#G1 está em Bento Rodrigues, local do desastre ambiental de Mariana.
A reportagem de Paul Kiernan foi encomendada pelo maior jornal de circulação dos Estados Unidos, especializado em negócios, o “The Wall Street Journal”  e publicada no dia 5 de abril. Tive acesso a ela pela tradução editada no “Valor Econômico” do próprio dia 5. Desculpem o tom quase catastrófico que vou usar aqui, mas não consigo evitar, porque fiquei, de fato, bastante impressionada com a revelação feita pós pesquisa do repórter.  Resumo para vocês: há no mundo, hoje, cerca de 3.500 barragens como aquela que se rompeu e inundou a Bacia do Rio Doce de lama no dia 5 de novembro do ano passado. São as estruturas mais colossais  que o homem tem erguido ultimamente e, se na teoria deveriam durar para sempre, na prática estão falhando. E com frequência. Especialistas estimam que um a quatro rompimentos ocorram todo ano.

São cálculos feitos por quem entende. O repórter entrevistou Andrew Robertson, consultor, engenheiro, que já projetou enormes barragens para mineradoras. E ouviu ainda outro técnico, o canadense Harvey McLeod, que preside o comitê de barragens de rejeitos da Comissão Internacional de Grandes Barragens (Icold na sigla em inglês) . Segundo McLeod, as barragens formam uma miscelânea ao redor do mundo, e é praticamente impossível regulá-las, de alguma forma. Como se sabe, grandes corporações não são mesmo muito amigas de qualquer tipo de regulação.

Mas o Conselho Internacional de Mineração e Metais (ICMM na sigla em inglês está começando a querer fazer uma revisão dos padrões atuais. Talvez, quem sabe, colocar algum padrão. E afirmou que vai convocar reunião para isso. A conferir.

A situação é grave em todo o mundo. Um ano e três meses antes do acidente em Mariana, uma barragem de rejeitos no Canadá se rompeu e cerca de 8 milhões de metros cúbicos de resíduos de ouro e cobre foram despejados em dois lagos glaciais da província de British Columbia. Em 1985, um vazamento de apenas 220 mil metros cúbicos  (em Mariana foram liberados cerca de 60 milhões de metros cúbicos) – arrasou um vilarejo nos Alpes italianos e matou 268 pessoas.

As cinco maiores mineradoras de capital aberto do mundo foram instadas a responder quantas barragens de rejeitos operam, qual a mais alta e o maior volume. Somente a Anglo American deu todas as respostas. O que interessa saber é que, segundo especialistas ouvidos pelo repórter, a produção de rejeitos das maiores minas se multiplica por dez a cada trinta e poucos anos.  A busca por economias de escala vem levando as mineradoras a cavarem minas cada vez maiores, criando volumes recordes de resíduos.

Depois do acidente, o jeito é consertar.  De um jeito ou de outro - normalmente pouco favorável às vítimas porque nenhuma providência financeira é capaz de aplacar a dor de se perder tudo na vida, de entes queridos a bens móveis e imóveis -  a vida seguirá. Resta, por exemplo, no caso da lama da Samarco, o debate sobre se ela é ou não tóxica. Não que isso seja menos importante. Mas o caso é que, tóxica ou não, toda aquela lama não deveria estar ali.

A busca por mais e mais escala nas atividades da indústria que requerem bens naturais tem sido fator de muita inquietação para estudiosos que lançam uma visão macro sobre o desenvolvimento e o progresso  a-qualquer-custo. E, para mim, não há melhor maneira de se tentar entender e formar uma opinião sobre o tema do que buscar ajuda na literatura.  Um dos livros que debate criticamente essa questão, oferecendo conteúdo de qualidade para isso, é o “The Post-Development Reader” (Ed. ZedBooks, ainda sem tradução no Brasil), compilado por Majid Rahnema, ex-ministro do Irã, morto há um ano e que sempre trabalhou com questões ligadas à pobreza e ao processo de produção da pobreza pelo mercado econômico.

Rahnema dividiu o livro em cinco partes e convidou autores de diferentes formações para contribuírem.  O professor Teodor Shanin, da Universidade de Manchester, autor de vários livros sobre a cultura campesina, escreveu especialmente para “The Post-Development  Reader” o artigo “The Idea of progress” (“A ideia de progresso”, em tradução literal). Lembrei-me dele depois que li a reportagem do “The Wall Street Journal” e compartilho com vocês algumas das reflexões sugeridas no texto.

Para início de conversa, a ideia de progresso adquire, segundo Shanin, o status de importante ideologia para uma civilização com antolhos. São pessoas que perdem as condições de perceber, por conta de uma propaganda maciça e de promessas de paz, conforto e riqueza, os impactos negativos que vão muito além dos benefícios alcançados.

“Num determinado sentido, essa noção de progresso se transforma num único paradigma. Os ‘progressistas’ criam um campo de conhecimento e definem suas próprias questões, deixando de lado outros argumentos que não cabem na hipótese levantada. Tais especialistas desenvolveram um estilo particular: são impetuosos, inteligentes, centrados em si. Para a maioria das pessoas, no entanto, a causa do progresso não prevê, ‘por uma questão de planejamento científico’, o direito de escolher e até mesmo de entender porque sua própria experiência vai sendo cada vez mais negada. Assim, os desastres de planejamento se seguem, intermináveis, enquanto os planejadores ganham suas promoções e seguem em frente”, escreve Shanin.

Historicamente, segundo o autor, o legado filosófico do progresso vem desde o século XVII e partiu da ideia de que todas as coisas podem ser explicadas metafisicamente, como “vontade de Deus”. Para ilustrar, dão-se exemplos de sociedades que teriam trilhado caminhos tortuosos de pobreza, barbarismo, despotismo e ignorância antes de chegarem à riqueza, civilização, democracia e lógica, um mundo unificado, simples, logicamente arrumado. É a luta do “bem” contra o “mal”.

O que se deixa de lado para trilhar de um a outro caminho é a diversidade cultural, são as singularidades, as energias humanas. Exploram-se recursos naturais.  As reações ou questionamentos anti hegemonia  são igualmente desprezadas em nome de um “bem comum” que tomou conta do senso comum.

A questão é que o “bem” não é “comum”, e isso aos poucos vai sendo revelado. Para o autor, a tragédia que alcançou as vítimas de Mariana, do Chile, do Canadá, de tantos outros lugares, cujo grande erro foi ter estado no caminho do progresso, é aceita por quem persegue o progresso, é permissível. Shanin faz uma analogia com a época das Cruzadas, durante as quais muitas vidas foram ceifadas em nome de uma vida futura melhor.

“A tinta azul do progresso, do desenvolvimento, do crescimento, ofereceu cheques em branco a burocracias repressivas pelo mundo afora. Agem em nome da ciência, do ‘bem comum’. Fazem escolhas sem dar voz àqueles que podem ser vítimas de tais decisões”, escreve Shanin.

No final do texto, Shanin sugere que o único caminho para se enfrentar as limitações das escolhas humanas na sociedade contemporânea como foi formada é compreender melhor e aprender a pôr limites em tais limitações. Não é tarefa fácil. Mas os antolhos estão ficando menores.