quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

O histórico da barragem da Vale. E o risco de liquefação

Por Estêvão Bertoni, Nexo Jornal – 
 
Dissertação de mestrado defendida em 2010 por funcionário da mineradora diz que barragem que se rompeu tinha nove camadas suscetíveis à liquefação, processo que podia levar estrutura a ruir


A barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, da Vale, que se rompeu em 25 de janeiro de 2019 em Brumadinho (MG), possuía nove camadas  com potencial de liquefação, processo no qual o material sólido do reservatório passa a se comportar como fluido, o que pode levar a estrutura a se romper.


O dado foi observado pelo engenheiro geotécnico Washington Pirete da Silva, que trabalha na mineradora há mais de 22 anos, e consta de sua dissertação de mestrado de 2010.


O risco de liquefação também havia sido registrado por engenheiros que vistoriaram a barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana, antes da tragédia que matou 19 pessoas e deixou um rastro de destruição até o litoral do Espírito Santo, em 5 de novembro de 2015.


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presso O histórico da barragem da Vale. E o risco de liquefação Estêvão Bertoni 05 Fev 2019 (atualizado 06/Fev 16h05) Dissertação de mestrado defendida em 2010 por funcionário da mineradora diz que barragem que se rompeu tinha nove camadas suscetíveis à liquefação, processo que podia levar estrutura a ruir Foto: Adriano Machado/Reuters Policial federal fotografa área da barragem 1, da Vale, em Brumadinho, após estrutura ruir A barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, da Vale, que se rompeu em 25 de janeiro de 2019 em Brumadinho (MG), possuía nove camadas com potencial de liquefação, processo no qual o material sólido do reservatório passa a se comportar como fluido, o que pode levar a estrutura a se romper. O dado foi observado pelo engenheiro geotécnico Washington Pirete da Silva, que trabalha na mineradora há mais de 22 anos, e consta de sua dissertação de mestrado de 2010. O risco de liquefação também havia sido registrado por engenheiros que vistoriaram a barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana, antes da tragédia que matou 19 pessoas e deixou um rastro de destruição até o litoral do Espírito Santo, em 5 de novembro de 2015. “O principal mecanismo de ruptura em barragens de rejeitos alteadas para montante [que crescem para dentro, como a barragem 1 e Fundão] ocorre por processos de liquefação induzidos por carregamentos estáticos [quando há uma carga que permanece estável ao longo do tempo] e transientes e isto está diretamente relacionado às baixas densidades dos rejeitos dispostos de forma hidráulica na barragem e à gestão inadequada da operação nestas barragens”, escreve Silva. Seu trabalho que analisa a barragem 1 é intitulado “Estudo do potencial de liquefação estática de uma barragem de rejeito alteada para montante aplicando a metodologia de Olson (2001)” e foi defendido na Escola de Minas da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto). Na Vale, Silva é responsável pela Gestão em Projetos Geotécnicos aplicados na Mineração e Estudos de Alternativos de Disposição de Rejeitos. A ruptura da barragem, que funcionava havia mais de 40 anos, deixou, até esta terça-feira (5), 134 mortos e 199 desaparecidos. O histórico da barragem 1 A estrutura que recebia rejeitos de minério de ferro em Brumadinho começou a ser projetada em 1974 e foi finalizada em 1976, quando começou a operar. Do início de seu funcionamento até 2007, ela cresceu 63 metros (uma média de dois metros por ano). Barragens de rejeitos estão permanentemente em obras porque são feitas por camadas, num processo chamado de alteamento (até 2007, nove alteamentos foram feitos). A 1 teve diversos projetistas e foi tocada por diferentes empreiteiras ao longo dos anos. A Vale só assumiu a direção da Mina Córrego do Feijão em 2003. As atividades no local começaram em 1956, sob responsabilidade da Companhia de Mineração Ferro e Carvão. Em 1973, três anos antes de a barragem começar a operar, passou para o controle da Ferteco Mineração, até ser transferida para a Vale, 30 anos depois. A mina empregava 613 funcionários diretos e 28 terceirizados até o final de 2018. Em 2007, a parede frontal da barragem tinha 81 metros de altura (pouco mais de duas vezes o tamanho do Cristo Redentor, no Rio). Diferentemente do que se pensava, ela misturou dois tipos de alteamentos. Começou a montante (quando os “degraus” crescem para dentro do reservatório) e, em 1984, cresceu pelo modelo de linha de centro (ou seja, a estrutura é erguida para o alto, em linha reta). Em 1990, o método a montante foi retomado. Os problemas Em seu trabalho, Silva chama a atenção para um detalhe ocorrido no quarto alteamento, realizado em 1995: o eixo da parede frontal foi deslocado 60 metros para o interior do reservatório. Isso significa que o próximo degrau seria construído mais ao fundo, em cima do rejeito anteriormente depositado, o que aproximava a parede de contenção da barragem dos rejeitos com mais água (quanto mais distante a lama permanecer da frente da barragem, menor o risco). “Essa decisão foi tomada no sentido de se garantir uma maior condição de segurança para a estrutura. Embora satisfatória do ponto de vista geométrico por parte da projetista, o sistema de fluxo interno à barragem não se mostrou adequado, induzindo o aparecimento de diversas surgências ao longo do pé do dique do quarto alteamento e rápida elevação das leituras piezométricas”, escreve o engenheiro. As surgências a que Silva se refere são espécies de vazamentos ou aparecimento de bicas d’água, que podem sinalizar que o material interno está sendo carregado para fora, configurando um risco de ruptura. Os piezômetros são aparelhos que medem o nível de água na estrutura e precisam ser monitorados constantemente. Uma investigação conduzida pela Samarco em 2016 mostrou que uma alteração geométrica no eixo, com a criação de um recuo na forma de um S, foi o que levou ao desastre com a barragem de Fundão, em Mariana. O método de recuo do eixo não é recomendado por engenheiros, por ser uma solução que apresenta riscos. A falta de diretrizes Silva diz em seu estudo que, de 1976 a 2005, ou seja, por quase 30 anos, “a barragem era operada sem uma diretriz quanto à disposição dos rejeitos”. “Esta operação ao longo dos alteamentos da primeira fase resultou na formação de um depósito de rejeito não uniforme”, escreveu. Nas barragens, os rejeitos arenosos, que ficam à frente, precisam ser separados dos rejeitos finos (lama) jogados ao fundo. Manuais de operação de barragens estipulam até uma distância mínima da “praia” (formada pela areia) para manter a estrutura segura. No caso de Fundão, a praia tinha que ter, no mínimo, 200 metros. Uma distância menor significava risco, porque a lama (com água) estaria muito próxima da parede de contenção. Apenas em 2006, afirma o engenheiro, houve uma mudança no método de disposição dos rejeitos na barragem 1 “e um entendimento melhor quanto à importância desta operação”. Silva ressalta, no estudo, que o “manejo da disposição dos rejeitos e o controle do nível da água do reservatório constituem aspectos essenciais para a garantia da segurança da estrutura”. Os pontos suscetíveis O engenheiro da Vale afirma que não havia uma “homogeneidade do sistema de disposição de rejeitos”, por causa de “problemas da falta de um controle efetivo quando da implantação da primeira fase do empreendimento”. Sem separação efetiva entre lama e areia, havia áreas críticas espalhadas pela estrutura. Ele identifica “nove camadas com maior potencial ou susceptibilidade à liquefação”, mas define como “pouco provável” um gatilho para desencadear o processo. Esse gatilho pode ser uma perturbação, como uma movimentação de terra, por exemplo. Para ele, não haveria a necessidade de avaliar potenciais riscos de ruptura por liquefação, pois “o potencial do gatilho é baixo em função da gestão operacional da barragem 1”. Silva elogia a equipe responsável pela manutenção do reservatório. “Os procedimentos operacionais da barragem 1 da Mina do Córrego do Feijão incluem o controle absoluto do nível de água do reservatório por meio de um sistema extravasor dotado de stop logs [pequenas comportas], a manutenção de uma praia de rejeitos com extensão mínima de 100 m e uma gestão no manejo da disposição dos rejeitos feito por uma equipe técnica bastante qualificada. Estes elementos, associados aos resultados positivos das análises desenvolvidas nesta dissertação, garantem uma boa segurança do empreendimento e seu baixo potencial a gatilhos de liquefação estática”, escreve. O Nexo ouviu o doutor em engenharia e professor José Marques Filho, vice-presidente do Comitê Brasileiro de Barragens. Ele afirma que controlar a água em barragens como a da Vale é essencial para manter sua segurança e impedir que ocorra a liquefação. Como ocorre o processo de liquefação? JOSÉ MARQUES FILHO As partículas [do rejeito] são muito fininhas, muito pequenas. Algumas são arenosas, outras são argilosas, e têm cargas elétricas. Se você pegar uma massinha com pouca água, você consegue moldar e fica durinha. Quanto mais seco estiver, mais duro vai ficar. Por isso que você compacta. Quando vai tendo mais água e descargas elétricas, esse material começa a ficar mais separado um do outro, em suspensão, e fica muito deformável, porque aquele atrito de partícula com partícula começa a diminuir, assim como a adesão entre elas. Então, elas se separam. É como se houvesse uma suspensão, e o material se movimenta, porque a água passou a ser predominante com relação à argila. Conforme vai aumentando a quantidade de água, vai aumentando a solução líquida. Como ocorre numa barragem esse processo, que tem a parede frontal mais seca e arenosa para barrar a água ao fundo? JOSÉ MARQUES FILHO Se você tiver bastante água no meio daqueles poros, qualquer mudança que você tenha, a força da água vence e passa a ser uma solução. Pode não ser o material da frente que teve a liquefação, pode ser o de trás, mas se ele se liquefazer, ele vai empurrar o da frente. Uma coisa é o material sólido, você pode colocar um em cima do outro. Se você colocar um material mais úmido ele escorre, porque ele faz uma força lateral. Então para manter em segurança é preciso tirar a água? JOSÉ MARQUES FILHO Tem que tirar, drenar e não pode perturbar. Porque às vezes ele está quieto, e se você perturba, ele se mexe e cai. Existem várias maneiras. Pode ser uma liquefação estática e dinâmica. O material está bem no limite de ficar fluido, aí você cutuca e ele escorre. E essa perturbação pode ser o quê? JOSÉ MARQUES FILHO Pode ser um sismo ou você pode estar escavando perto. Pode ser um monte de coisa. Se mexeu o maciço ou se você fez furos perto, pode gerar um problema. O ideal é estar com os drenos sempre funcionando, controlando a barragem para que não tenha esse estado de solução. O sr. viu o vídeo da ruptura da barragem? Houve liquefação? JOSÉ MARQUES FILHO Pode ter sido, sim. Pode ser também uma mistura de fenômenos, porque tem uma parte arenosa, argilosa, mas há uma chance de ter sido liquefação. Eu não posso falar com certeza. ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto nomeou de forma equivocada o trabalho de mestrado de Washington Pirete da Silva. Na realidade, o termo correto é dissertação, e não tese. O texto foi corrigido às 11h30 de 6 de fevereiro de 2019.

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