O doutor Drauzio Varella, aliás, contou em artigo recente que perguntou a um dos detentos do antigo Carandiru, que levava o corpo de um estuprador com mais de 40 facadas à enfermaria, por que razão eles respeitavam o assassino de um pai de família, enquanto barbarizavam o estuprador. Segue o trecho com a resposta e o comentário de Varella:
- Quem mata uma pessoa pode passar o resto da vida sem matar mais ninguém. O estuprador vai sair daqui e atacar outra mulher, que pode ser a sua filha ou a minha irmã. Esses caras são anormais.
Não lhe tiro a razão. De fato, aceitamos com mais condescendência um assassino do que o estuprador. O estupro é o mais abjeto dos crimes.
Pronto. Drauzio Varella “não tirou a razão” dos justiceiros presidiários. Não tirar a razão de alguém é até pior do que julgar “compreensível” o ato. Entre compreender e justificar há uma distância maior do que entre não tirar a razão e justificar, já que a razão, se não é tirada, é NO MÍNIMO compreendida.
Vamos responsabilizar Drauzio Varella por todos os homicídios de estupradores também? Claro que não. Qualquer ser alfabetizado funcional e moralmente nota que ele quis apenas compreender o raciocínio do detento ou simplesmente concordou com a anormalidade dos estupradores. Mas, se Sheherazade ou qualquer outro “reaça” tivessem dito tal coisa dessa forma, o mundo cairia em cima, como continua caindo no caso dela.
Ricardo Boechat já havia declarado que as opiniões da apresentadora eram “uma bosta”; e agora, após a matéria sobre o linchamento de uma mulher no Guarajá, litoral de São Paulo, atingiu o ápice do cinismo com este comentário que transcrevo e comento abaixo:
“Esse crime aí, minha gente, tem tanta responsabilidade nele o autor do boato espalhado pela internet – assinou embaixo ‘Guarujá Alerta’ não sei o quê – quanto pessoas que, mesmo em emissoras de TV, estimulam a cultura da justiça com as próprias mãos. Isso está dentro do mesmo panorama que propicia, que estimula, que justifica linchamentos aí, como o que nós andamos vendo recentemente em várias cidades do país, ou tentativas de linchamento. É hora dessas pessoas, agora, virem a público e dizerem como se sentem diante da consumação de sua própria teoria na prática.”
Que autoridade moral tem Ricardo Boechat para mandar indireta à Sheherazade, que nunca “estimulou” justiça com as próprias mãos coisa nenhuma, como dezenas de vezes esclareceu no próprio SBT muito antes deste linchamento, ao contrário dele, o jornalista que ficou famoso em 2013 por ter endossado o quebra-quebra e os ataques em manifestações que resultariam na morte de seu próprio colega de emissora, o cinegrafista Santiago Andrade? Transcrevo abaixo o principal trecho de um dos vídeos mais vexaminosos da história do jornalismo brasileiro:
“(…) Essa realidade vai mudar (…) se a população atacar, partir pro contra-ataque. Eu sou favorável a arranhar carro de autoridade, eu sou favorável a jogar ovo, eu sou favorável a revolta, a quebra-quebra, o c@*@lho. ‘Ah, isso é vandalismo!’ Vandalismo é o cacete! Vandalismo é botar as pessoas quatro horas na fila das barcas todo dia (…). Vandalismo é tu roubar feito um condenado o dinheiro público (…).”
Só faltou dizer, como o psolista Francisco Bosco, que “Os saqueadores me representam“. É este amante da democracia que quer responsabilizar Sheherazade pela morte de uma inocente? Sei que há idiotas úteis, desprovidos de senso das proporções, para ler os comentários de ambos e dizer: “Ah, os dois estão errados…” Mas Boechat não achava simplesmente “compreensível” a revolta. Ele estimulava os vândalos a atacar de várias formas os seus inimigos e ainda dava margem a outras. Se quebra-quebra, arranhar carro e até jogar ovo estavam entre as sugestões declaradas para aquelas supostas vítimas do Estado, por que afinal o rojão que acabou matando Santiago não estaria incluído naquele “c@*@lho”?
(Não era Boechat – neste outro áudio que prefiro nem trazer para o blog - quem sugeria ao helicóptero da Band sobrevoando o aeroporto de Congonhas que “talvez pudesse jogar um TIJOLO ou alguma coisa, [ou] fazer um pipi nessas duas viaturas da Polícia Militar de São Paulo”? O que é um TIJOLO arremessado de um helicóptero perto de um rojão solto na praça?)
“Diante da consumação de sua própria teoria na prática”, Boechat se saiu assim:
“Olha, sem dúvida setores do aparato repressivo oficial da polícia e setores irracionais infiltrados no movimento popular odeiam a liberdade, odeiam portanto o trabalho de uma imprensa livre. Mas eu particularmente acho o seguinte: um rojão daquele não tem endereço. O cara acende e manda pro destino. Atingiu o Santiago, nosso companheiro. Podia ter atingido uma criança, teria matado. Podia ter atingido uma mulher grávida, um idoso. Aquilo ali é um tiro disparado em direção a seja lá quem for. E de vez em quando encontra um destino.”
Uau! Que descoberta lamentavelmente tardia, não? Boechat jura mesmo que “um rojão daquele não tem endereço”? Mas por que os ovos teriam? Por que as vidraças e os escombros do quebra-quebra igualmente teriam? Por que os TIJOLOS teriam? Desculpe, mas sou obrigado a dizer: por que “o c@*@lho” teria? Por que, em suma, os cidadãos inocentes – crianças, mulheres grávidas, idosos, mas também jornalistas – estariam protegidos contra os perigos resultantes do caos estimulado?
Era tão difícil assim prever uma tragédia?
Que autoridade moral tem Ricardo Boechat para falar em “setores irracionais infiltrados no movimento popular” se, irracionalmente, ele estimulava os próprios populares a atacarem com meios semelhantes? E como um jornalista que reagiu tão cinicamente às consequências do que ele mesmo pregava pode exigir que uma colega de profissão – atualmente calada pelo governo! – venha a público dizer como se sente em relação àquilo que ela nunca pregou?
Muito bonzinho que sou, darei a ele uma última e enorme chance de se explicar no áudio abaixo. Enquanto as Jandiras da imprensa e da internet condenam Sheherazade sem jamais voltar à sua frase original, muito menos a seus esclarecimentos posteriores, a fim de fomentar o ódio puro e simples contra a apresentadora, eu faço questão de exibir o discurso dessa gente.
Após citar os casos de Santiago Andrade (morto) e outros jornalistas feridos, ele diz:
“(…) Os caras vão pra lá para imprimir uma forma de ser, uma forma de agir, que é o predomínio da estupidez sobre qualquer outra [forma]… ‘Ah, Boechat, você não é a favor do radicalismo?’ Sou. Mas radicalismo não é estupidez. Radicalismo é você levar adiante seus objetivos, mesmo numa correlação de forças desfavorável, ou você acentuar a tua luta quando a situação é favorável. Ninguém jamais aqui me ouviu de dizer que eu fui contra a ocupação da câmara dos vereadores. Pelo contrário! Várias vezes entrevistei os manifestantes que lá na câmara estavam… ocupando a câmara lá dentro. É só ouvir, está lá arquivado até hoje. Várias vezes… Quando tentaram fazer invasão da assembleia legislativa, do congresso nacional, eu nunca me posicionei contrário a isso.
Eu defendi numa entrevista do Pato com Laranja – está lá nas redes até hoje e tal -, eu digo [na entrevista] “Tem que botar pra quebrar mesmo” e tal. Agora: não é em cima do outro cidadão, não é em cima do patrimônio privado, não é em cima do orelhão que todos usamos, não! Referência no sentido de radicalizar o enfrentamento com o Estado.
É botar o Estado de joelhos diante da sociedade, através da mobilização popular. E isto vai ser feito não graças a grupos como esse, truculentos, que assustam a sociedade, que intimidam a sociedade, que afastam a população dos movimentos.
Não é isso! Se o movimento popular como um todo sobe o tom de sua pressão sobre o Estado, como vinha fazendo em junho e julho, e resolve tomar prédios públicos, ocupar áreas públicas e tal, em massa, nas ruas, famílias, trabalhadores e tudo mais, aí desculpe: você tem o apogeu de qualquer luta popular, é exatamente este ápice que se está procurando.
É a inversão, a troca de eixo de poder… deixa de ser Sua Excelência e passa a ser o cidadão. E aí a Sua Excelência passa a ter que fazer o que o cidadão quer. É a voz das ruas impondo a sua vontade. Nesse sentido, eu sou absolutamente radical. Sou a favor do movimento popular radical. Radical! Partir para dentro dos caras. Partir! Mas não tenha dúvidas: se ocuparem o Congresso, eu estou pouco ligando, jamais faria uma crítica. Agora: quebrar o orelhão, quebrar a vitrine da loja de lingerie, dar porrada em jornalista, tacar fogo em carro da imprensa, aí o cara tá cuidando de uma pauta DELE!”
Como se a pauta do suposto movimento popular fosse da sociedade inteira, não é mesmo?…
E como se as manifestações não tivessem sido violentas desde o primeiro dia.
“Os Black Blocs cuidam de uma pauta deles, movidos a frustração, à palmada na bunda que a mãe deu na hora errada, a questões de sexualidade mal resolvida. Só posso acreditar que é isso. É um bando de gente raivosa, que tem raiva da sombra, da mãe, do pai, do tio e tal, e que querem que a sociedade aja dentro deste receituário, sociedade que eles veem como inimiga! Tudo é inimigo deles! A começar por aqueles que pregam a necessidade de ser respeitado o direito à livre manifestação e à livre opinião. Eles não toleram isto. Eles são fascistas, eles são milicianos, têm práticas criminosas e merecem cadeia. Merecem cadeia.”
Antes da morte de Santiago, Boechat pregou o quebra-quebra naquela entrevista. Depois da morte de Santiago, descobrimos que havia uma série de limitações para o quebra-quebra pregado. Só faltou ao radical confesso Boechat escrever o seu “Minimanual da guerrilha” à moda Marighella, para explicar os detalhes das violências permitidas e proibidas. Contra o Estado, sim; contra as pessoas e propriedades privadas, não. A dúvida sobre como essas pessoas e propriedades estariam imunes a rojões ou qualquer artefato direcionado às forças do Estado permanece sem explicação (assim como aquela, de que falei no caso de Bosco, sobre qual é, e como pode ser medido, o limite de insatisfação que justifica os atos de vandalismo).
Nelson Rodrigues dizia: “Não estarei insinuando nenhuma novidade se afirmar que nunca houve uma multidão inteligente.” Boechat devia acreditar que há multidões não só inteligentes como também “snipers”, capazes de acertar seus ataques sempre na mosca, sem afetar mais ninguém. Nelson dizia ainda: “Nunca houve inteligência coletiva, trezentas pessoas reunidas constituem um bloco monolítico de incompreensão, frequentemente de estupidez.” Boechat não aprendeu a lição, mas, qualquer coisa, ele responsabiliza os “setores irracionais infiltrados”.
Nestes pontos, o que ele tem de diferente dos esquerdistas que há décadas legitimam moralmente todos os crimes e ainda querem acusar os outros de fazê-lo?
Nada, é claro. Todos continuam linchando os neurônios e o caráter do povo.
Felipe Moura Brasil - http://www.veja.com/felipemourabrasil