sexta-feira, 17 de março de 2023

Pantanal pode perder 10 mil hectares de vegetação nativa

 Pantanal pode perder 10 mil hectares de vegetação nativa

Fazenda quer desmatar área de vegetação nativa que equivale a 63 vezes o tamanho do Ibirapuera (SP) para plantar pasto exótico. Objetivo é alimentar o gado da propriedade na planície do bioma

MICHAEL ESQUER · 

8 de março de 2023

 

Fazenda Santa Maria, na planície do Pantanal sul-mato-grossense, pode ter mais de 10 mil hectares de vegetação nativa convertidos em pasto. 

Especial Pantanal em Foco

Sessenta e três vezes o tamanho do Parque Ibirapuera (SP). Este é o tamanho da área de vegetação nativa que o Pantanal pode perder se o Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul) aprovar um projeto que quer suprimir mais de 10 mil hectares de vegetação nativa da Fazenda Santa Maria para o cultivo de pastagens exóticas. Situada na planície do bioma, a propriedade rural terá toda essa área natural convertida para alimentar o gado que pasta na propriedade, em Corumbá (MS). 

Na região, a vegetação nativa da Fazenda Santa Maria desempenha um papel importante na conservação da avifauna. Lá, ocorrem mais de 100 espécies de aves, sendo duas delas ameaçadas segundo a lista vermelha da IUCN, como a arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus). De mamíferos, são 23 espécies presentes na área da propriedade rural, sendo que quatro delas também estão ameaçadas de extinção, como o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga trydetoclita). 

Entre área diretamente afetada e diretamente/indiretamente influenciada pelo desmate, foram registradas 39 espécies de árvores na fazenda, sendo que a maior parte delas tem potencial uso ecológico, ou seja, pode ser utilizada como alimento ou abrigo pela fauna silvestre da região. 

Todas essas informações de fauna e flora estão no Relatório de Impacto Ambiental (Rima) do projeto de supressão, que será apresentado na próxima quarta-feira (15), em audiência pública convocada pelo Imasul. Mas os números de fauna apresentados no documento, especificamente, podem ser bem maiores porque o levantamento feito neste grupo durou apenas entre quatro e seis dias. 

O tempo é considerado completamente insuficiente para refletir uma estimativa concreta, que, segundo especialistas consultados por ((o))eco, levaria meses. 

Conforme consulta ao Rima, 12.368,76 hectares de vegetação podem ser suprimidos ao todo na propriedade ao longo de quatro anos, caso o projeto receba autorização ambiental do Imasul. Desse total, 1,8 mil hectares correspondem à vegetação característica do Cerrado e 10,5 mil hectares à vegetação nativa. Essa área nativa que seria suprimida equivale a cerca de 63 vezes o tamanho do Parque do Ibirapuera (SP), que tem 158 hectares. 

Como justificativa para a supressão e a implantação de pasto exótico na fazenda, o empreendedor cita o aumento de produtividade; plena ocupação que o solo supostamente teria; geração de recursos financeiros ao proprietário; mais impostos; criação de oportunidades de trabalho de forma direta e indireta; e a “facilidade para o desmate, mecanização e formação do pasto”.

Flora, fauna e levantamentos insuficientes

De acordo com o Rima, foram identificadas 39 espécies de árvores como ocorrentes na área da Fazenda Santa Maria, sendo estas situadas na parcela diretamente afetada e na parcela influenciada direta/indiretamente pelo desmate. A maior parte dessas espécies (23) podem ser usadas como alimentação ou abrigo pela fauna silvestre da região. Entretanto, as demais espécies apresentam pelo menos um uso potencial, seja pela propriedade medicinal; alimentícia para humanos; ornamental; ou valor da madeira.

O documento também apresenta 130 espécies de aves como ocorrentes na área da propriedade rural. O número demonstra a importância da vegetação nativa da propriedade para a conservação da avifauna da região, mas pode ser maior porque este levantamento, em específico, durou apenas seis dias. 

Segundo especialistas consultados por ((o))eco, essa duração torna o levantamento insuficiente. O resultado ainda contrasta com o número de mais de 600 espécies de aves que são conhecidas na região do Pantanal. Como a maior parte das aves da fazenda foram encontradas nas áreas que devem ser desmatadas, o Rima diz que a principal medida a ser tomada seria a manutenção de pequenas ilhas de mata ou cerrado em meio às pastagens, para “facilitar a movimentação das aves pela paisagem”. 

Das espécies identificadas, o Rima aponta três aves como ameaçadas segundo a lista vermelha da IUCN: a ema (Rhea americana); o mutum-de-penacho (Crax fasciolata); e a arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus). No ano passado, porém, a ema foi listada apenas como “quase ameaçada” por essa mesma lista. Ainda assim, o número de aves ameaçadas na fazenda também pode ser maior, justamente porque não houve tempo suficiente para o registro de outras espécies. 

Para a arara-azul, o relatório indica a preservação de manchas de manduvi – árvore que serve como ninho e alimento para a espécie – e a participação no programa do Instituto Arara Azul que produz e instala ninhos artificiais para a ave no bioma.

Arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus), espécie ameaçada de extinção com ocorrência na fazenda Santa Maria. Foto: Reprodução/Mauricio Neves Godoi/Rima

Já entre mamíferos, foram duas espécies de voadores identificadas na área que será desmatada da Fazenda Santa Maria: o morcego-fruteiro (Sturnira lilium) e o morcego-vampiro (Desmodus rotundus). As espécies não estão ameaçadas de extinção, mas assim como grande parte dos voadores podem desempenhar papéis importantes como a polinização, dispersão de sementes e a diluição de patógenos e doenças. 

O número também não demonstra a riqueza esperada para o Pantanal, que tem em torno de 60 espécies de morcegos conhecidas. O resultado pode ter sido influenciado pela chuva e frio intenso que a propriedade rural registrou durante as coletas, conforme admite o próprio Rima. “Reforçamos que os resultados obtidos nas campanhas demonstram a necessidade de um esforço amostral maior quanto à comunidade de morcegos”. 

Mas além disso, assim como ocorreu com a avifauna, também pesa sobre o resultado insuficiente a baixíssima duração do levantamento: apenas quatro dias. Para essa comunidade de morcegos encontrada na região, o documento sugere a manutenção de manchas de vegetação que sirvam de fonte de abrigo e recurso. O objetivo é mitigar o impacto da supressão para os voadores.

Entre os não voadores, o levantamento durou apenas seis dias e apresentou 21 espécies de mamíferos na propriedade, sendo a maioria (19) delas de grande ou médio porte. Desse total, quatro estão ameaçadas de extinção no País: o queixada (Tayassu pecari); o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus); o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e a anta (Tapirus terrestris). Novamente, o número é tido como “pífio” perto da realidade esperada para a região, que com um levantamento criterioso deveria ter apresentado pelo menos 70 espécies, apontam especialistas consultados por ((o))eco.

“O estudo não apresenta números sobre o tamanho das populações destas espécies na propriedade e nem uma projeção do que restará após a supressão da vegetação, a curto, médio e longo prazo. […] listas de espécies, como a apresentada no Rima, não permite aferir estes números”, relata a ((o))eco especialista que preferiu não se identificar pelo temor de retaliações. 

Esses mamíferos ameaçados enfrentam os perigos já conhecidos da fragmentação e perda de hábitat, e que devem ser potencializadas com a supressão da vegetação que se pretende fazer na propriedade rural, conforme também admite o próprio Rima do projeto. “A área desmatada se constituirá em uma barreira efetiva entre ambientes, dificultando o fluxo de espécies terrestres arborícolas”, aponta o documento ao citar também riscos como o aumento do atropelamento de animais e da caça, que pode ser provocado pela exposição da fauna com o desmate da vegetação. 

Para tentar mitigar esse impacto, o Rima recomenda que para esses mamíferos também sejam mantidos corredores florestais que possam interligar as “sobras” de floresta; a instalação de placas; realização de palestras instrutivas; instrução dos operários; e proibição da caça na fazenda. “Antes da atividade de supressão começar, deve ser realizado o afugentamento da fauna. O desmate deve seguir uma única direção de derrubada, preferencialmente no sentido da Reserva Legal, com o intuito de possibilitar a fuga da fauna para esta área”, ainda acrescenta o documento.

O Programa de Monitoramento e Acompanhamento dos Impactos da supressão na fazenda também institui dois programas para fauna e flora. O primeiro, que trata do manejo, resgate e aproveitamento da flora nativa, tem o objetivo de garantir que o desmate não comprometa “formações florestais adjacentes”; de promover o menor impacto para biota nativa; e de coletar sementes para uso em programas de recuperação de áreas degradadas.  

O segundo programa, que trata da conservação de espécies protegidas ou com algum grau de ameaça, diz que vai verificar se houve aumento ou diminuição das populações de espécies protegidas ou com algum grau de ameaça e identificar possíveis refúgios de fauna, “que terão prioridade de conservação”. Segundo especialistas consultados por ((o))eco, porém, o Rima não apresenta os métodos desse monitoramento, que deveria ser aplicado antes e depois da supressão para avaliar o impacto. 

((o))eco entrou em contato com o representante legal do projeto de supressão da Fazenda Santa Maria nesta terça (7) e quarta-feira (8) para questionar os apontamentos feitos sobre o Rima. A reportagem ainda não obteve resposta. O espaço segue aberto.  

A importância da área nativa

A criação do gado solto é uma atividade secular no Pantanal, que quando manejada com boas práticas acontece em equilíbrio com o meio ambiente. A razão por trás disso são os grandes campos abertos do bioma, que favorecem a prática. Nessa equação, o fator que preocupa é a conversão dessas áreas naturais por pastagens exóticas, ou seja, pastagens naturais de outras regiões, que não o Pantanal, mas que são plantadas no bioma. 

Isso porque as pastagens nativas do Pantanal são de fundamental importância para a conservação dos processos ecológicos e para a manutenção da biodiversidade, conforme aponta o próprio Comitê Nacional de Zonas Úmidas (CNUZ). A alteração dessa área nativa composta de várias espécies, que inclusive se alternam durante o ano, por um pasto exótico de uma espécie só, pode ter impactos sobre esses serviços ecológicos, além de empobrecer o solo.

“É como se, quando plantam uma só espécie, simplificam a paisagem. Com o pasto nativo, temos um ambiente com várias espécies de plantas, organismos que originalmente estão associados a ela e que podem se alternar ao longo das estações. Trocar tudo por uma espécie só tem um impacto que a gente nem faz ideia”, explica a ((o))eco a coordenadora do Laboratório de Ecologia da Intervenção da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (Lei/UFMS), a pesquisadora Letícia Couto Garcia.

Se um dia o produtor tiver a necessidade de recuperar esse pasto convertido e transformá-lo de volta em uma área de vegetação nativa, a tarefa ainda se torna quase impossível. O motivo por trás disso é a dificuldade para remover o pasto exótico, que geralmente é composto por uma espécie exótica e agressiva, ou seja, que se espalha e dificilmente é removida depois que entra no sistema . 

“Por ser excelente competidora, a braquiária (tipo de pastagem exótica) inibe a regeneração natural de arbóreas nativas (árvores) e exclui espécies herbáceas nativas (plantas rasteiro)”, diz Garcia. Por ser invasora, ela também coloniza ambientes onde não foram plantadas, o que ameaça aos remanescentes naturais do entorno, até mesmo áreas de preservação, que também podem terminar “invadidos”. 

“É bem complicado reconverter uma área de pasto plantado com espécies africanas, isso eu posso te afirmar, pois para a restauração ecológica, o controle das espécies invasoras é um dos principais desafios”, conta Garcia.

Por conta dessa importância, o CNZU emitiu uma recomendação sobre o assunto em 2021. Entre outras coisas, o documento determinou aos órgãos estaduais de meio ambiente de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul que suspendessem os processos de licenciamento envolvendo a supressão de vegetação nativa para o plantio de pastagens exóticas nas áreas alagadas e inundadas do Pantanal. “Até que sejam definidos critérios técnicos ambientais, econômicos e sociais”, diz trecho da recomendação. 

((o))eco entrou em contato com o Imasul para questionar se o licenciamento da supressão de 10,5 mil hectares de vegetação na Fazenda Santa Maria para o plantio de pasto exótico estaria desrespeitando essa recomendação. Não houve resposta do órgão estadual até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto. 

O avanço das pastagens exóticas 

A ((o))eco, o coordenador de mapeamento do Pantanal no MapBiomas conta que no bioma o processo de conversão se dá sobre áreas de floresta, savana e campos naturais, que são transformadas em pasto. Mas nem sempre isso foi assim. “É preciso lembrar que é sobre os campos naturais que a pecuária tradicional se desenvolve há anos na planície pantaneira”, diz Eduardo Rosa. 

Em 1985, ano no qual a rede colaborativa tem o ponto de partida do seu monitoramento, o processo de conversão atingia principalmente as bordas do bioma, que eram áreas menos impactadas pela inundação. “Com a diminuição da frequência de alagamentos e diminuição da extensão de áreas alagadas, esse processo de conversão está se interiorizando no bioma”, explica Rosa.

Apenas em 2021, por exemplo, foram 29,9 mil hectares de vegetação nativa convertidos em pasto no Pantanal, segundo números do MapBiomas Alerta. Já entre 1985 e 2021, cerca de 1,9 milhão de hectares de vegetação nativa já foram convertidos em pastagem no bioma, também segundo a rede colaborativa. 

O coordenador explica que o avanço do pasto exótico se torna uma questão ainda mais preocupante quando se analisa a qualidade dessas áreas abertas. “Em sua grande maioria, esse processo de conversão de áreas naturais em pasto, degrada o ambiente da planície gerando grandes áreas de solo exposto e com baixa capacidade de suporte para a pecuária”, comenta.

Falta de política pública 

A coordenadora do Lei/UFMS conta que nos últimos anos o Pantanal tem assistido um movimento que tenta convencer os produtores rurais a substituir suas áreas nativas por pastos exóticos. “Quando você anda no Pantanal você vê vários produtores querendo fazer essa conversão, é uma tendência”, comenta a pesquisadora. 

Para reverter esse cenário, diz ela, seria necessária uma política pública que incentivasse o produtor a continuar criando gado sobre o pasto nativo, assim como dita a tradição secular da pecuária extensiva no bioma. “Para que aqueles que usam o pasto nativo tenham um valor agregado à carne”.

No bioma pantaneiro, em específico, as pastagens nativas de melhor qualidade estão geralmente localizadas nas áreas úmidas, explica Sandra Santos, pesquisadora da Embrapa Pantanal. “Uma forma de incentivar a sua conservação on farm (na fazenda) seria o manejo sustentável dessas áreas”, diz ela. 

Para a Garcia, isso poderia ser usado até mesmo como uma forma de certificar a carne como sustentável, por esta ter sido produzida em um pasto nativo, que não prejudicou a biodiversidade local. “O mercado externo tem grande interesse em buscar alimentos que sejam sustentáveis”. 

Sem esse tipo de política pública, a coordenadora do Lei/UFMS acredita que a tendência deve continuar sendo o aumento contínuo da conversão dessas áreas naturais em pastos exóticos, seja por conta da busca por ganho financeiro, seja pela busca do aumento da quantidade de gado por hectare ou pelo fato de que, legalmente, existe a possibilidade da conversão. 

“O produtor tem o direito legal de converter e ele não vai converter porquê? Teria que ter um incentivo por essa adicionalidade de conservação da vegetação nativa, relacionado à áreas que conservam a integridade do pasto nativo, que é algo único no Pantanal e que deveria ser muito valorizado”, explica Garcia. 

A pesquisadora da Embrapa Pantanal também defende o incentivo a produtores que manejam de forma sustentável os ecossistemas inseridos em suas propriedades. “O Pantanal tem um limite de produção e os produtores deveriam ser compensados pela conservação das paisagens que contém uma rica biodiversidade”, comenta Santos. 

Como exemplo de incentivo, a coordenadora do Lei/UFMS cita o pagamento por serviços ambientais nessas áreas que são produtivas, ou seja, áreas que não são de preservação permanente ou reserva legal, mas que, por decisão do produtor, também são manejadas de forma sustentável.  

Santos reconhece que nem todas as fazendas possuem pasto nativo de qualidade e, por isso, é importante mapear os tipos de pastagens existentes em cada propriedade. Mas, ao mesmo tempo, ela explica que muitas espécies de pasto nativo apresentam melhor qualidade do que as exóticas. “A mistura de espécies nativas contribui para uma dieta funcional e sustentável que deve ser melhor valorada”, comenta a pesquisadora da Embrapa Pantanal, que é também uma das autoras de guia que apresenta a descrição da qualidade das principais pastagens nativas do bioma. 

O ideal, segundo ela, seria otimizar os recursos forrageiros nativos de melhor qualidade a partir da associação com a introdução de pastagens exóticas. Mas isso apenas “dentro de critérios técnicos e sustentáveis, que seria o manejo adaptativo das pastagens”, diz Santos. O manejo adaptativo ao qual ela se refere nada mais é do que o produtor levar em conta os períodos em que cada tipo de pastagem está disponível ao animal.

E isso vai depender se é um ano seco, chuvoso ou “normal”, sendo essa justamente a característica que configura o manejo secular do pasto que é praticado pelos produtores tradicionais. “Eles levam o gado para uma área e depois voltam para outra que tem uma gramínea nativa que está brotando mais, por exemplo”, comenta a coordenadora do Lei/UFMS. “É muito importante culturalmente para o Pantanal também”, conclui Garcia. Criação sustentável e orgânica de gado em fazenda Nhecolândia, no Pantanal sul-mato-grossense. Foto: Márcia Foletto 

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