A COP16 da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) da ONU - a maior já realizada, com mais de 23 mil inscritos - aprovou, na madrugada de sábado (2/11), a criação de um órgão subsidiário permanente para garantir participação e direitos dos povos indígenas e comunidades locais nos debates globais sobre clima e meio ambiente.
Os quase 200 países reunidos em Cali, na Colômbia, também reconheceram pela primeira vez o papel das comunidades afrodescendentes, que no Brasil incluem os quilombolas, na preservação e no uso sustentável da natureza.
Indígenas, afrodescendentes e brancos celebram a criação do órgão que garante participação e direitos nos debates globais de clima e meio ambiente
Fotos (acima e abaixo): COP16/divulgação
“Adotamos uma decisão histórica e inédita que finalmente tira da invisibilidade as comunidades afrodescendentes que, com seus costumes, nos ajudam tanto a preservar a biodiversidade e a natureza, os bosques, os rios, e tudo aquilo de que dependemos”, disse Maria Angelica Ikeda, diretora de Meio Ambiente do Ministério das Relações Exteriores, ao lado da ministra Marina Silva e de João Paulo Capobianco, secretário-executivo do Ministerio do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
Susana Muhamad, ministra de Meio Ambiente da Colômbia e presidente da COP16 (na foto acima), destacou a parceria das delegações brasileira e colombiana, duas das principais responsáveis pelas negociações sobre o tema. “Este é o segundo gol desta parceria da COP16 em Cali com a COP30 em Belém. Não estamos competindo como no futebol, mas estamos fazendo gols juntos”, afirmou a ministra colombiana
Em seu Instagram, Muhamad escreveu: "Com este fato, a COP16 reconhece o valor dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, afrodescendentes e comunidades locais e salda uma dívida histórica de 26 anos na CDB (no final deste post, assista ao vídeo da celebração que a ministra colombiana publicou na rede).
O Brasil também coliderou os debates para a criação do órgão subsidiário para povos indígenas e comunidades locais, o que garantirá maior representatividade e participação aos grupos na conferência. A COP da Biodiversidade tem outros dois órgãos similares: um científico e outro focado na implementação de decisões.
O novo grupo substitui o grupo de trabalho temporário e, a partir de agora, vai orientar tecnicamente os acordos e as negociações sobre biodiversidade.
Os acordos reforçam o Artigo 8(j) do Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal da CDB, que aborda conhecimentos tradicionais, inovações e práticas e terá um novo plano de trabalho, com medidas para reforçar sua implementação.
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NOTA DO CONEXÃO PLANETA
Até quinta-feira (31), a aprovação do plano referente a esse artigo estava emperrada porque exigia a aprovação de um órgão subsidiário e a Rússia e a Indonésia se opuseram. Mas, finalmente, o bom senso venceu.
Segundo a ministra Sonia Guajajara, “o Brasil foi fundamental no processo de articulação com os países que se posicionaram contra a criação do grupo subsidiário e conseguimos esse importante conquista que representa a participação e o protagonismo dos povos indígenas na orientação dos acordos e negociações sobre a biodiversidade”.
E ela ainda acrescentou: “A gente sempre está avançando no diálogo e em toda essa interação dos povos indígenas, comunidades locais, afrodescendentes, pra que a gente possa aumentar a participação de quem realmente está ali, no dia a dia, lutando para proteger a biodiversidade”.
Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil (foto ilustrativa)
Fundo de Cali, áreas marinhas e COPs integradas
A COP16 aprovou ainda a criação do Fundo de Cali, mecanismo voluntário para a repartição de benefícios gerados pelo uso de recursos genéticos e da correspondente informação de sequência digital.
O acordo também “convida” os países a tomarem medidas legislativas ou recorrerem a outros recursos para demandar as contribuições.
Na prática, o fundo servirá para compartilhar benefícios de um determinado conhecimento com quem o originou. As regras aprovadas indicam que companhias farmacêuticas, de cosméticos e de suplementos alimentares, entre outras empresas que se beneficiam comercialmente do uso desses materiais, devem contribuir com 1% do lucro ou 0,1% da receita.
O mecanismo abre exceções para pesquisas acadêmicas, de instituições públicas e organizações que usam as informações de sequência digital, mas não se beneficiam financeiramente delas.
A expectativa é que ao menos metade dos recursos do fundo apoie povos indígenas e comunidades locais, seja por meio de governos ou por pagamentos diretos via instituições selecionadas por esses povos.
Entre outros pontos, a conferência decidiu também adotar novo processo para identificação de áreas marinhas ecológica ou biologicamente significativas (EBSAs, na sigla em inglês), que são as partes mais críticas e vulneráveis do oceano.
A resolução ajudará no processo de reconhecimento de áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade marinha com base nas informações científicas mais recentes.
Houve também acordo para que os países enviem propostas e temas de interesse para programas de trabalho conjunto entre as COPs da Biodiversidade, do Clima e de Combate à Desertificação.
O secretariado da CBD irá compilar as sugestões para que sejam avaliadas e debatidas pelos países em reuniões futuras.
Sem acordo para financiamento
A COP16, contudo, foi interrompida – já na prorrogação – após os países ricos bloquearem a discussão sobre um novo fundo para a biodiversidade depois de mais de 20 horas de plenária final.
A criação do mecanismo foi acordada há 32 anos, quando a CDB foi criada junto com as convenções do Clima e de Combate à Desertificação na Rio 92.
Até que o fundo para a biodiversidade, sob administração da COP fosse implementado, concordou-se que o Fundo Global de Meio Ambiente (GEF, na sigla em inglês), exerceria provisoriamente este papel. O arranjo, contudo, permanece há três décadas.
Países em desenvolvimento, que concentram a biodiversidade do planeta, demandam a criação de um novo instrumento, mais representativo de suas demandas e com governança paritária.
No GEF, países em desenvolvimento precisam fazer rodízio de assentos, enquanto as nações doadoras têm assentos fixos. Dezesseis países africanos têm um voto, por exemplo, e Brasil e Colômbia — os dois países com mais biodiversidade no planeta — dividem uma cadeira com o Equador.
Além disso, os países em desenvolvimento defendem o cumprimento do compromisso dos países desenvolvidos de doar US$ 20 bilhões ao ano até 2025 para a proteger a biodiversidade e reverter sua perda. O valor doado até o momento não chega a 2% do prometido.
A delegação brasileira pediu a palavra após representantes de países e blocos desenvolvidos rejeitarem o texto apresentado pela presidência da COP.
“Sim, esta COP fez história”, disse Ikeda, referindo-se às decisões sobre povos indígenas e comunidades afrodescendentes, por exemplo. “Mas precisamos de recursos (...). Estamos aguardando pela promessa do mecanismo do artigo 21 desde a COP1. Estamos na COP16 sem criar o mecanismo financeiro”.
A diplomata questionou o porquê de discussões relacionadas ao orçamento da CDB e indicadores de monitoramento quando os países ricos se recusam a debater os meios necessários para implementar as metas da convenção.
“Tínhamos que começar a fazer essas discussões no começo da COP. Temos que ter decisões que garantam, pela primeira vez, os recursos que precisamos. E depois podemos discutir as obrigações”, reclamou Ikeda. “Minha delegação não está pronta para discutir nada mais até termos uma solução para isso”, completou, sob aplausos de países em desenvolvimento.
A delegação panamenha, em seguida, pediu contagem do quórum, que não chegou aos dois terços necessários para que a COP continuasse. A conferência foi suspensa até uma data futura.
A delegação brasileira na COP16 foi liderada pela ministra Marina Silva e, além do MMA, e contou com a participação de representantes dos ministérios das Relações Exteriores, dos Povos Indígenas, da Igualdade Racial, entre outros órgãos federais.
A seguir, assista à declaração da ministra Sonia Guajajara e também à celebração ao final do debate que culminou com a criação do órgão subsidiário do Artigo 8J para povos indígenas e comunidades locais; o reconhecimento dos povos afrodescendentes como guardiões da biodiversidade no acordo; e o estabelecimento do programa de trabalho para essas comunidades até 2030 (os vídeos a seguir foram incluídos no texto pelo Conexão Planeta).