- quinta-feira, 20 outubro 2016 22:35
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Não perdi o juízo (mais que o normal) durante a viagem para a Eslovênia, nem fumei alguma coisa proibida além da conta. Mas ter de se tomar decisões sobre a vida ou morte das baleias conforme as normas de uma Convenção escrita em 1946, quando não havia internet, satélites dedicados ao acompanhamento de fauna a partir de marcadores eletrônicos, foto-identificação, ou turismo de observação de cetáceos – que dizer de consciência ambiental global – é como se fôssemos obrigados a seguir as regras definidas para um planeta que já não existe.
Um planeta no qual a carne de baleia era parte essencial da dieta em um país destruído pela II Guerra Mundial (o Japão); onde a única forma conhecida de estudar as baleias era matando-as e esquartejando-as; e onde nenhum valor além do comercial era atribuído à fauna marinha, nem a baleias, nem a nada mais que nadasse dos oceanos.
Não é de se surpreender, visto por esse prisma, que atualmente a Comissão Internacional da Baleia (CIB) sofra de uma profunda esquizofrenia, de uma divisão interna paralisante, e de uma incapacidade de se adaptar ao século XXI. Concebido por um clube de países caçadores de baleias como forma de dividir de maneira pragmática o butim representado pela matança anual de milhares de baleias nos anos do pós-guerra, o tratado fundador da Comissão se preocupava basicamente com institucionalizar e promover essa matança.
O resultado disso hoje todos sabemos: as espécies de grandes baleias foram levadas sistemática e criminosamente à beira da extinção. Apenas um movimento global contra a caça das baleias, incluindo a cidadania de muitos países antes baleeiros, foi capaz de reverter a partir da década de 1970 essa barbaridade a tempo de evitar a extinção da maioria delas (ainda que a baleia cinzenta do Atlântico tenha ido para as cucuias, bem como a baleia franca da costa europeia do Atlântico norte, bem antes da Comissão ter sido criada).
De 1946 para cá, a carne de baleia deixou de ser um alimento essencial, inclusive para muitas das comunidades então classificadas como “aborígenes” e que, se um dia dependeram lá no Círculo Ártico de carne de baleia para sobreviverem hoje a obtém com subsídios e tecnologia dada por governos abastados (como nos Estados Unidos) ou a compram e vendem em supermercados (como na Groenlândia, onde a renda per capita é uma das maiores da Europa).
Tampouco o é mais para o Japão, cuja imensa maioria da população não come carne de baleia, sendo a matança ainda praticada por aquele país um mero trambique para amealhar subsídios estatais, enquanto milhares de toneladas de carne de baleia de temporadas de caça passadas se amontoam em armazéns refrigerados, sem ter quem as compre.
Também de lá para cá a Ciência com C maiúsculo passou a estudar as baleias através de métodos não-letais, ajudada pela tecnologia sempre em evolução, com técnicas de marcação satelital, análise de DNA, foto-identificação e muitas outras formas de entendermos como as baleias vivem, qual seu papel ecológico e a quantas andam suas populações depois de séculos de massacre desenfreado de parte dos macacos pelados que a tudo abatem sem muita consideração.
Ciência e consciência também nos levaram a reconhecer outros valores nas grandes baleias que não apenas o da carne e gordura. Por um lado, a recuperação gradual das populações permitiu que uma atividade iniciada de forma incipiente na costa oeste norte-americana na década de 1950, a observação turística desses animais, viesse a se disseminar pelo mundo a ponto de virar uma indústria de dois bilhões de dólares anuais em arrecadação, que opera em mais de 100 países e territórios e beneficia centenas de comunidades costeiras – sem ter de matar nenhuma baleia.
Mas para além dos valores monetários, estamos descobrindo que as baleias são essenciais à ciclagem de nutrientes nos oceanos, contribuindo com sua recuperação populacional para mitigar as mudanças climáticas. Sob qualquer ângulo que se olhe, as baleias valem muito, mas muito mais vivas do que mortas.
Os poucos países baleeiros restantes não querem ouvir falar disso. Noruega, Islândia e Japão seguem matando baleias aos milhares, à margem da moratória da caça comercial imposta pela Comissão ainda nos anos 1980. Os Estados Unidos são contra a caça comercial, mas permitem que seus “esquimós” matem para seus festivais “culturais” uma das espécies mais longevas, a baleia bowhead, que pode passar dos 200 ANOS DE IDADE, com lanchas e granadas modernas. E a União Europeia dá cobertura para que a Dinamarca, de cujo reino a Groenlândia faz parte, massacre centenas de baleias sob a mesma desculpa mas com finalidade comprovadamente comercial.
Em meio a isso tudo, e com mais um oba-oba de algumas mega-ONGs internacionais que pegam carona de última hora num esforço de décadas de ativistas e gestores públicos brasileiros envolvidos no tema, o Brasil retorna mais uma vez à Plenária bianual da CIB para tentar aprovar a proposta de criação de um Santuário de Baleias do Atlântico Sul, que proibiria em definitivo a matança em nossa bacia oceânica e promoveria a cooperação regional para a pesquisa e o desenvolvimento do turismo de observação.
Para ser aprovada, a proposta precisa de ¾ dos votos dos países presentes – uma tarefa nada fácil, já que o Japão controla um bloco de países africanos, caribenhos e outros à custa de “ajuda para o desenvolvimento pesqueiro” que na verdade envolve um verdadeiro petrolão de benesses indevidas. O Ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho, está vindo pessoalmente a Portoroz, na Eslovênia, onde a Comissão se reúne, para defender a proposta. E a chegada esta semana do novo Comissário do Brasil à CIB, Embaixador Hermano Telles Ribeiro, um nome muito respeitado no Itamaraty, é uma boa notícia para dar uma vitaminada em nossa representação diplomática no tema.
O Instituto Baleia Jubarte, com apoio de parceiros nos demais países proponentes do Santuário na região, trouxe uma belíssima exposição a Portoroz demonstrando a importância sócio-econômica, cultural e ambiental das baleias para nossos países. Será suficiente? Pouco provável.
O Brasil tem de aprender a torcer o braço de nossos “parceiros” recalcitrantes, como os países africanos nos quais investimos bilhões em cooperação, dos quais perdoamos dívidas gigantescas e que depois aparecem aqui para votar contra nossos interesses. E precisamos, sem sombra de dúvida, ajudar a reagrupar o bloco latino, que nesta reunião sofre com ausências como o Panamá e o Equador, que fugiram da raia e não enviarão representantes.
A votação da proposta do Santuário está prevista para segunda-feira. Será apenas aí que saberemos a contagem de votos efetiva. Em qualquer caso, é bom ver o Brasil novamente motivado e, na medida do possível tentando se articular, ainda que do nosso tradicional jeito mambembe, para defender as baleias, em franco contraste com a última Plenária da CIB neste mesmo lugar.
Vejamos como caminha a coisa nos próximos dias, mas os aplausos a um novo Brasil tentando resgatar uma posição conservacionista de destaque, de que já desfrutou nesta Comissão de outro planeta, estão, ao que parece, garantidos.
Comentários (3)
Ótima análise, Truda. E pensar que a Islândia ganha força como destino do propalado turismo ecológico.
Carlos Gabi e Mel ·
Belíssima análise Truda!
Explica muita coisa e nos deixa bem cientes do que se passa ,da muita hipocrisia que ainda reina no planeta que precisa urgente de gente mais lúcida e competente decidindo novos rumos na conservação.
Explica muita coisa e nos deixa bem cientes do que se passa ,da muita hipocrisia que ainda reina no planeta que precisa urgente de gente mais lúcida e competente decidindo novos rumos na conservação.
Vc vale ouro rapaz...e ainda bem que o Brasil tem novos gestores que vão reconhecer seu trabalho.
Vamos acreditar num resultado positivo amanhã!
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