vai a remo, nadando. Mas na rua ele se perde.
João encerra seu repente brutal:
– Eu quero que o mundo saiba que Belo Monte me matou.