*Por Leila Salim
“Não temos mais tempo para ineficiência”. O pernambucano Sérgio Xavier, nomeado recentemente coordenador-executivo do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC), assume o cargo com um duplo desafio: reconstruir a estrutura, desmontada nos últimos quatro anos, e ao mesmo tempo agir com a urgência imposta pela emergência climática. Convocado e presidido pelo Presidente da República, o FBMC tem a função de assessorar o chefe do Executivo na agenda climática e fazer a interlocução com a sociedade civil.
Xavier assume um colegiado desacreditado e sem capacidade de mobilização, resultado de seis anos de descaso sob Dilma Rousseff (2011-2016) e de um fechamento branco no governo passado (2019-2022). Ele diz que pretende reformular a estrutura “estática” do fórum e adotar um modelo em rede, com mais participação e agilidade para apresentação de medidas concretas.
Jornalista de formação, Sérgio Xavier é desenvolvedor de projetos inovadores de baixo carbono e criador dos laboratórios de Economia Regenerativa do Arquipélago de Fernando de Noronha, da Caatinga e do Rio São Francisco. Foi Secretário de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Estado de Pernambuco (2011 a 2017) e atuou nos últimos anos no Centro Brasil no Clima (CBC), onde articulou o movimento Governadores Pelo Clima juntamente com Alfredo Sirkis (1950-2020), buscando acelerar a implementação do Acordo de Paris nos estados.
Em 2014, o pernambucano foi o principal articulador da entrada de Marina Silva na chapa de Eduardo Campos (1965-2014), levando a então ex-ministra para o PSB. Com a morte do ex-governador num acidente aéreo, Marina assumiu a cabeça da chapa e teve 22 milhões de votos.
Nesta entrevista ao OC, ele discute as prioridades da agenda climática brasileira, os desafios para ações de mitigação e adaptação e defende a criação de uma agenda econômica alternativa como crucial para o enfrentamento da crise climática.
O senhor assume a coordenação do FBMC em um momento de reconstrução da agenda climática brasileira. Ao mesmo tempo, a ciência enfatiza a urgência da ação climática, nesta década que é considerada decisiva para o cumprimento do Acordo de Paris. Como equilibrar reconstrução e a necessidade de ações concretas?
É a economia que desmata, que mata, polui e envenena, e é também a economia que pode regenerar, recompor, incluir e reduzir pobreza. E o segundo desafio é justamente a governança: criar sistemas que integrem esse conjunto de aspectos e que simplifiquem isso. No novo modelo do FBMC, estamos criando um conjunto de inovações para descentralizar, ter mais capilaridade e mais participação. A ideia não é ter um colegiado que concentre decisões; pelo contrário, é espalhar pelo Brasil um conjunto de metodologias que possam agregar setores diversos que estão sem se comunicar.
O presidente Lula anunciou a revisão da “pedalada climática” na NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada], a meta do Acordo de Paris, e também a elaboração de uma nova NDC brasileira, que seja “compatível com a volta do país ao cenário da agenda climática”. O que deve nortear a contribuição e compromissos brasileiros e como o Fórum atuará nesse sentido?
A correção da NDC é uma questão de honra. Essa maquiagem toda que foi feita não é só algo ruim para a imagem e a credibilidade do Brasil, mas também muito ruim para a nossa vida real. Não temos mais tempo para viver de ilusões, de negacionismos, maquiando números, porque a realidade já está aí à nossa porta, os eventos extremos já estão acontecendo — inclusive com muita força no Brasil.
A NDC é uma prioridade, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima está trabalhando fortemente nisso e vai ser um dos pontos prioritários da nossa agenda de trabalho do fórum, buscando mobilizar a sociedade não só para discutir esse aprimoramento, as correções e dar mais ousadia em relação à NDC, mas também implementar ações que possam garantir o cumprimento da NDC. E o Brasil talvez seja o país com mais facilidade pra cumprir sua NDC, por conta do desmatamento.
Conseguimos atingi-la se barrarmos o desmatamento, se houver processo de recuperação, de investimento em agricultura de baixo carbono e em tecnologia e produtividade. Note que tudo isso são coisas positivas, que não só são importantes para a questão climática, como para a qualidade de vida, da economia, para a sustentabilidade futura desses processos de produção e de consumo. O Brasil é um país que tem todas as chances de liderar no planeta essa mudança da economia, e fazendo isso de forma a até ultrapassar o que foi estabelecido na sua NDC.
Em evento internacional recente, Lula foi enfático ao defender uma governança global para o clima e que os países ricos cumpram sua promessa com os US$ 600 bilhões até 2025 para financiamento climático. Além da contribuição nacional, qual o papel o Brasil deve desempenhar na agenda internacional do clima?
Justiça climática é uma expressão-chave para guiar as negociações e relações internacionais. A justiça climática precisa ser uma referência do ponto de vista das responsabilidades dos países. Os países ricos, que poluíram por muito mais tempo o planeta e, inclusive, depois que a ciência apontou o processo de aquecimento global, eram os países que mais podiam liderar essas mudanças e procedimentos para reverter o quadro e são países que estão, até hoje, atrasados.
O Brasil pode liderar através da chave da justiça climática, porque é um grande emissor e pode apontar que está fazendo sua parte, regenerando florestas, buscando o desmatamento zero, criando economia de baixo carbono. Pode apontar, por um lado, o quanto está contribuindo com todo esse esforço e, por outro, o quanto é vítima de problemas gerados por outros países, os países mais emissores do planeta. O presidente Lula pode ser um grande articulador internacional nesse processo e a noção da justiça climática é o ponto de referência para guiar os acordos daqui pra frente.
Quais são as principais propostas e perspectivas para a reconstrução do FBMC?
O FBMC vai passar por uma reformulação, um aprimoramento, uma revolução dentro do contexto da nova governança climática que o governo federal está desenhando. A ideia é que se faça algo em rede, descentralizado, com fluxo organizado, que saia da base da sociedade para a mesa do Presidente da República, que é o presidente do fórum, de maneira organizada, com respaldo da sociedade, da ciência, com viabilidade de empreendimento e com concordância da comunidade.
Os fóruns são, geralmente, estruturas muito estáticas, com reuniões periódicas para discutir todos os assuntos em uma única agenda, o que acaba gerando uma ineficiência muito grande — e não temos mais tempo para isso. A ideia é ter núcleos locais espalhados pelo país, para discutir questões e vocações específicas, debater seus desafios e ter ali um microambiente com universidade, comunidade, empresas, ONGs e governo local discutindo soluções imediatas para reversão da economia e adaptação.
Essas propostas serão encaminhadas para uma Câmara de Sistematização, de onde sairão os produtos finais. Essa junção de ideias será transformada em uma política nacional (ou encaminhada para os estados e municípios, no caso de políticas locais). O que estou falando aqui mobilizaria muita gente no Brasil, com muita participação, mas com um fluxo organizado. Criaremos um padrão de encaminhamento, as propostas tem que seguir dentro de padrão muito eficiente para que haja facilidade de análise, para que ideias se transformem em uma política organizada.
Há a ideia de criar requisitos, como, por exemplo, a participação de ao menos dois setores (entre universidade, comunidade, ONGs, governos, empresas) por núcleo para formular as propostas. Aproveitaremos a experiência do nosso trabalho no sertão de Alagoas e da Bahia, na cooperativa de créditos de carbono, na qual temos discussões integradas entre membros da universidade, governo do estado, prefeituras, agricultores familiares, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, técnicos especializados.
O anúncio da realização da COP30 em Belém em 2025 gerou entusiasmo e, também, apreensão em paraenses e na sociedade civil brasileira. O Pará lidera o ranking de desmatamento na Amazônia e a cidade de Belém sofre com problemas de infraestrutura. Quais as perspectivas para a realização da COP no Brasil?
É muito importante (e o próprio presidente Lula tem falado isso) que se conheça a Amazônia, para que se entenda não só os problemas, mas também as potencialidades, além de ver o quanto é complexo fazer essa virada, a transição de um modelo degradador para um modelo regenerativo. Por outro lado, isso pressiona o Brasil a fazer o seu dever de casa.
No caso do Pará, que é um grande emissor de CO2, a COP faz com que as atenções se voltem para isso. Nós temos interagido com o governador Helder Barbalho e sentimos que há uma preocupação em mostrar que as ações estão sendo feitas. Além disso, é claro, a organização da COP requer investimentos que vão ser aportados no Estado e que podem ajudar muito nessa aceleração. E a sociedade civil brasileira tem um papel fundamental, não só nesse processo preparatório, mas também durante a Conferência.
Vai ser uma oportunidade de mais pessoas do Brasil participarem com peso poderem pressionar para que o mundo olhe para a Amazônia de forma colaborativa e não apenas com cobranças. É uma oportunidade para que tenhamos investimentos rápidos, com volumes adequados e projetos bem elaborados, porque o desafio não é apenas ter o dinheiro, mas também ter bons projetos.
O perfil de emissões brasileiro é puxado pelo desmatamento. O governo apresentou o novo Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e anunciou a elaboração de planos para todos os biomas. Quais os principais desafios para prevenção e controle do desmatamento e como o Fórum atuará nessa pauta?
Estou convicto de que só conseguimos envolver as pessoas de forma prática quando criamos em seus cotidianos atividades econômicas que sejam protetoras do meio ambiente. É preciso apresentar rapidamente modelos de negócios, não só na Amazônia mas em todos os biomas, que mostrem que é melhor e mais rentável, seguro e sustentável, olhando para o futuro daquele emprego, quando se faz a atividade de forma sintonizada com os ciclos da natureza, e não na contramão.
Mesmo que o desmatamento puxe o nosso perfil de emissões, há desafios também na área de energia. Recentemente, a discussão sobre exploração de petróleo na Foz do Amazonas colocou na ordem do dia o debate sobre a exploração de combustíveis fósseis no Brasil. Qual o papel do fórum na discussão sobre desfossilização e transição energética brasileira?
É uma oportunidade grande juntar acadêmicos e empreendedores de ponta, aqueles que já sabem que é a energia renovável que vai ser fundamental daqui pra frente, que entendem que o petróleo está em decadência e precisa sair de cena, porque já passou do seu limite, e apontar saídas. Um exemplo é a questão do Estado do Amapá, que pode atrair investimentos muito mais rapidamente nos setores de carbono e bioenergia, considerando a energia da floresta.
Eu fiz um trabalho em Macapá anos atrás para tratar do grande problema que são os resíduos de açaí: da fruta, só se aproveita 2% para se fazer a polpa, e o restante vira lixo. Lá, existe um potencial de geração de energia a partir desse material que é descartado, gerando bioenergia, o que melhoraria a cadeia produtiva, geraria energia e reduziria custos. Estou dando esse exemplo justamente por conta do debate sobre os campos de petróleo na Foz do Amazonas.
O estado pode atrair investimentos muito mais rapidamente, muito mais benéficos para a população, que gerariam muito mais empregos para a população local e, diferentemente de um poço de petróleo, não demoraria anos para ser viável comercialmente. Acho que esse tipo de discussão vai ser muito interessante no fórum, porque ali teremos gente da ciência, do mercado, das ONGs, estudiosos especialistas no assunto, juntos, discutindo soluções para esses desafios.
Quando mostramos as viabilidades e possibilidades de resultados rápidos com modelos verdes, regenerativos e de baixo carbono, é a melhor estratégia para fazer a transição. E isso precisa ser planejado, porque hoje há pessoas que vivem do setor de petróleo e é preciso um plano de migração de processos fósseis para biocombustíveis e outros tipos de fontes de energia. A Petrobrás tem uma diretoria de transição energética e está olhando para isso.
O fórum pode ter um papel muito importante de chamar os diversos setores para formular soluções equilibradas, sem partidarização e ideologização superficial. Quando se mostram soluções econômicas que podem gerar empregos imediatos, trazer investimentos e serem sustentáveis, e se mostra que a opção fóssil está ultrapassada, a discussão fica mais fácil.
O mega El-Niño que já está tendo seus primeiros efeitos no mundo traz a possibilidade de consequências graves também no Brasil. A ministra Marina Silva defende a criação de um plano nacional de adaptação para eventos climáticos extremos, que utilizaria dados de monitoramento do Cemaden para decretar antecipadamente emergência climática em áreas específicas que concentrem populações em áreas de risco. Qual a importância da adaptação na política climática brasileira?
O MMA já tem uma base desse plano nacional de adaptação, e já estamos estudando como fazer a discussão. O fórum vai trabalhar com os dois eixos, mitigação e adaptação. A mitigação tem muitas oportunidades na economia e também pontos críticos, para que não se gere colapsos nos setores que precisam reduzir suas participações, como carvão e petróleo. É preciso um plano muito cuidadoso para fazer a transição de empregos e contratos, considerando o que deve crescer na economia, o que deve ficar estável e o que deve decrescer.
Até pouco tempo, economistas falavam apenas em “crescimento” dos setores econômicos, e hoje há uma exigência concreta de que se fale no que precisa decrescer, como a indústria do petróleo, que não pode mais expandir. O PIB verde tem que crescer muito rapidamente e com qualidade, e o PIB fóssil tem que cair — esse é o caminho. Vamos trabalhar nos eixos de mitigação e adaptação observando oportunidades na economia. No caso da adaptação, o Serviço Geológico do Brasil já identificou que há oito milhões de pessoas em lugares de risco no país, com problemas que precisam ser resolvidos muito rapidamente. Isso tudo exige planos de adaptação, de remoção, de reurbanização.
Os planos precisam dizer o que tem que ser feito, mas também juntar forças, instituições e diversos atores para definir como isso vai ser feito de forma rápida, de onde virão os recursos, como serão as parcerias nos diversos níveis de governo.
*Entrevista publicada originalmente em 07/07/23 no site do Observatório do Clima
Foto de abertura: arquivo pessoal