Nova NDC Brasileira reduz ambição climática do país, contra o espírito do Acordo de Paris
Documento procura criar uma manobra textual para que redução da ambição climática possa ser aceita
Por WWF-Brasil
Cinco anos após a aprovação do Acordo de Paris, países signatários devem, até o final de 2020, apresentar seus compromissos individuais de redução de emissões, revisando os compromissos firmados em suas NDCs (Contribuição Nacionalmente Determinada). E mais uma vez o governo brasileiro desperdiçou uma chance de mostrar algum compromisso com a questão climática e de se posicionar pro-ativamente no debate internacional.Por WWF-Brasil
Desde o consenso alcançado no Acordo de Paris, importantes estudos foram publicados apontando a necessidade de que os países aumentem seus níveis de ambição, de modo a cumprir com o objetivo de se manter o aquecimento global em 1,5°C até o final do século.
Infelizmente o Brasil novamente se posiciona em direção oposta, isolando-se ainda mais no cenário internacional. A NDC registrada pelo governo brasileiro apresenta diversos problemas de conteúdo, forma e processo, conforme descrito abaixo. Ao invés de aumentar suas ambições, a NDC brasileira retrocede em relação aos compromissos já assumidos e procura criar uma manobra textual para que isso possa ser aceito, contrariando frontalmente as regras do Acordo de Paris.
Além disso, apesar de ser uma das 10 maiores economias do mundo, condiciona um eventual aumento de ambição ao pagamento de 10 bilhões de dólares por ano, sem mencionar como chegou a esse valor e como o recurso viria a ser utilizado. Com isso, se distancia do conceito de pagamento por resultados, estratégia utilizada com sucesso na formação do Fundo Amazônia e captação de 1,3 bilhão de reais –Fundo atualmente suspenso por iniciativa do próprio governo brasileiro.
Em um momento em que o Brasil busca estratégias para sua recuperação devido à pandemia e à crise econômica, a nova NDC deveria apontar o caminho para uma retomada de baixo carbono e assim catalisar investimentos e apoios financeiros internacionais, ampliando especialmente as ações de proteção social às populações mais vulneráveis. Ao invés disso, a nova NDC brasileira irá gerar questionamentos e perda de credibilidade no cenário internacional, afastando o interesse de investidores e reduzindo ainda mais a possibilidade de novos acordos comerciais.
1. Nível de Ambição
Em comparação com a primeira NDC, apresentada em 2015 antes mesmo da formalização do Acordo de Paris e antes de evidências científicas contundentes, como o relatório SR1.5 do IPCC, não há aumento de ambição. Pelo contrário: há a possibilidade de redução da meta de mitigação, uma vez que a nova NDC não mostra os números absolutos sobre os quais se baseia. Esta nova NDC mantém apenas a meta relativa para 2025 (de redução de 37% em relação a 2005) e assume como meta para 2030 o que antes era uma indicação (redução de 43% em relação a 2005).
A referência das emissões do ano base, 2005, era de 2,1 GtCO2e na primeira NDC e passa para 2,8 GtCO2e por causa de um aprimoramento metodológico. Ou seja, as metas absolutas que antes representavam níveis de emissões líquidas de 1,3 GtCO2e em 2025 e 1,2 GtCO2e em 2030 passam para 1,8 GtCO2e em 2025 e 1,6 GtCO2e em 2030.
Isso quer dizer que a NDC do Brasil está compatível apenas com um limite de temperatura bem acima dos 2°C dos níveis pré-industriais, lembrando que o Acordo de Paris definiu em manter a temperatura bem abaixo de 2˚C, com vistas a 1,5˚C.
Conforme proposta de NDC elaborada pela sociedade civil brasileira reunida no Observatório do Clima, lançada no início da semana, as emissões líquidas do Brasil em 2030 deveriam ser de 0,4 GtCO2e para estar compatível com o limite de aumento da temperatura de 1,5°C.
2. Indicativo para 2060 e condicionalidade financeira
Ao contrário do que foi declarado verbalmente pelo ministro do meio ambiente do Brasil no anúncio da nova NDC, a neutralidade de emissões em 2060 não é um compromisso, mas apenas uma intenção. O texto oficial é vago e apresenta somente um indicativo de neutralidade em 2060.
Ao mesmo tempo, a nova NDC omitiu um elemento importante da versão anterior - a declaração de que sua implementação não dependeria de apoio internacional.
Essa natureza incondicional foi um elemento importante da primeira NDC (2015), que rendeu ao Brasil um status privilegiado, sendo visto como um país maduro, sério no combate às mudanças climáticas e capaz de se manter por conta própria.
Assim, ao omitir essa declaração, a nova NDC deixa em aberto se os compromissos para 2025 e 2030 estão condicionados ou não ao apoio internacional e ao acordo sobre as regras do mercado de carbono. Alguns elementos parecem estabelecer tais condicionalidades: por exemplo, ao confirmar a dependência do mercado de carbono para o cumprimento da meta e a suposta exigência em receber U$10 bilhões/ano para que antecipe a intenção de alcançar a neutralidade de emissões. Se assim for, isso se constitui num enorme retrocesso e uma grave violação das regras do Acordo de Paris, que delimitam que cada nova NDC deve ser uma evolução da anterior.
Visando burlar este princípio, o governo brasileiro indicou que a nova NDC deve ser considerada pelo Secretariado da UNFCCC como a primeira NDC do país e não como a revisão da submetida anteriormente. Isso é claramente uma manobra para que essa NDC possa ser formalmente aceita, ainda que represente uma redução de ambição em relação aos compromissos já assumidos.
3. Confusa e Difusa
O alcance da meta depende, entre outras coisas, da definição e execução de políticas públicas nos setores econômicos com emissões relevantes. Por isso, a omissão das medidas a serem adotadas para reduzir o desmatamento, o uso de combustíveis fósseis e seus subsídios e de como estimular ações de restauração florestal e a adoção de sistemas integrados lavoura-pecuária-florestas, entre outras áreas (constantes na NDC de 2015) transformam a nova NDC numa proposta difusa e sem foco.
Da mesma forma, a nova NDC faz somente uma breve menção à Política Nacional sobre Mudança do Clima. Mas não cita que o governo não cumprirá a meta estabelecida por essa política de atingir em 2020 um nível de desmatamento na Amazônia inferior a 3.925 km² (atualmente está acima de 11 mil km²).
Vale destacar que a clareza na comunicação das metas setoriais e das respectivas medidas são fundamentais para o engajamento dos diversos atores necessários à sua implementação e aperfeiçoamento. Ao apresentar uma NDC confusa nos compromissos e difusa na forma de como irá implementá-los, o governo brasileiro acaba dificultando o engajamento e o apoio financeiro ou institucional de outros países.
4. Adaptação e a questão social
Apesar do governo relembrar a posição do Brasil como país em desenvolvimento, citando a dimensão social como estratégica, a nova NDC não menciona as ações de adaptação da sociedade brasileira às mudanças climáticas (inseridas na NDC de 2015), abstendo-se da necessidade de proteger as populações vulneráveis aos efeitos negativos da mudança do clima e de fortalecer sua capacidade de resiliência.
A ausência de ações em adaptação afeta diversos setores importantes da economia, dentre os quais a agricultura. Vale lembrar a Organização Meteorológica Mundial (WMO, da sigla em inglês) divulgou recentemente seu relatório sobre o Estado do Clima Global 2020, apontando que a perda estimada neste ano para a agricultura é de quase R$ 16 bilhões só no Brasil.
5. Participação Social
A efetiva redução das emissões é um esforço coletivo dos diversos atores em prol do interesse da sociedade, razão pela qual a revisão das NDCs deve ser um processo participativo, aberto à academia, à sociedade civil, ao setor privado e a todos demais atores interessados. Pois não se trata de uma iniciativa de um Governo, mas sim uma política de Estado. Em vários setores seria possível aumentar o nível de ambição estabelecido em 2015, o que proporcionaria ganhos econômicos, ambientais e sociais.
A nova NDC até cita alguns arranjos institucionais para a participação da sociedade, como o Comitê Interministerial sobre Mudança do Clima, o FBMC (Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas), os artigos 5, 231 e 232 da Constituição Federal sobre os direitos e garantias dos cidadãos, especialmente mulheres e povos indígenas, a Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas. No entanto, na prática, tais espaços não foram usados para fomentar o diálogo e a participação da sociedade na revisão da NDC. Os membros do FBMC sequer foram consultados sobre a proposta.
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