Expansão de cana-de-açúcar para a Amazônia colocará em xeque os
serviços ambientais da floresta. Entrevista especial com Lucas Ferrante
IHU
Apesar de a legislação proibir o cultivo de cana-de-açúcar na
Floresta Amazônica desde 2009 por causa do impacto ambiental que esse
tipo de cultura gera na
biodiversidade, um projeto de lei recentemente discutido no
Senado Federal propõe que esse plantio seja retomado em áreas degradadas. Entretanto, de acordo com o biólogo
Lucas Ferrante, que já realizou estudos para verificar a influência do cultivo de
cana-de-açúcar sobre
florestas adjacentes, “esse é um dos cultivos mais nocivos” para a floresta. “Grandes plantações desse cultivo na
Amazônia podem causar um dano muito grande à estrutura da floresta adjacente e também à biodiversidade, representando uma
perda de patrimônio genético para o
Brasil.
Além disso, existem outros problemas envolvidos, porque a degradação da
floresta, por si só, faz com que percamos diversos serviços
ecossistêmicos dos quais somos altamente dependentes, como, por exemplo,
a regulação do clima. Se houver plantação de
cana-de-açúcar na floresta, poderemos colocar em xeque até o próprio cultivo agrícola da região”, adverte.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à
IHU On-Line,
Ferrante também informa que nem mesmo a indústria da
cana-de-açúcar está apoiando o projeto de lei. “Essa questão é repudiada pela própria indústria de
cana-de-açúcar e de
álcool. Para aumentar a demanda de
biocombustíveis não é interessante a implementação desse cultivo na
Amazônia,
o que demonstra, mais uma vez, que esse cultivo não é economicamente
viável”. E reitera: “Se o próprio setor de biocombustíveis não apoia
essa proposta, como pode-se dizer que ela vai gerar renda e será viável
para a região? O próprio setor já se manifestou, duas vezes inclusive,
contrário ao plantio de
cana-de-açúcar na
Amazônia”.
Lucas Ferrante | Foto: Xapuri
Lucas Ferrante é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade
Federal de Alfenas – Unifal e mestre em Ecologia pelo Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia – Inpa. Atualmente é doutorando em Ecologia
também no Inpa. É pesquisador associado ao Centro de Estudos Integrados
da Biodiversidade Amazônica – Cenbam, ao Programa de Pesquisa em
Biodiversidade – PPBio, e ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia
dos Serviços Ambientais da Amazônia – INCT-Servamb.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Em que consiste o projeto de lei que propõe o
plantio de cana-de-açúcar na Amazônia, pautado recentemente no Senado?
Lucas Ferrante — Esse projeto de lei tenta promover a
abertura da Amazônia e do Pantanal para o plantio de cana-de-açúcar.
Desde 2009 existe um veto de plantações de
cana-de-açúcar nessas
áreas devido ao potencial impacto que esse cultivo teria na
biodiversidade e nas comunidades locais. O projeto de lei propõe que
esse plantio deveria ser implementado em áreas alteradas. Primeiramente,
levantamos a questão sobre o que são áreas alteradas, já que essas
podem ser de muitos modos. Além disso, sabemos que a introdução do
plantio de
cana-de-açúcar causa um dano ambiental que vai além da área de plantio.
Na ecologia há um efeito conhecido como
Efeito de Borda, o qual é causado por um
cultivo agrícola para
além da área plantada sobre áreas de floresta. Liderei alguns estudos
para verificar a influência do cultivo de cana-de-açúcar sobre florestas
adjacentes e verifiquei que esse é um dos cultivos mais nocivos.
Portanto, grandes plantações desse cultivo na
Amazônia podem causar um enorme dano à estrutura da floresta adjacente e também à biodiversidade, representando uma
perda de patrimônio genético para o
Brasil.
Além disso, existem outros problemas envolvidos, porque a degradação da
floresta, por si só, faz com que percamos diversos serviços
ecossistêmicos dos quais somos altamente dependentes, como, por exemplo,
a regulação do clima. Se houver plantação de
cana-de-açúcar na floresta, poderemos colocar em xeque até o próprio cultivo agrícola da região.
Também existem outras questões, porque na
Amazônia ocorrem os fenômenos de migração de cultura que geram
desmatamento — podemos observar isso com a soja. Quem vive de
pecuária ou outros cultivos vai acabar vendendo suas terras para os plantadores de
cana-de-açúcar,
que vão usar esse dinheiro para comprar terras mais baratas, gerando
desmatamento. Logo, a implementação do cultivo de cana-de-açúcar também
tende a estimular o desmatamento na
Amazônia. Assim, uma série de problemas sociais serão gerados, principalmente conflitos de terra, além da
degradação ambiental. Ademais, podemos esperar que o desenvolvimento econômico da região seja pequeno ou nenhum, porque o cultivo de
cana-de-açúcar é basicamente mecanizado e isso gera pouquíssimos empregos.
IHU On-Line — Como esse projeto de lei está sendo discutido no Senado?
Lucas Ferrante — O debate político praticamente não
existe. Os senadores têm diferentes pontos de vista: alguns entendem que
esse cultivo realmente é nocivo para a
Amazônia e para a
América Latina como
um todo. O que vemos é que essa é uma questão que a bancada
ruralista tem defendido. O fato é que esse tipo de plantio não irá gerar
desenvolvimento para a região, talvez gere riqueza, mas ela será muito
concentrada. Portanto, não vemos o plantio de
cana-de-açúcar como
uma fonte de desenvolvimento para a região, como vem sendo alegado por
diversos senadores da bancada ruralista. Alguns senadores são contra
essa iniciativa e se mobilizaram em oposição a esse projeto, inclusive
foi por essa razão que não houve quórum em algumas votações e a votação
não ocorreu em definitivo. Essa questão ainda está sendo debatida, por
isso é importante divulgarmos o conhecimento científico que temos,
justamente para pautar a decisão.
IHU On-Line — Entre os argumentos que justificam a plantação
de cana-de-açúcar na Amazônia, destaca-se a necessidade de aumentar a
demanda por biocombustíveis. Como você vê esse tipo de justificativa?
Lucas Ferrante — Essa questão é uma falácia que a
bancada ruralista tem
defendido. Em primeiro lugar, essa questão é repudiada pela própria
indústria de cana-de-açúcar e de álcool. Para aumentar a demanda de
biocombustíveis não é interessante a implementação desse cultivo na
Amazônia, o que demonstra, mais uma vez, que esse cultivo não é economicamente viável.
Se o próprio setor de
biocombustíveis não apoia essa
proposta, como pode-se dizer que ela vai gerar renda e será viável para
a região? O próprio setor já se manifestou, duas vezes inclusive,
contrário ao plantio de
cana-de-açúcar na
Amazônia.
IHU On-Line — Já houve plantio de cana-de-açúcar na Amazônia antes da legislação proibitiva de 2009?
Lucas Ferrante — Sim, já houve alguns plantios que, inclusive, se mantêm. Próximo a
Balbina tem uma plantação de
cana-de-açúcar que
é da Coca-Cola. Ou seja, os cultivos que foram implementados antes de
2009 permaneceram, e simplesmente houve a proibição para novos cultivos.
Também existem áreas no
Acre que têm pequenas plantações.
É importante frisar que pequenas plantações de fundo de quintal acabam ocorrendo, porque o que a lei proíbe é a
plantação em larga escala,
o que é altamente nocivo para a biodiversidade e para a floresta
adjacente, pois tende a contribuir para a modificação da floresta, além
de estimular o desmatamento para outras áreas e causar diversos
conflitos socioeconômicos. Inclusive, a própria sociedade da indústria
de
cana-de-açúcar, que assinou alguns acordos de clima e de floresta, se manifestou completamente contrária à implementação desse cultivo.
O
Brasil já tem a maior área de plantio de
cana-de-açúcar do mundo e é o maior exportador de biocombustível à base de
cana-de-açúcar.
Portanto, não tem por que aumentar mais o mercado nesse quesito; não
existe uma demanda real de aumento desse mercado. Talvez o que
precisamos fazer é investir em
biotecnologia, para que
as áreas que já têm esse cultivo se tornem mais produtivas de uma
maneira que não danifique o solo e que não prejudique a safra
futuramente.
Expandir isso para a
Amazônia seria um erro fatal,
porque poderia colapsar a própria produção de cana-de-açúcar do país,
uma vez que existem estados, como os do
Sul,
Sudeste e
Centro-Oeste, que são os maiores produtores desse cultivo no
Brasil. Além disso, sabemos que grandes modificações na
Amazônia poderiam colapsar essas plantações e também outros cultivos do Sul e Sudeste. Então, Sul e Sudeste do
Brasil e países como a
Argentina são extremamente dependentes do vapor de água exportado pela Amazônia. Garantir a conservação da
Amazônia e desse serviço ecossistêmico é primordial para a própria agricultura do Brasil. É uma contradição quando vemos r
uralistas do Sul do país defendendo que o cultivo de
cana-de-açúcar na
Amazôniavai gerar riqueza para o
Brasil.
Isso é um tiro no pé, pois estarão prejudicando os cultivos dentro do
seu próprio estado. Por isso essa proposta não é vantajosa nem para a
Amazônia, nem para os
Lavoura do Projeto PROCANA (Foto: Instituto Agronômico de Campinas – IAC)
IHU On-Line — Quais são as implicações ambientais do plantio
de cana-de-açúcar para a Amazônia e para os biomas vizinhos? Essa
cultura causa algum dano específico à floresta?
Lucas Ferrante — As alterações climáticas serão
perceptíveis em todos os biomas até chegar à costa atlântica brasileira.
Vamos observar danos não só na estrutura do bioma, porque se esperam
secas mais prolongadas e chuvas mais concentradas. Então, isso pode
afetar o ciclo reprodutivo de várias espécies, principalmente na Mata
Atlântica, onde já estamos observando algum declínio em algumas
espécies, como anfíbios, que são controladores de pragas para a
agricultura e de vetores de doenças para a saúde humana.
Atualmente vivemos um surto de
febre amarela silvestre em
alguns estados da Mata Atlântica, e isso pode, sim, estar relacionado
ao declínio de fauna pontualmente, em especial de anfíbios, que são
predadores naturais das larvas. Podemos esperar várias consequências
ambientais em decorrência disso, inclusive
perda de biodiversidadenão só na
Amazônia,
como também em outros estados; mas pode haver, sobretudo, alteração de
serviços ecossistêmicos importantes que beneficiam a própria população. A
partir disso podemos esperar o surgimento de outras
doenças tropicais.
Também podemos esperar que a água se torne um recurso escasso para
regiões que demandam grande quantidade de água para abastecimento
humano. Além disso, a
seca em São Paulo tende a aumentar e precarizar a distribuição de água. A própria
agriculturatende a sofrer nesses estados por conta dessa prolongação da seca.
O Cerrado é um bioma que já vem enfrentando grande
desmatamento, e essas
alterações climáticas podem
propiciar o aumento de incêndios, danificando ainda mais florestas
desse bioma. Os prejuízos são basicamente incalculáveis.
IHU On-Line — Nos últimos anos aumentou o plantio de soja na Amazônia. Esse tipo de cultivo tem gerado implicações à floresta?
Lucas Ferrante — A expansão da soja é um problema e
isso tem que ser controlado para que não tenhamos zonas de conflito,
inclusive com comunidades tradicionais.
Soja e pecuária são líderes em trabalho escravo na
Amazônia.
Esses cultivos têm que ser muito bem manejados, as fazendas têm que ser
muito bem fiscalizadas. O que o setor ruralista defende é que a
conservação ambiental é um entrave para a produção agrícola do país, mas
isso não é verdade. A própria
agricultura se beneficia dos serviços ecossistêmicos propiciados pela conservação do
meio ambiente.
A
cana-de-açúcar é um problema, porque ela geraria o mesmo dano que a
soja já gerou quando se expandiu na
Amazônia.
Não podemos deixar que áreas hoje ocupadas por outros cultivos sejam
tomadas pela cana-de-açúcar, porque os outros cultivos vão migrar para
outras áreas, aumentando o desmatamento. O dano da
cana-de-açúcariria potencializar o dano causado pela
pecuária e
pela expansão da soja; esses são fatores que devemos considerar. A soja
por si só já gerou um dano muito grande, tanto ambiental quanto social,
e a própria pecuária também. Hoje esses cultivos estão amplamente
disseminados na
Amazônia e o que temos de fazer é
estudar melhor, compreender esses impactos e tentar fazer um zoneamento
ambiental de forma que possamos fiscalizar esses cultivos para que não
aumentem o
desmatamento e os problemas sociais e ambientais.
IHU On-Line — Como a proposta de expansão da cana-de-açúcar
para a Amazônia tem sido discutida pelos estados da federação que fazem
parte da Amazônia?
Lucas Ferrante — O projeto é muito bonito no papel, mas sabemos que aquilo é “para inglês ver”. Sabemos que quando se trata de
Amazônia,
as coisas são muito mais obscuras quando implementadas e muito difíceis
de ser fiscalizadas. Diversos senadores dos estados que fazem parte da
Amazônia já manifestaram que essa expansão será boa para o
desenvolvimento econômico da região, mas sabemos que isso é uma falácia.
Os estados tendem a perder com a implementação desse cultivo, porque
outros problemas tendem a surgir a partir daí e, talvez, o ganho gerado
não pague o dano causado por conta dessa implementação. É muito
importante que esses estados se conscientizem disso e não comprem uma
ideia que um político apresentou como sendo muito bonita.
Em geral a opinião é muito dividida. Alguns senadores se manifestaram contra, como a senadora
Vanessa Grazziotin, que é do
Amazonas,
e outros senadores estão pautando a favor. Os relatórios técnicos que
temos sobre isso precisam ser considerados pelos senadores, porque fazer
uma liberação apenas a partir do ponto de vista deles é arbitrário. Não
é possível tomar decisões apenas com base na política; temos dados
científicos que nos indicam que esse tipo de plantio vai ser ruim para a
região e para outras regiões do país também e isso deveria ser pautado
na hora de considerar a votação.
IHU On-Line – Que tipo de cultivo diria que é adequado para a floresta?
Lucas Ferrante – Existem várias alternativas para garantir o desenvolvimento na
Amazônia,
conservando a floresta e, principalmente, gerando renda para o pequeno
produtor, que é aquele que realmente produz o que consumimos. Isso
porque 70% do alimento produzido no Brasil vem dos pequenos
agricultores, e não da
agricultura em larga escala e mecanizada,
que é a que recebe maior apoio do governo e maior financiamento
bancário. O estímulo do pequeno produtor rural é muito importante para
aumentar a demanda de alimentos na região.
Nesse sentido, temos alternativas de alimentos bons, limpos e justos,
que valorizem o trabalho do pequeno produtor de forma que não agrida o
meio ambiente. Temos
sistemas agroflorestais,
que produzem alimentos e não agridem o meio ambiente. Existem também
iniciativas atuando na região, como o movimento de Slow Food, que tem
como premissa produzir alimentos bons e justos, livres de
agrotóxicos.
Paralelamente, existem outras iniciativas, como a do crédito de carbono. A
Amazônia é enorme e o
crédito de carbono é um mercado importante, porque diversas empresas internacionais com grandes emissões de gases têm comprado
créditos de carbono, e a
Amazônia por
si só é a maior reserva de carbono do mundo. Então, se estimularmos o
crédito de carbono numa iniciativa em que o próprio Estado promova isso,
pensando na conservação da floresta, fazendo zoneamento ambiental
adequado e controlado por imagens de satélites, talvez essa seja uma
solução muito melhor para o desenvolvimento dos estados, mantendo a
floresta em pé e o desenvolvimento da região, do que manter o cultivo em
larga escala.
Para se ter uma ideia, o
PIB total do
Amazonas em 2017 foi de 93.599 milhões de reais. Se considerarmos por base o
crédito de carbono que a Amazônia poderia gerar por ano, seria em torno de 8 bilhões, ou seja, é infinitamente maior que o próprio
PIB do estado. Com esses
créditos de carbono poderíamos fazer abatimentos fiscais para esses estados que fazem parte da
Amazônia e
investir na saúde e educação da população. Nesse sentido, podemos
valorar os serviços ambientais que a floresta nos proporciona e não
perder o serviço ecossistêmico do qual toda a
América do Suldepende.
IHU On-Line – Muitas ONGs e movimentos sociais têm se
manifestado contra mecanismos como o REDD ou créditos de carbono como
alternativa para proteger as florestas, alegando que esses mecanismos
vinculam as comunidades locais a um contrato financeiro em que elas
ficam impedidas de manejar a área por muitos anos, enquanto a outra
parte do contrato continua produzindo e emitindo poluição do outro lado
do mundo. Apesar dessa crítica, por que, na sua avaliação, o REDD e os
créditos de carbono são boas alternativas para preservar as florestas?
De que modo esses mecanismos podem proteger as florestas, a exemplo da
Amazônia?
Lucas Ferrante – Sempre que pensamos em
desenvolvimento,
existem pontos positivos e negativos, por isso precisamos pensar
modelos que sejam benéficos para as comunidades tradicionais. Hoje
verificamos que grandes alterações paisagísticas na
Amazônia tendem
a gerar mais problemas sociais e menos desenvolvimento do que realmente
se propõe, e um exemplo disso é Belo Monte. Então, as comunidades têm
culturas e precisamos criar métodos de preservá-las, valorando os
alimentos que elas produzem, por meio de certificações ambientais,
inclusive para exportação. Tem sido feito isso com o guaraná, que é
exportado para a
Europa, e o mel. Isso possibilita que a
comunidade mantenha sua cultura e se preserve a própria identidade do
povo, valorando seu alimento e seus costumes e dando recursos de
subsistência. Isso não vai na contramão de implementar
créditos de carbono. Ao contrário, essas medidas podem ser conciliadas e vão somar para melhorar a qualidade de vida da população.
(
EcoDebate, 17/04/2018) publicado pela
IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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