Foi num daqueles dias raros de janeiro deste ano, quando o clima ameno, quase primaveril, e uma chuva quase constante nos deixaram com a sensação (falsa, vê-se agora) de que o verão iria poupar um pouco os cariocas. Saí de casa com o céu coberto por nuvens, exatamente como gosto. Peguei um ônibus e desci no Leblon, no começo da ciclovia Tim Maia, que havia sido inaugurada dois dias antes. Não fui de bicicleta, queria percorrer a pé o caminho. Tinha visto as fotos do dia em que a ciclovia foi aberta ao público e cheguei a pensar que aquele fora o único grande gol entre as obras olímpicas que tanto transtorno têm causado aos moradores do Rio nos últimos tempos. A sensação de caminhar ladeando o mar seria como poucas e me colocaria, talvez, mais de bem com a cidade.
Tão logo comecei a caminhar, uma chuva bárbara caiu dos céus. Eu já havia andado o suficiente e percebi que, se voltasse, iria ficar molhada do mesmo jeito. Melhor seria seguir em frente e aproveitar a paisagem com o mar tão revolto, como poucas vezes teria a oportunidade de fazê-lo. Afinal, dificilmente eu sairia de casa sob um temporal para caminhar por ali.
Andei bastante. E, num certo momento, mesmo debaixo d’água, tive que parar para acertar meus cadarços. Apoiei-me na murada e percebi, com uma grande dose de espanto, incredulidade e indignação, que ela estava, naquele pedaço, corroída por ferrugem. Fiquei insegura.
Naqueles dias que se seguiram li algumas vezes nas redes e em reportagens que outras pessoas haviam constatado o mesmo problema. Seguiam-se os indefectíveis comentários cheios de aversão e crítica, mas, como quase sempre acontece, o fato caiu no esquecimento e a ciclovia só virou notícia novamente quando um bando decidiu fazer um arrastão e levar alguns pertences de usuários. A questão da falta de segurança veio à tona e, num outro passeio que fiz ao local, dessa vez com sol a pino, alguns policiais já estavam resolvendo esse problema. Já a ferrugem continuava na mureta.
Ontem pensei em voltar à ciclovia. Preparei-me para isso mas, por conta de questões paralelas, desisti no caminho. Fui até o Parque do Flamengo com meus cachorros e, na volta, pelo rádio do carro, ouvi a notícia de que um trecho de 50 metros da ciclovia tinha desabado. Não pude evitar fazer alguns cálculos de tempo e concluí que eu estaria por lá naquele momento. Espanei os pensamentos sórdidos.
Cheguei em casa e minha rede social já estava tomada de fotos e comentários. Alguns deles, ingenuamente, botando a culpa numa onda enorme, quase uma tsunami, como jamais visto, que teria levantado o platô e causado o estrago. Não faltou muito tempo para eu ler o mesmo “diagnóstico”, dessa vez da boca do secretário Pedro Paulo, futuro candidato a futuro alcaide - e envolvido num nebuloso caso policial como agressor da ex-mulher, não custa lembrar. Pedro Paulo deu declaração no lugar do prefeito Eduardo Paes, que a essa altura estava no avião de volta de Atenas, onde participara de solenidade para acender a tocha olímpica que vai percorrer o mundo antes de chegar por aqui.
Não vou dizer que a ferrugem ocasionou a queda. Também não entendo nada de obra, não sou engenheira, não posso ficar dando pitacos em questões de infraestrutura. Mas é como cidadã comum, pagadora de impostos, que me dou o direito de achar, no mínimo, muito estranho uma obra recém inaugurada mostrar ferrugem. Tem cheiro de coisa realizada às pressas e com material de má qualidade. Por pura ventura não causou mais danos, poderia ter sido um acidente de grandes proporções. Estava quase vazia no momento em que desabou, talvez porque os cariocas prefiram mesmo a praia do que o cimento na hora de se exercitar.
Ouvido pela reportagem do G1, o especialista em gerenciamento de risco Moacyr Duarte praticamente encerrou as especulações sobre a responsabilidade das ondas no desabamento. Não foi. Ondas grandes são recorrentes naquele local e o projeto da ciclovia tinha que ter levado isso em conta. O material usado na obra teria que aguentar até mesmo uma tsunami. Com aquelas ferrugens que pude observar na mureta, só me resta concluir que não aguentaria. Ou seja: foi a crônica do acidente anunciado.
Algumas perguntas de praxe devem ser feitas. Quem são os envolvidos neste crime? Quem comprou o material? Quem assinou a obra? Oficialmente teriam sido gastos R$ 45 milhões. É preciso cobrar a fatura de cada parafuso. E, mesmo correndo o risco de passar vergonha com os estrangeiros que vão chegar daqui uns três meses para as Olimpíadas, isso não pode ser feito com pressa. A menos que se queira pôr em risco mais vidas humanas além das duas que já se perderam. É grave. Muito grave.
Mas, mesmo que não tenha havido superfaturamento nessa obra. Mesmo que tenha sido um tremendo descuido de quem apertou mal o parafuso. Penso que esse desmoronamento nos exige uma reflexão profunda sobre a espetacularização que estamos vivendo aqui no Rio por conta desse megaevento internacional. Para isso, busquei na estante o livro de Álvaro Ferreira, pensador que primeiro me apresentou a expressão “city marketing”, ou mercadificação das cidades, em seu livro “A cidade no século XXI – Segregação e banalização do espaço” (Ed. Consequência). Os eventos internacionais exigem dos governantes que arrumem a cidade como se arruma uma vitrine.
“Tantos projetos, tanto dinheiro comprometido, prefeito e governador falando no que seria melhor para a cidade, no entanto aqueles que deveriam ser ouvidos – os moradores – não têm voz”, escreve Álvaro Ferreira.
Sim, a ciclovia ficou linda. Mas, pensando bem, lindo é o cenário do entorno, e não precisava obra alguma para valorizá-lo. O único motivo de fazer aquele apêndice de concreto onde o asfalto já rouba da paisagem a naturalidade é cumprir metas impostas pelo Comitê Olímpico. Como se todos nós, cariocas, estivéssemos aflitos para receber os estrangeiros em nosso espaço. Sou capaz de apostar que não. Ouso mesmo dizer que aprovaríamos muito mais intervenções pequenas, seja nas zonas Norte, Sul, Centro, Oeste, mas que melhorassem a nossa mobilidade e nos dessem um pouco mais chances de conviver melhor com um dia a dia cada vez mais quente como já está sendo hoje, com expectativa de que vá piorando por causa dos efeitos das mudanças climáticas.
Sim, é importante construir ciclovias para diminuir o número de carros circulando nas vias urbanas e as emissões de carbono, como bem sabe o prefeito, que hoje é presidente do C40, um grupo de cidades de todo o mundo que tem como objetivo combater as alterações climáticas e proporcionar mais saúde e bem estar aos seus cidadãos. A questão é que parte da missão deste mesmo grupo, criado em 2005, é “proporcionar oportunidades econômicas” aos cidadãos urbanos.
Uma coisa pode, certamente, interferir negativamente sobre outra, já que o desenvolvimentismo não permite que se perca tempo em cuidados. E
cuidado é necessário na hora de apertar bem o parafuso ou de escolher o
material certo para construir uma estrutura que vai ser diuturnamente
atingida por ondas do mar, gigantes ou não.
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