segunda-feira, 31 de outubro de 2016
O mundo está se distanciando do principal objetivo estabelecido há quatro anos na RIO+20, a transição para uma Economia Verde.
A ambição de fazer mais com menos sequer
iniciou sua concretização. A ideia tão comum de que a revolução digital é
a porta de entrada para a economia da abundância e a era da
desmaterialização é frontalmente desmentida pelos fatos. A palavra-chave
da Economia Verde (decoupling, ou seja, desacoplamento, descasamento,
desligamento) ainda não chegou ao mundo real.
Nos últimos quarenta anos, a população mundial dobrou, o PIB global (a
preços constantes) triplicou e o uso de materiais passou de 22 bilhões
de toneladas em 1970 para 71 bilhões de toneladas em 2010, ou seja,
acompanhou o aumento do PIB.
Contrariamente ao que se poderia esperar, o ritmo deste aumento no uso
de materiais não é atenuado pelo progresso científico e tecnológico.
Desde 1970 o uso de materiais cresce 2,7% ao ano. Mas na primeira década
do milênio, o aumento atingiu 3,7% ao ano. Levou trinta anos para que a
média anual no uso de materiais “per capita” pulasse de 6,4 toneladas
em 1970 para 7,9 toneladas em 2000. Mas a partir daí, em apenas dez
anos, este número médio alcançou 10,1 toneladas per capita (e por ano).
“A velocidade com que estamos explorando recursos naturais, gerando
emissões e lixo aumenta mais rápido que os benefícios econômicos daí
resultantes”, diz o Relatório.
O Painel de Recursos Internacionais do PNUMA reúne um grupo de
especialistas que se dedicam a estudar o metabolismo social
contemporâneo, ou seja, a maneira como a espécie humana emprega os
recursos materiais, energéticos e bióticos necessários a sua reprodução.
E a grande conclusão é que este metabolismo está doente.
A maneira como são extraídos, transformados, consumidos e descartados os recursos em que se apoia a economia está destruindo serviços ecossistêmicos indispensáveis à vida, que se trate das florestas, do ar, do clima, da água, dos solos ou dos oceanos.
A maneira como são extraídos, transformados, consumidos e descartados os recursos em que se apoia a economia está destruindo serviços ecossistêmicos indispensáveis à vida, que se trate das florestas, do ar, do clima, da água, dos solos ou dos oceanos.
Na raiz desta destruição encontra-se
antes de tudo uma imensa desigualdade na maneira como são apropriados os
materiais de que a oferta de bens e serviços depende. E não há a menor
chance de que a redução desta desigualdade passe pela generalização ao
conjunto da espécie humana dos padrões de produção e consumo vigentes
nos países desenvolvidos.
A principal inovação teórica destes especialistas consiste em examinar a
economia não apenas a partir do sistema de preços, mas com base na sua
realidade substantiva. Sua pergunta central é: quanto extraímos da
biosfera para obter as utilidades que compõem a riqueza? A resposta se
traduz em quatro famílias de materiais: biomassa, combustíveis fósseis,
minerais metálicos e minerais não metálicos (como areia, cal e cimento).
É a partir daí que se avalia o que os especialistas chamam de “pegada
material” da economia. E os dados mostram que esta pegada não está
melhorando.
Mas e os países desenvolvidos? É verdade que aí, cada unidade do PIB é
oferecida com quantidade decrescente de materiais. Mas esta redução
deriva não só de sua inegável eficiência produtiva, mas também do fato
de que suas indústrias foram, em grande parte, terceirizadas,
transferidas a países com sistemas produtivos predatórios dos recursos
naturais.
Uma das inovações deste Relatório é que, utilizando técnicas
de matriz insumo-produto ele estima os materiais contidos naquilo que um
determinado país consome, mesmo que o produto e as matérias-primas que
lhe deram origem não venham deste país.
Se isso não for feito, fica-se
com a falsa impressão de que os países (como os EUA e os da União
Europeia), que transferiram parte de suas indústrias para a China,
passaram a consumir poucos recursos. O mito da desmaterialização dos
países desenvolvidos vem da ignorância do fato de que seu consumo só é
mais “leve” porque as atividades “pesadas” em materiais foram, em boa
medida, terceirizadas. Os dados neste sentido são chocantes.
Quando se leva em conta o consumo (e não apenas a produção), o uso médio
de materiais por parte de um cidadão da União Europeia é de 20
toneladas por ano. Na América do Norte chega a 25 toneladas “per capita”
e por ano. América Latina e os países em desenvolvimento da Ásia estão
em torno de 10 toneladas e em trajetória ascendente. Mas na África
subsaariana o consumo de materiais está estagnado em não mais que três
toneladas anuais “per capita”. Além disso, é imensa a disparidade que
deriva das desigualdades no interior de cada país.
É claro que a elevação do nível de vida dos mais pobres exige maior
consumo de materiais. No entanto, o nível de consumo dos países mais
ricos do mundo não é passível de generalizar-se, mesmo nos padrões
europeus. Se o consumo médio anual “per capita” dos dez bilhões de
habitantes que devem habitar o Planeta em 2100 for de 20 toneladas, isso
significará quase o triplo do montante atual de 70,1 bilhões de
toneladas. O problema não é o horizonte de escassez absoluta destes
materiais, muitos dos quais são abundantes. O problema é que sua
extração e seu uso não são compatíveis, nesta escala, com a preservação e
a regeneração dos ecossistemas de que depende a vida social.
A questão é tão séria que o Relatório do PNUMA, contrariamente ao que ocorre com documentos deste tipo, não contém um capítulo com propostas de políticas, além de um apelo bastante vago a mudanças nos estilos de vida e nos comportamentos dos consumidores. O trabalho reitera também, claro, a importância das inovações tecnológicas para acelerar o processo de descasamento entre a produção e suas bases materiais, energéticas e bióticas.
Os dados que ele contém, entretanto, mostram que na ausência de
políticas nacionais e globais voltadas à urgente redução das
desigualdades, o risco é que o mundo aumente ainda mais sua produção e
seu uso de recursos, destruindo serviços ecossistêmicos preciosos e, ao
mesmo tempo, marginalizando parte imensa da população global.
*Ricardo Abramovay é autor de “Muito Além da Economia Verde” (Ed.
Planeta Sustentável, SP, 2012). Coautor de Lixo Zero: Gestão de Resíduos
Sólidos para uma Sociedade Mais Próspera.
Fonte: Envolverde
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