Publicado em abril 1, 2016 por
Redação
Por Thiago Domenici, da
Agência Pública
Legislação e fiscalização ineficientes deixam o maior estado
minerador do país vulnerável à irresponsabilidade das empresas; cinco
minas, entre elas algumas abandonadas, estão classificadas como de risco
ambiental “muito alto”
Minas abandonadas e paralisadas. Centenas delas. Algumas
com alto risco ambiental. O caso da Engenho D’Água, em Rio Acima (MG),
expõe a negligência em relação ao fechamento das minas, também chamado
de “descomissionamento”. A empresa Mundo Mineração Ltda. simplesmente
abandonou a exploração em 2012. Sem tomar nenhuma atitude para mitigar
os impactos sociais e ambientais do empreendimento.
Um
levantamento
divulgado em janeiro pela Fundação Estadual de Meio Ambiente (Feam)
coloca a Engenho entre as cinco minas classificadas como de risco
ambiental “muito alto”. Ou seja, passíveis de causar impactos “muito
expressivos” ao ambiente e à saúde humana e de potencializar “os danos
da atividade e de ocorrência de acidentes”. Estão na mesma categoria a
mina de ferro da Mutuca, em Nova Lima, da Vale S.A.; a mina de areia
Areial Três Munhos Eireli, em Ouro Preto; a mina de diamante da
Mineração São Geraldo do Barro Duro, em Diamantina; e a Mineração de
Ferro Geral do Brasil (ex-extrativa Paraopeba), no município de
Brumadinho.
O documento registra 400 minas abandonadas ou paralisadas,
número que não se refere ao total do estado, podendo haver outras
tantas centenas. Com base nesses dados,
a Pública elaborou um mapa interativo
onde estão indicadas as áreas definidas como de muito alta, alta,
média, baixa e muito baixa vulnerabilidade ambiental. Um mosaico
preocupante da situação minerária do estado, palco do rompimento da
barragem de Fundão, da empresa Samarco, que pertence à Vale S.A. e à BHP
Billiton, em novembro do ano passado.
Do total de áreas vistoriadas entre 2014-2015, 169 foram
confirmadas como abandonadas e 231 como paralisadas, e 134 foram
classificadas como paralisadas sem controle ambiental, muitas na
categoria de baixo e médio risco. Outras 97 estão paralisadas com
controle ambiental, o que equivale a 24% das minas. “É um modelo que não
considera o ambiente, só a economia; e o fechamento de minas é o
problema que menos interessa”, critica Maria Tereza Corujo,
ambientalista do Movimento pelas Serras e Águas de Minas.
No caso da Vale S.A., são nove os empreendimentos
registrados no documento. Além da mina da Mutuca, de risco “muito alto”,
outras cinco são de risco final “alto”, e duas estão localizadas no
município de Mariana: a mina Del Rey e a Morro da Mina, nas imediações
da tragédia mais recente.
O relatório afirma, no entanto, que as minas
da multinacional estão sob controle da empresa, o que significa que a
vistoria identificou “a execução de medidas de monitoramento ambiental”,
embora essas medidas não estejam detalhadas no documento.
Falhas na legislação
“Durante séculos, as minas foram simplesmente abandonadas
sem que seus efeitos fossem percebidos como merecedores de preocupação”,
diz Luis Enrique Sánches, professor titular de Engenharia de Minas na
Universidade de São Paulo. Segundo ele, as consequências ambientais e
socioeconômicas do fechamento de minas vêm sendo objeto de estudos e
regulamentação em várias partes do mundo.
No Brasil, avalia, tanto a
legislação de mineração quanto a legislação ambiental são falhas ao
tratar da questão. “Ambas foram pensadas para abrir novos
empreendimentos e para a fase de instalação e funcionamento, e na fase
de desativação e de fechamento definitivo não existem orientações claras
e detalhadas”, diz.
Na esfera estadual, Minas Gerais é o único ente federativo
a dispor de regulamentação sobre o tema. Desde 2008, a Deliberação
Normativa 127 obriga que um Plano Ambiental de Fechamento de Mina
(Pafem) seja apresentado dois anos antes da data programada para
encerramento. Também dá prazo de 180 dias para que o minerador apresente
um Relatório Circunstanciado sobre a paralisação da atividade
minerária, mas nesse caso a empresa deve apenas comunicar o fato e
apresentar uma relação de medidas de proteção. Como reconhece a Feam,
porém, a legislação não tem sido respeitada.
“Esta
diretriz não vem sendo cumprida pelos empreendedores, bem como o correto
encerramento das atividades minerárias com a execução do Pafem ou do
Plano de Recuperação de Áreas Degradadas (Prad)”, afirmou o órgão
estadual em nota.
A pedido da Pública, a Feam realizou uma consulta
de quantos Pafem foram registrados no Sistema Integrado de Informações
Ambientais (Siam), do governo de Minas Gerais, o que revelou que somente
cinco empresas o fizeram desde 2008.
São dois processos de fechamento
de mina e três protocolos de planos de fechamento. Em relação aos
relatórios de paralisação da atividade minerária, “não existe um
procedimento de consulta no Siam que permita identificar, de maneira
ágil, quantos empreendimentos já protocolaram estes estudos”, informou a
Feam. Segundo a fundação, seria preciso dispor de pelo menos um mês
para buscar outras informações sobre protocolização, análise e aprovação
de Planos de Fechamento.
O relatório diz que “a análise do processo de fechamento
de mina, do ponto de vista ambiental e social, em Minas Gerais, tem
ficado a cargo do órgão ambiental estadual” e, como não existe um acordo
com o órgão federal responsável pelas análises de fechamento, o
Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), o minerador é obrigado
a apresentar dois relatórios conforme as especificações de cada
entidade.
DNPM: “No olho do furacão”
Como autarquia ligada ao Ministério das Minas e Energia
(MME), o DNPM é responsável por autorizar lavras e fiscalizar as
atividades mineradoras do país. Em termos de missão, é seu dever “gerir o
patrimônio mineral brasileiro, de forma social, ambiental e
economicamente sustentável”.
A tragédia em Mariana, porém, expôs as deficiências do órgão,
ignoradas pelos brasileiros em geral, mas sobejamente conhecidas pelos
funcionários. O DNPM então ficou no “olho do furacão”, na expressão de
A.A.R., servidor de fiscalização em Minas Gerais, que assim como outros
funcionários do DNPM entrevistados pela
Pública, falou sob a
condição de não revelar seu nome. Para ele, a tragédia evidenciou que “a
demanda do órgão é muito maior do que sua capacidade produtiva”.
A precariedade da DNPM em São Paulo, onde
arquivos são armazenados em sala abafada sem proteção contra poeira e
insetos (Foto: Thiago Domenici)
Segundo o professor Sánches, isso acontece porque o DNPM
“foi relegado” pelos sucessivos governos federais a uma entidade de
menor importância e perdeu espaço para os órgãos ambientais nas últimas
décadas. “A abertura de novas minas, por exemplo, passou a ser
condicionada muito mais ao licenciamento ambiental do que à emissão de
um título de lavra”, avalia.
As Normas Reguladoras da Mineração (NRM) nºs 20 e 21 dão
diretrizes sobre a suspensão e fechamento da mina e reabilitação das
áreas impactadas. É obrigatório, por exemplo, que o Plano de Fechamento
de Mina (PFM) faça parte do Plano de Aproveitamento Econômico (PAE) da
jazida, sendo, portanto, uma etapa a ser considerada desde a concepção
do empreendimento.
“O problema é que, quando o empreendedor para de
lavrar, ele dificilmente faz o pedido de suspensão ou de fechamento da
mina, mas tem alguns que pedem e o DNPM demora a analisar, e tem os que
simplesmente abandonam”, diz a engenheira de minas D.L., também
servidora do órgão em Minas.
“Já aconteceu muitas vezes de eu ver que a área não está
produzindo, vou lá e faço uma fiscalização. Se a gente realmente
comprovar o abandono, vamos pedir a caducidade daquele título e colocar
em disponibilidade para outras empresas, mas essa caducidade demora
porque tem recurso, e tudo é decidido lá em Brasília.
O desfecho pode
demorar anos”, explica a engenheira. Ela conta que depois da tragédia
“ficou todo mundo muito desesperado” e que o enfoque atual tem sido a
segurança das barragens do estado. “Chegou muita pressão em cima da
gente, não só política, mas do Ministério Público, Polícia Federal”,
diz.
Há seis anos esses dois servidores realizam, entre outras
tarefas, a análise de Relatório Anual de Lavra (RAL) das empresas, uma
espécie de Imposto de Renda do minerador. Além disso, eles precisam ir a
campo vistoriar esses empreendimentos. “Semana passada mesmo, tivemos
que cancelar vistoria porque não tinha verba”, diz A.A.R.
“Estamos
passando por um perrengue tal… Para você ter ideia, nós estávamos com
oito carros aqui, e foram solicitadas outras viaturas para trabalhar na
força-tarefa de fiscalização de barragens, mas quatro estão fora de
combate”, lamenta. Ele conta que a internet falha constantemente e que o
sistema de informática não é estável, inviabilizando por dias o
trabalho de análise dos relatórios de RAL e outras tarefas.
Em todo o país, as 25 superintendências da autarquia têm
de lidar com um universo fiscalizável de mais de 30 mil títulos de
empreendimentos de lavra mineral, 29 mil alvarás de pesquisa em vigor,
com necessidade de fiscalização in loco, dos quais anualmente
ingressam em média 2 mil relatórios parciais solicitando prorrogação do
prazo de pesquisa e 6 mil relatórios finais para análise e decisão.
A complexidade da tarefa é ainda maior porque existem
empresas de mineração de todos os portes, de familiares a
multinacionais. E se explora uma grande variedade de recursos, com
muitas aplicações, tais como: água mineral; areia, brita, cascalho e
argila para construção civil; rochas ornamentais, como granito, mármore e
ardósia; calcário para cimento; caulim; metais preciosos como ouro,
prata e platina; minérios metálicos como ferro, manganês, cobre e
alumínio; insumos para fabricação de fertilizantes e condicionadores de
solos, tais como fosfato, potássio, calcário agrícola; terras raras,
tântalo e nióbio com amplas aplicações industriais e tecnológicas;
energéticos, como carvão mineral; gemas como diamante, esmeralda e
topázio imperial.
A superintendência mineira conta com aproximadamente 80
servidores e recebeu uma força-tarefa para atuar nas barragens de
mineração depois da tragédia em Mariana. “Veio muita gente de outros
estados, colegas da Bahia, Paraná, mas é uma situação emergencial”, diz
A.A.R. Ele conta que são poucos servidores para fazer os trabalhos de
vistoria in loco, isso quando os próprios trabalhadores não arcam
com hotel e combustível. “Se dobrássemos o pessoal, a gente só
conseguiria terminar essas fiscalizações sei lá em quantos anos, estamos
muito atrasados”, revela.
D.L. corrobora a opinião do colega. “Tinha que ter muito
mais gente para o trabalho, porque ali é até desumano dependendo da
coisa, tem que fazer tudo, pouco tempo, meta para cumprir”, diz.
Atualmente, existe um passivo de 6 mil processos do DNPM em Minas. Para
fiscalizar somente as áreas de barragens de rejeitos, existem apenas
quatro fiscais para todo o estado, ou seja, há 184 estruturas por
fiscal.
“O DNPM arrecada muito dinheiro, mas a gente não vê esse
dinheiro voltar pra gente, né? 2014 já foi complicado. 2015 eu não
viajei quase nada, não consegui fazer quase nenhuma vistoria”, diz D.L.
“Um problema leva ao outro”, explica A.A.R. “Se você deixa de fiscalizar, você deixa de arrecadar também.”
Além das condições de segurança dos empreendimentos, as
fiscalizações verificam eventuais sonegações das empresas na arrecadação
da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM),
conhecido como os royalties da mineração. O preço pago pelo
empreendedor ao proprietário do recurso natural, no caso a União, é o
que garante o direito de produzir e comercializar o recurso.
Segundo um
estudo técnico sobre mineração e tributação do Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc) publicado em setembro passado, uma auditoria do
Tribunal de Contas da União (TCU) de 2014 constatou que apenas uma a
cada quatro áreas de extração de minérios paga os royalties de
mineração.
De acordo com o TCU, em 2012, dos 20,7 mil títulos de
mineração (autorizações) ativos no país, apenas 5,4 mil fizeram o devido
recolhimento do tributo. Em 2015, foram arrecadados R$ 1,5 bilhão em
todo o país. A superintendência mineira é uma das mais importantes do
país e costuma representar 50% da arrecadação total.
Da arrecadação realizada pelo DNPM, a distribuição da CFEM
se faz na proporção de 65% para o município produtor, 23% para o estado
onde for extraída a substância mineral e 12% para a União (com
percentuais de divisão entre o DNPM, Ibama e Ministério da Ciência e
Tecnologia). O ferro, cobre e zinco, por exemplo, pagam 2% do
faturamento líquido das mineradoras. O ouro, 1% e o diamante, 0,2%.
A avaliação mais geral dos entrevistados pela Pública
é que o governo federal tem contingenciado há algum tempo a parcela de
recursos da CFEM que seria destinada ao DNPM. Entre 2009 e 2014, foi
repassado 0,8% à autarquia, quando a determinação legal seria de 9,8%.
Em 2014, por exemplo, o valor da produção mineral brasileira foi de R$
99,4 bilhões; já a arrecadação de CFEM atingiu R$ 1,7 bilhão. O repasse
legal ao órgão deveria ser de R$ 166,7 milhões, ou seja, menos de 10%
foram destinados à autarquia.
O ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, admitiu
publicamente que, por causa do contingenciamento, o DNPM só executou
13,2% do valor previsto em fiscalização em 2015. Segundo o ministro, os
cortes “não comprometeram a fiscalização”, declaração rechaçada pelos
servidores entrevistados em São Paulo, Brasília e Minas.
Em visita à superintendência paulista, a reportagem
deparou com um grupo de servidores mobilizados. Em dezembro, esses
servidores publicaram uma
carta
tratando das questões mais urgentes, entre elas a “redução
orçamentária” e “a falta de recursos para pagamento de despesas fixas
como água, luz, telefone, combustível e manutenção de viaturas,
essenciais à realização da atividade-fim”.
A reportagem constatou também
problemas no arquivo, uma sala abafada onde estão os 20 mil documentos
que contam a história de todo o processo minerário desde 1934. “Não há
nada digitalizado, e as coisas estão se deteriorando e sofremos com
falta de espaço”, diz A.L., servidora. “Nada é climatizado, tem muita
poeira, e acabamos tendo problemas respiratórios”, critica.
Além de São Paulo, servidores que trabalham com barragens em todo o país divulgaram uma
carta
em novembro em que afirmam que o governo federal é “negligente” com o
setor mineral. O DNPM, segundo a carta, tem somente 220 fiscais entre
430 técnicos.
“Devido às limitações de recursos (materiais,
tecnológicos, financeiros e humanos), as atividades de fiscalização
ocorrem por amostragem”, escreveram. O que não surpreendeu D.L.: “Todo
tipo de fiscalização do DNPM é mais ou menos por amostragem”, ela diz,
explicando que, dentro da demanda, seleciona o que é mais crítico. “Não
tem como fazer tudo, é impossível”, afirma.
Mobilização de servidores da Superintendência do DNPM em São Paulo (Foto: Divulgação)
O relatório de gestão 2014 do DNPM, por exemplo, declara
que, “diante da inconstância na descentralização de recursos
financeiros, priorizou-se a análise de processos e documentos que podem
ter decisão sem a fiscalização presencial no empreendimento/área”.
Para os servidores entrevistados, a solução passaria pela
criação de uma agência reguladora com mais autonomia, mais recursos e
mais pessoal. Isso significaria a extinção da autarquia.
Uma
possibilidade que consta do projeto do Novo Código da Mineração (PL
5.807/13), enviado ao Congresso pelo governo federal há cinco anos. Na
Câmara, o relator da matéria, deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG), fez
várias mudanças no texto, e após a análise, ainda sem previsão, o
projeto será analisado no Senado Federal.
A Comissão de Minas e Energia da Câmara, que se posicionou
a respeito, também vê a transformação da autarquia em agência como
forma de minimizar a influência política, situação já reportada pela
Pública.
Mônica Beraldo, economista aposentada do órgão e atual vice-presidente da Federação Nacional dos Economistas, diz: “Só com tragédias é que lembram que o DNPM existe”. Mônica
trabalhou no DNPM-sede, em Brasília, por mais de 30 anos, e avalia que a
paulatina degradação do órgão se deve a inúmeros fatores, mas o
principal deles reside na questão da política de cargos, que tornou a
autarquia uma gangorra de interesses partidários, sem valorizar a
capacitação do corpo técnico.
Oficialmente, o DNPM em Brasília não retornou os pedidos
de entrevista com o diretor de fiscalização do órgão, Walter Arcoverde,
nem forneceu informações pedidas sobre a situação de minas abandonadas e
paralisadas no país, e qual o posicionamento da autarquia em relação à situação retratada em Minas Gerais no relatório da Feam.
Somente por meio da Lei de Acesso à Informação, a
Pública
obteve a lista das minas paralisadas em Minas Gerais entre 2015-2016,
mas sem detalhamentos se estão ou não controladas ambientalmente. De
acordo com a
listagem,
755 áreas estão paralisadas no estado, entre elas a mina Alegria, da
Samarco S.A., na região de Mariana. Outras demandas de acesso à
informação foram negadas à
Pública com base no Art. 13 da lei. Veja aqui a
resposta.
A tragédia espreita
De Belo Horizonte até Rio Acima são 35 km. Com pouco mais
de 9 mil habitantes, a história do município está ligada à rota de
exploração do ouro. É lá que fica a mina do Engenho D’Água, de
responsabilidade da Mundo Mineração Ltda., uma subsidiária brasileira da
australiana Mundo Minerals Ltd., que chegou para explorar o minério em
2008, quando obteve a sua primeira licença de operação, válida até 2012.
Foi quando os donos sumiram, deixando para trás duas barragens de
rejeitos num cenário com carros enferrujados e produtos químicos mal
armazenados.
A primeira das bacias de rejeitos, que fica acima da
segunda, está com a capacidade de armazenamento esgotada e assoreada até
a borda faz três anos. A segunda tem segurado os rejeitos da primeira,
sobretudo no período chuvoso, mas também é motivo de preocupação, já que
o potencial de risco contaminante da mineração de ouro é muito maior
que a do ferro.
“O ouro possui resíduos muito mais perigosos, como o
cianeto de sódio, ácido cianídrico, arsênio e mercúrio”, explica a
ambientalista Daniela Campolina, do Movimento pelas Serras e Águas de
Minas. “O cianeto de sódio usado no beneficiamento do ouro tem padrões
de toxidade elevado, e a ingestão de 1 mg por quilo é suficiente para
matar uma pessoa”, afirma.
Em setembro de 2014, o MPF recomendou ao DNPM e à Feam a
adoção de medidas para conter o problema, já que a mineradora não
cumpria suas obrigações legais mesmo recebendo autos de infração em
razão de descumprimento de condicionantes e afronta à legislação
ambiental.
À época, o procurador da República José Adércio Leite
Sampaio, atualmente na força-tarefa que investiga os acontecimentos do
rompimento da barragem da Samarco, esclareceu que os “acionistas
majoritários da Mundo Mineração simplesmente desapareceram do território
nacional”. O procurador afirmou que, “diante da ausência do
empreendedor”, caberia ao DNPM e à Feam a manutenção do sistema de
contenção da mina, “sob pena de nos depararmos em breve com outra
tragédia”.
Ele se referia ao rompimento do talude da barragem B1, na
mina Retiro do Sapecado, da Herculano Mineração, que deixou três mortos e
um ferido dias antes de a vistoria do DNPM apontar o sucateamento da
Engenho. O acidente da mina Retiro aconteceu quando seis funcionários
trabalhavam na manutenção da barragem e foram surpreendidos pela lama e
rejeitos de minério. A Herculano Mineração já havia sido autuada uma
dúzia de vezes pelo Ministério Público, inclusive por falta de programas
de gerenciamento de risco.
No caso da Engenho, o pedido do MPF parece não ter surtido
o efeito necessário, tanto que em janeiro deste ano o Movimento pelas
Serras e Águas de Minas reforçou as denúncias de abandono junto ao
próprio Ministério Público, Feam e DNPM. Os ativistas enviaram fotos e
vídeos
do local, que mostram que após dias de chuva na região a situação das
barragens se deteriorava ainda mais.
Além disso, a área abriga produtos
de alto risco, “no mesmo estado de abandono que o restante do
empreendimento”, afirmou a Feam. A lista inclui tanques de gás (GLP),
galões de ácido clorídrico, cianeto e soda cáustica, hidróxido de sódio,
peróxido de hidrogênio, metabissulfito de sódio e sulfato de cobre.
Fazenda Velha: região tombada em Rio Acima (MG) onde a Vale quer fazer nova barragem de rejeitos
A última vistoria, em janeiro, registrou o que já se
sabia: abandono e risco ambiental iminente. A barragem “encontrava-se
com acúmulo de água devido às constantes chuvas ocorridas nos dias
anteriores”, disse o órgão, que constatou que “não havia bordas livres”
em alguns trechos do talude da barragem, o que significa que a água não
poderia ser contida, o que causaria “transbordamento”.
Em nota enviada à Pública, a Feam disse que serão
feitas obras emergenciais de reforço da drenagem entre a primeira
barragem e a segunda. “Esta intervenção visa reforçar a segurança das
estruturas até o fim do período chuvoso”, previsto para o fim deste mês.
O cronograma para a realização das obras e o fechamento da mina será
definido também em março.
O mais grave é que as barragens da mina de Engenho ficam
próximas ao córrego do Vilela, afluente da bacia do rio das Velhas,
localizado a 8 km do ponto de captação de água da Bela Fama, da
companhia de saneamento (Copasa) que abastece 70% de Belo Horizonte e
40% da região metropolitana. “Os impactos nos recursos hídricos, com
potencial de alteração da qualidade das águas, seria muito grande”,
afirma a ambientalista Daniela Campolina.
Na recomendação do Ministério Público, José Adércio já
alertava para o “risco à vida das pessoas que moram a jusante [termo
técnico para “abaixo”] das barragens, especialmente na localidade
denominada Honório Bicalho”. Além disso, uma
auditoria técnica
feita três anos antes recomendava “executar urgente um plano de
descomissionamento e paralisação imediata de lançamentos de rejeitos no
reservatório”.
No mesmo distrito de Nova Lima, a região de Honório
Bicalho, a 10 km de Rio Acima, já tinha sofrido com o rompimento da
barragem Rio das Pedras em 1997, que contaminou com lama o rio das
Velhas ao longo de 82 km.
A região fica no chamado quadrilátero
ferrífero, dominada pela Vale S.A., que planeja construir uma nova
barragem de rejeitos de minério de ferro na área da “Fazenda Velha”,
zona de mil hectares que faz a transição entre os biomas da Mata
Atlântica e do Cerrado. O local foi tombado provisoriamente pelo
município de Rio Acima por seu valor paisagístico, arqueológico e
natural, o que tem canalizado disputas acirradas pela liberação da área
para a mineração.
Se o plano da Vale S.A. se concretizar, a capacidade da
megabarragem pode ser de 600 milhões de metros cúbicos, ou seja, muitas
vezes maior que a de Fundão.
Esse empreendimento faria parte do complexo
minerador Vargem Grande, que possui atividades em Nova Lima e em
Itabirito, na região central. “A área tombada pode ser revertida por
pressões da Vale S.A. e de políticos do município, então estamos
acompanhando de perto”, diz o ambientalista Paulo Rodrigues, do
Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela.
Serra do Gandarela ameaçada
Uma das hipóteses do sumiço dos responsáveis da Mundo
Mineração Ltda. remete justamente à disputa travada pela criação do
Parque Nacional da Serra do Gandarela, movimento do qual Rodrigues faz
parte. “Quando soubemos da existência de outro megaprojeto da Vale S.A.,
chamado mina Apolo, criamos em 2007 o movimento de preservação da serra
do Gandarela, por causa da sua importância hídrica fundamental não só
por conta da região metropolitana de Belo Horizonte, mas também para a
outra vertente, que é o rio Doce”, explica.
Localizado nos municípios de Caeté, Santa Bárbara, Barão
de Cocais, Rio Acima, Itabirito e Raposos, o Gandarela integra o
conjunto da Reserva da Biosfera do Espinhaço, uma das últimas grandes
reservas naturais intactas de Minas. Segundo Rodrigues, a região é “a
última de grande relevância hídrica que ainda não foi degradada pela
mineração de ferro”. Em 2014, a presidenta Dilma Rousseff decretou a
criação do Parque sob críticas de que o projeto que norteou os limites
da área atenderia muito mais aos interesses econômicos das mineradoras
do que aos ambientais de preservação.
Já em 2001, uma notícia se referia à “demora” dos governos
estadual e federal em definir a área de abrangência do parque como
entrave aos negócios da Mundo Mineração de obter a licença para uma nova
mina em Rio Acima, denominada Crista, que ajudaria a diluir os altos
custos operacionais da Engenho, viabilizando a operação conjunta.
Ronisdalber Bragança, ex-gerente administrativo financeiro da Mundo, deixou o posto em 2010. Ele contou à Pública
que a Engenho fora a primeira operação do grupo australiano no Brasil,
que teve as negociações iniciadas em 2006, com investimentos de US$ 28
milhões, sendo R$ 11 milhões na mina e US$ 17 milhões na planta
metalúrgica de tratamento do minério. Antes, o local havia sido objeto
da exploração da sul-africana AngloGold Ashanti.
À época, a estimativa é
que fossem extraídas 2,8 mil onças por mês, o equivalente a 80 kg, o
que garantiria um faturamento de US$ 45 milhões anuais. O ex-gerente diz
que toda a produção era destinada ao mercado externo.
Segundo Bragança, a mina da Crista era apenas uma forma de
compensar perdas econômicas na Engenho, e a questão do Parque Gandarela
era um empecilho, mas não a causa da inviabilidade do negócio. Por
pressão da Mundo Mineração, que alegava ter de demitir funcionários
imediatamente, a região da Crista não foi incorporada à área final do
Gandarela.
“Na realidade o que se extraía de ouro, na prática, não
chegou a ser igual àquilo que se tinha no papel em termos de projeto. Se
imaginou que fosse ter uma extração maior do produto final, mas o teor
era baixo”, diz o ex-funcionário. Ele não sabe precisar, mas
exemplifica: “Imagine que o projeto prevê 4 gramas de ouro por tonelada
de minério, mas na prática você tinha 2,5 gramas por tonelada. É
prejuízo”.
Outro ex-funcionário da empresa ligado ao alto escalão, o
australiano Michael Schmulian, era o engenheiro responsável técnico pela
Engenho até o final de 2009. Ele recorda que os donos “eram 4 mil”
acionistas da empresa na Bolsa de Valores da Austrália. “Tipo a Vale, só
que bem menor”, compara. Ele não sabe dizer, no entanto, o que
aconteceu depois de sua saída. “Eu fiquei totalmente por fora, soube que
por causa de dívidas altas a mina fechou.”
Asley Pattinson, CEO da Minera Gold até o ano passado (Foto: Reprodução)
Além do Brasil, a Mundo Minerals fazia mineração de ouro
no Peru e até o ano passado mantinha suas atividades minerárias sob novo
nome, alterado em 2012, quando passou se chamar Minera Gold Ltd. No
entanto, os controladores do empreendimento são os mesmos, em especial o
australiano Asley Pattison, CEO da Minera Gold até o ano passado.
Em 2014, ou seja, dois anos após o abandono da mina do Engenho, um
documento
direcionado a potenciais investidores da Minera Gold Ltd. dizia que
foram investidos US$ 50 milhões no Brasil e as minas do Engenho e da
Crista ainda eram usadas como chamariz para atrair os interessados.
“Todos os obstáculos políticos e regulatórios foram superados”, afirmava
um dos itens da apresentação de Asley.
Por outro lado, o
relatório anual da empresa de dezembro de 2013 afirmava que, naquele ano, a Minera Gold assinara um acordo de
joint venture com
um novo investidor privado. O novo sócio aportaria perto de US$ 5
milhões ao longo de 12 meses para ganhar uma participação de até 60% na
Mundo Mineração Ltda.
O texto anunciava ainda que “o investimento irá
fornecer fundos suficientes para cumprir as obrigações de pagamento do
processo de recuperação judicial” e que “desde junho de 2013 a companhia
não era mais responsável pelo financiamento de capital de giro
brasileiro”, portanto já não “consolidava a entidade brasileira” para os
seus resultados financeiros.
Em um
documento
mais recente, de setembro do ano passado, a empresa australiana de
consultoria Ferrier Hodgson fez um inventário da Minera Gold e conclui
que o negócio não vai bem. Um
organograma
do mesmo documento confirma as ligações jurídicas entre as empresas
Mundo Minerals e Minera Gold. Em nenhum trecho o relatório esclarece que
a mina do Engenho está abandonada no Brasil. Afirma somente que foi
“interrompida” e que houve um pedido de recuperação judicial em 2012.
Procurado pela reportagem, Asley Pattison não retornou o contato até o
fechamento da matéria.
Há registros de que, de junho de 2010 a junho de 2011, a
mina do Engenho produziu 18,239 onças de ouro, ou seja, perto de 500 kg
do minério. As receitas foram da ordem de US$ 25 milhões, valor que
provavelmente foi distribuído entre os acionistas.
Quem assume, afinal?
Após o pedido de recuperação judicial em 2012, a empresa
demitiu funcionários e deixou um passivo de dívidas com fornecedores e
ex-funcionários que se arrasta até hoje. O representante brasileiro mais
citado em documentos e ações judiciais é Júlio César Ferreira da Rocha,
engenheiro de minas formado pela Universidade Federal de Minas Gerais,
que não foi localizado pela reportagem. A apuração, no entanto, indica
que seu último registro de trabalho conhecido é na cidade de Paracatu,
pela Votorantim Metais.
De acordo com a Lei Federal 12.334, sancionada há seis
anos, a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) deveria se
aplicar ao caso da Mundo Mineração, justamente por se referir a questões
que envolvem a sustentabilidade e o alcance de seus potenciais efeitos
sociais e ambientais. Além disso, o PNSB considera nas suas fases a
desativação e uso futuro do empreendimento minerário.
Como relatado, é papel do DNPM fiscalizar as atividades de
pesquisa e lavra para o aproveitamento mineral e as estruturas
decorrentes dessas atividades. A.A.R, do DNPM-Minas, no entanto, afirmou
que o órgão “não tem condições” de descomissionar o empreendimento.
Oficialmente, o DNPM não respondeu ao pedido de informações sobre o caso
em questão.
No que diz respeito às atribuições da Feam, toda empresa
que possui barragens no estado deve entregar anualmente um Relatório de
Auditoria, feito por uma empresa independente, contratada pela empresa.
“Como a Mundo Mineração abandonou a área e não atendeu mais suas
obrigações legais e regulamentares, o Estado judicializou a questão”,
informou a Feam. Mesmo condenada, a empresa não cumpriu as medidas
indicadas que visavam à segurança da estrutura.
Uma
Ação Civil Pública ajuizada
em dezembro de 2014 pelo Ministério Público contra o Estado, de autoria
da promotora da comarca de Nova Lima, Andressa Lanchotti, registra que o
DNPM informou que as barragens não foram cadastradas e por isso não
estavam classificadas no PNSB. “Durante a presente vistoria [2013] não
foi possível auditar os planos de segurança das barragens do
empreendimento, pois nenhum representante da empresa foi encontrado”,
afirmou o DNPM.
Mina do Engenho: abandonada pelos empresários sem qualquer cautela (Foto: Reprodução)
Além disso, a Mundo Mineração não apresentava declaração
de estabilidade das estruturas ao órgão desde 2011, situação similar ao
ocorrido com a Feam, que tem registro de relatórios de auditoria da
empresa de 2009 a 2011, e depois em 2014. Neste último, o parecer diz:
“atividades suspensas e a estabilidade tem restrições, pois devem ter
medidas emergenciais a serem executadas até o início do período
chuvoso”, o que não foi feito. O parecer diz ainda que era preciso
“executar bloqueio de infiltração da drenagem nos diques”, justamente
para evitar contaminação fora dos seus limites.
No que se refere à responsabilidade civil do Estado, o
texto da ação cita a “falta de fiscalização adequada e eficiente, bem
como associada a vícios e irregularidades no licenciamento ambiental”.
Por isso, o Estado seria solidário “com os empreendedores pelos danos
ambientais ocasionados”.
Existem ainda relatos não confirmados de que houve um acidente em 2010. Segundo um
documentodo
Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas a um conselheiro da Área
de Proteção Ambiental do Sul da Região Metropolitana (APA Sul), foi
“exagerada a rapidez” com que se pretendia licenciar a segunda barragem
da Mundo Mineração.
Segundo o ofício, “em relato de conselheiros da APA Sul, a
empresa disse que utilizou água oxigenada para neutralizar os efeitos
do cianeto que vazara da barragem vertendo para o dique de contenção e
possivelmente para o curso d’água que flui para o Rio das Velhas” e que a
mineradora “não teria mostrado segurança em demonstrar os procedimentos
típicos de um plano de contingenciamento em caso de acidente”.
O valor
previsto pelo Departamento de Obras Públicas de Minas Gerais (Deop) para
descomissionar a mina do Engenho é de R$ 500 mil.
Da
Agência Pública, in
EcoDebate, 01/04/2016
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