Por
Amelia Gonzalez, G1
02/06/2018
13h39 Atualizado 02/06/2018 13h39
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“Precisávamos
de uns 200 homens. Aí, alugamos um galpão em São Felix (do Xingu), colocamos
uma cozinheira fazendo farofa, muita cachaça para esse povo. E a gente ia em
todo bordel, hotel, canto de rua, a gente ia pegando esse povo, pagando a conta
desses peões e colocando todo mundo lá dentro (do galpão). Ficava (sic) dois na
porta da frente, dois no fundo para não deixar ninguém fugir. (Os homens)
Ficaram lá dentro meio que presos, né? – até arrumar os 200. Porque não podiam
sair lá de dentro.
E aí a gente teve o apoio da polícia na época, a polícia
ajudou a gente a tirar esses homens de dentro do barracão para levar até a
balsa, se não também ninguém ficava, todo mundo corria (risos). Conseguimos
fazer uma fila de homem e colocamos na balsa. No outro dia, todo mundo andando
15 quilômetros até chegar lá na fazenda. Quem veio para cá (Amazônia), naquela
época (década de 70, 80), sempre tem uma história dessas.. Já escravizou gente?
Se for, eu também (mais risos). Não tinha outra alternativa, aquilo ali que era
o mundo de todo mundo”.
O relato é
de um produtor rural da Amazônia no excelente documentário “Sob a Pata do Boi”,
dirigido por Marcio Isensee e Sá, que conta a história da cadeia agropecuária
na Amazônia desde a década de 70, quando o governo começou a fazer convites
para que ela fosse habitada. O filme faz parte de um projeto de jornalismo
investigativo, crava denúncias seriíssimas, como o envolvimento do ex-ministro
do meio ambiente José Sarney Filho com os produtores do Pará, mostrando como o
político sabe muito bem falsear as informações que decide compartilhar com os
cidadãos comuns.

Numa
entrevista direta à equipe do documentário, Sarney Filho decide antecipar uma
megaoperação que iria acontecer, fechando, multando, responsabilizando
frigoríficos que foram flagrados comprando carne de bois criados em fazendas
responsáveis por desmatamento. Mas num vídeo obtido pela equipe, três dias
depois de a megaoperação de fato acontecer, atingindo 15 frigoríficos, Sarney
Filho fala o seguinte aos produtores do Pará:
“Minhas
amigas e amigos, quero dizer a vocês que eu, como ministro do Meio Ambiente,
não fui avisado pelo Ibama dessa operação”.
Desde o
pano, nada a comentar. O problema está além das picuinhas políticas, pode
afetar seriamente a exportação de carne porque não há mais lugar, internacionalmente,
para gado criado de maneira devastadora para o meio ambiente, como ainda
acontece na Amazônia. Desde que começou a integração da região com o resto do
país, foco dos militares na década de 60, até 2004, muita terra foi devastada
para caber bois.
Hoje, 110
frigoríficos são responsáveis pelo abate de 93% de todo o gado da Amazônia. São
85 milhões de cabeças de gado, três para cada habitante. O representante da JBS
fala no documentário, e se orgulha:
“Temos 70
mil fornecedores de gado, sendo 40 mil na região da Amazônia. E temos comprado
35 a 40 mil cabeças por dia.”
Carne de
boi é o que não falta no Pará, que exporta prioritariamente para a Arábia
Saudita e vários países da Ásia. Mas no último IDHM (Atlas do Desenvolvimento
Humano) do país, o Pará não estava nas melhores
posições, ou
seja: o bem estar social não é atingido pela abundância de dinheiro conseguido
pela exportação. Isso também não é novidade, mas é sempre bom lembrar. Em São
Félix do Xingu, um dos locais visitados pela equipe, são 24 bois por habitante.
O pecuarista José Aureo Aureliano dos Santos dá o tom da conversa:
“Ninguém
vive em torno de prejuízo, e sim em torno de lucro. Jamais vou desistir de
criar boi ou vaca. Porque agricultura, aqui, não dá lucro”.
E toma de
boi, e toma de desmatamento. Na década de 70, 1% das terras estavam desmatadas,
e hoje são 20%.
A Amazônia
foi colonizada pela pata do boi. Para Paulo Adário, do Greenpeace, “o boi é
hoje o principal problema ambiental da Amazônia e do mundo”. E para entender
melhor esta relação, é imprescindível perceber a naturalidade com que os
produtores falam sobre a maneira como o boi vira lucro:
“O gado
exige uma estrutura muito menor. Quando a gente forma uma fazenda, derruba a
mata, queima e joga semente de avião. Não entra nenhum trator”, diz Mauricio
Fraga Filho, da Associação do Pará.
O Prefeito
de Redenção, Carlos Iavé, chega a defender a degradação de maneira quase
infantil: “Se nunca ninguém derrubasse nada no mundo, íamos viver como?”.
Sugiro perguntar a índios, quilombolas e ribeirinhos, talvez eles possam dar
ideias sobre como viver, e se alimentar, sem precisar degradar o ambiente
entorno.
O estímulo
para ocupar a Amazônia e transformar essa ocupação numa fonte inesgotável e
abundante de renda veio, como lembro no início do texto, do governo na época da
ditadura militar. E, hoje, a maioria dos produtores reclama, dizendo que as
leis são “fracas”, o que justificaria o estado geral das coisas.
“O
sentimento de impunidade é que faz a gente querer ser ilegal”, dizem, como
justificativa de tanta ilegalidade.
Grileiros
se apossam de terras, ocupam apostando que a regra vai ser mudada e que eles
vão dar um jeito de obter algum lucro, o que acaba acontecendo mesmo.
Paulo
Barreto, pesquisador do Imazon, conta de onde vem a palavra grileiro:
“Eles
arrumam um documento novo, “título de propriedade de terra” (falso) mas aquele
documento tem que parecer velho. Abrem uma gaveta, jogavam vários grilos
dentro, botavam o papel lá. Depois de alguns dias ele parece um documento
velho, com as fezes e comido por grilos”, diz ele.
A lógica é
a desenvolvimentista, do lucro a qualquer custo. A denúncia não vem fora de
hora, não é inédita, mas é imprescindível. E escolho debater uma questão que
transcende o lucro, o capitalismo, o desenvolvimentismo.
Quero botar
na mesa uma reflexão séria sobre a relação do homem com o homem e do homem com
os animais, o que me parece estar presente o tempo todo no documentário. Peço
ajuda, aqui, de Yuval Noah Harari, historiador que escreveu “Homo Sapiens – uma breve história
da Humanidade”,
em que, entre outras coisas, acusa a forma como o homem trata os animais só por
sentirem que eles são inferiores. E afirma que, como já se sabe e já foi
demonstrado cientificamente, os animais, todos, são seres sensíveis à dor e a
outras emoções.
Uma das
visitas da equipe de “Sob a pata do boi” foi a um rodeio, que considero das
festas mais absurdas e sem sentido. Lá, uma câmera sensível consegue captar o
olhar do boi quando é cruelmente impedido de se mexer, pouco antes de entrar na
arena pré-histórica onde adultos histriônicos aguardam a peleja covarde. Para
quem consegue perceber um pouco mais do que o lucro rápido que vai ganhar com
tanta “euforia”, é visível a expressão de medo, é claro que o animal sabe que o
sofrimento está apenas começando, e que já está sem a mínima condição de reagir
a nada. Vai morrer.
Pior do que isso: vai ser sacrificado antes. Para puro
deleite e gáudio dos seres humanos.
Perdoem-me
a irritação, mas não consigo evitar adjetivos fortes ao descrever esse tipo de
“festa” (assim mesmo, entre aspas, por favor). E, para quem já ensaia um
argumento pueril, de que se os bois não fossem mortos não teríamos o que fazer
com eles, eu argumento que muitos desses bichos estão sendo acasalados com o
único objetivo de alimentar seres humanos. É possível, com uma produção e
criação consciente, diminuir a produção e fazer como se faz com as árvores
quando se tem consciência ambiental: as mais velhas são derrubadas, pouco antes
de, elas próprias, já se sentirem abatidas.
Feito o
comentário, quero acrescentar que não vejo muita diferença entre o
aprisionamento do boi e o aprisionamento de homens como o descrito no início do
texto. Tenho, por isso, de novo o aval de Yuval Harari para concluir que a
humanidade, de fato, só conseguirá ter uma relação menos egoísta com a natureza
quando respeitar todos os seres que convivem no espaço planeta. Inclusive os da
própria raça.
O
documentário é imprescindível e poderá ser visto, no Rio, dia 7 de junho (Museu
do Meio Ambiente) e, em Belém, no dia 4. Depois disso, haverá
possibilidade de assistir
on demand.
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