Dissertação de mestrado defendida em 2010 por funcionário da mineradora diz que barragem que se rompeu tinha nove camadas suscetíveis à liquefação, processo que podia levar estrutura a ruir
A barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, da Vale, que se rompeu em 25 de janeiro de 2019 em Brumadinho (MG), possuía nove camadas com potencial de liquefação, processo no qual o material sólido do reservatório passa a se comportar como fluido, o que pode levar a estrutura a se romper.
O dado foi observado pelo engenheiro geotécnico Washington Pirete da Silva, que trabalha na mineradora há mais de 22 anos, e consta de sua dissertação de mestrado de 2010.
O risco de liquefação também havia sido registrado por engenheiros que vistoriaram a barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana, antes da tragédia que matou 19 pessoas e deixou um rastro de destruição até o litoral do Espírito Santo, em 5 de novembro de 2015.
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presso
O histórico da barragem da Vale. E o risco de liquefação
Estêvão Bertoni
05 Fev 2019 (atualizado 06/Fev 16h05)
Dissertação de mestrado defendida em 2010 por funcionário da mineradora
diz que barragem que se rompeu tinha nove camadas suscetíveis à
liquefação, processo que podia levar estrutura a ruir
Foto: Adriano Machado/Reuters
Policial federal fotografa área da barragem 1, da Vale, em Brumadinho,
após estrutura ruir
A barragem 1 da Mina Córrego do Feijão, da Vale, que se rompeu em 25 de
janeiro de 2019 em Brumadinho (MG), possuía nove camadas com potencial
de liquefação, processo no qual o material sólido do reservatório passa a
se comportar como fluido, o que pode levar a estrutura a se romper. O
dado foi observado pelo engenheiro geotécnico Washington Pirete da
Silva, que trabalha na mineradora há mais de 22 anos, e consta de sua
dissertação de mestrado de 2010.
O risco de liquefação também havia sido registrado por engenheiros que
vistoriaram a barragem de Fundão, da Samarco, em Mariana, antes da
tragédia que matou 19 pessoas e deixou um rastro de destruição até o
litoral do Espírito Santo, em 5 de novembro de 2015.
“O principal mecanismo de ruptura em barragens de rejeitos alteadas para
montante [que crescem para dentro, como a barragem 1 e Fundão] ocorre
por processos de liquefação induzidos por carregamentos estáticos
[quando há uma carga que permanece estável ao longo do tempo] e
transientes e isto está diretamente relacionado às baixas densidades dos
rejeitos dispostos de forma hidráulica na barragem e à gestão
inadequada da operação nestas barragens”, escreve Silva.
Seu trabalho que analisa a barragem 1 é intitulado “Estudo do potencial
de liquefação estática de uma barragem de rejeito alteada para montante
aplicando a metodologia de Olson (2001)” e foi defendido na Escola de
Minas da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto). Na Vale, Silva é
responsável pela Gestão em Projetos Geotécnicos aplicados na Mineração e
Estudos de Alternativos de Disposição de Rejeitos.
A ruptura da barragem, que funcionava havia mais de 40 anos, deixou, até
esta terça-feira (5), 134 mortos e 199 desaparecidos.
O histórico da barragem 1
A estrutura que recebia rejeitos de minério de ferro em Brumadinho
começou a ser projetada em 1974 e foi finalizada em 1976, quando começou
a operar. Do início de seu funcionamento até 2007, ela cresceu 63
metros (uma média de dois metros por ano). Barragens de rejeitos estão
permanentemente em obras porque são feitas por camadas, num processo
chamado de alteamento (até 2007, nove alteamentos foram feitos). A 1
teve diversos projetistas e foi tocada por diferentes empreiteiras ao
longo dos anos.
A Vale só assumiu a direção da Mina Córrego do Feijão em 2003. As
atividades no local começaram em 1956, sob responsabilidade da Companhia
de Mineração Ferro e Carvão. Em 1973, três anos antes de a barragem
começar a operar, passou para o controle da Ferteco Mineração, até ser
transferida para a Vale, 30 anos depois. A mina empregava 613
funcionários diretos e 28 terceirizados até o final de 2018.
Em 2007, a parede frontal da barragem tinha 81 metros de altura (pouco
mais de duas vezes o tamanho do Cristo Redentor, no Rio). Diferentemente
do que se pensava, ela misturou dois tipos de alteamentos. Começou a
montante (quando os “degraus” crescem para dentro do reservatório) e, em
1984, cresceu pelo modelo de linha de centro (ou seja, a estrutura é
erguida para o alto, em linha reta). Em 1990, o método a montante foi
retomado.
Os problemas
Em seu trabalho, Silva chama a atenção para um detalhe ocorrido no
quarto alteamento, realizado em 1995: o eixo da parede frontal foi
deslocado 60 metros para o interior do reservatório. Isso significa que o
próximo degrau seria construído mais ao fundo, em cima do rejeito
anteriormente depositado, o que aproximava a parede de contenção da
barragem dos rejeitos com mais água (quanto mais distante a lama
permanecer da frente da barragem, menor o risco).
“Essa decisão foi tomada no sentido de se garantir uma maior condição de
segurança para a estrutura. Embora satisfatória do ponto de vista
geométrico por parte da projetista, o sistema de fluxo interno à
barragem não se mostrou adequado, induzindo o aparecimento de diversas
surgências ao longo do pé do dique do quarto alteamento e rápida
elevação das leituras piezométricas”, escreve o engenheiro.
As surgências a que Silva se refere são espécies de vazamentos ou
aparecimento de bicas d’água, que podem sinalizar que o material interno
está sendo carregado para fora, configurando um risco de ruptura. Os
piezômetros são aparelhos que medem o nível de água na estrutura e
precisam ser monitorados constantemente.
Uma investigação conduzida pela Samarco em 2016 mostrou que uma
alteração geométrica no eixo, com a criação de um recuo na forma de um
S, foi o que levou ao desastre com a barragem de Fundão, em Mariana. O
método de recuo do eixo não é recomendado por engenheiros, por ser uma
solução que apresenta riscos.
A falta de diretrizes
Silva diz em seu estudo que, de 1976 a 2005, ou seja, por quase 30 anos,
“a barragem era operada sem uma diretriz quanto à disposição dos
rejeitos”. “Esta operação ao longo dos alteamentos da primeira fase
resultou na formação de um depósito de rejeito não uniforme”, escreveu.
Nas barragens, os rejeitos arenosos, que ficam à frente, precisam ser
separados dos rejeitos finos (lama) jogados ao fundo. Manuais de
operação de barragens estipulam até uma distância mínima da “praia”
(formada pela areia) para manter a estrutura segura. No caso de Fundão, a
praia tinha que ter, no mínimo, 200 metros. Uma distância menor
significava risco, porque a lama (com água) estaria muito próxima da
parede de contenção.
Apenas em 2006, afirma o engenheiro, houve uma mudança no método de
disposição dos rejeitos na barragem 1 “e um entendimento melhor quanto à
importância desta operação”.
Silva ressalta, no estudo, que o “manejo da disposição dos rejeitos e o
controle do nível da água do reservatório constituem aspectos essenciais
para a garantia da segurança da estrutura”.
Os pontos suscetíveis
O engenheiro da Vale afirma que não havia uma “homogeneidade do sistema
de disposição de rejeitos”, por causa de “problemas da falta de um
controle efetivo quando da implantação da primeira fase do
empreendimento”. Sem separação efetiva entre lama e areia, havia áreas
críticas espalhadas pela estrutura.
Ele identifica “nove camadas com maior potencial ou susceptibilidade à
liquefação”, mas define como “pouco provável” um gatilho para
desencadear o processo. Esse gatilho pode ser uma perturbação, como uma
movimentação de terra, por exemplo.
Para ele, não haveria a necessidade de avaliar potenciais riscos de
ruptura por liquefação, pois “o potencial do gatilho é baixo em função
da gestão operacional da barragem 1”. Silva elogia a equipe responsável
pela manutenção do reservatório.
“Os procedimentos operacionais da barragem 1 da Mina do Córrego do
Feijão incluem o controle absoluto do nível de água do reservatório por
meio de um sistema extravasor dotado de stop logs [pequenas comportas], a
manutenção de uma praia de rejeitos com extensão mínima de 100 m e uma
gestão no manejo da disposição dos rejeitos feito por uma equipe técnica
bastante qualificada. Estes elementos, associados aos resultados
positivos das análises desenvolvidas nesta dissertação, garantem uma boa
segurança do empreendimento e seu baixo potencial a gatilhos de
liquefação estática”, escreve.
O Nexo ouviu o doutor em engenharia e professor José Marques Filho,
vice-presidente do Comitê Brasileiro de Barragens. Ele afirma que
controlar a água em barragens como a da Vale é essencial para manter sua
segurança e impedir que ocorra a liquefação.
Como ocorre o processo de liquefação?
JOSÉ MARQUES FILHO As partículas [do rejeito] são muito fininhas, muito
pequenas. Algumas são arenosas, outras são argilosas, e têm cargas
elétricas. Se você pegar uma massinha com pouca água, você consegue
moldar e fica durinha. Quanto mais seco estiver, mais duro vai ficar.
Por isso que você compacta. Quando vai tendo mais água e descargas
elétricas, esse material começa a ficar mais separado um do outro, em
suspensão, e fica muito deformável, porque aquele atrito de partícula
com partícula começa a diminuir, assim como a adesão entre elas. Então,
elas se separam. É como se houvesse uma suspensão, e o material se
movimenta, porque a água passou a ser predominante com relação à argila.
Conforme vai aumentando a quantidade de água, vai aumentando a solução
líquida.
Como ocorre numa barragem esse processo, que tem a parede frontal mais
seca e arenosa para barrar a água ao fundo?
JOSÉ MARQUES FILHO Se você tiver bastante água no meio daqueles poros,
qualquer mudança que você tenha, a força da água vence e passa a ser uma
solução. Pode não ser o material da frente que teve a liquefação, pode
ser o de trás, mas se ele se liquefazer, ele vai empurrar o da frente.
Uma coisa é o material sólido, você pode colocar um em cima do outro. Se
você colocar um material mais úmido ele escorre, porque ele faz uma
força lateral.
Então para manter em segurança é preciso tirar a água?
JOSÉ MARQUES FILHO Tem que tirar, drenar e não pode perturbar. Porque às
vezes ele está quieto, e se você perturba, ele se mexe e cai. Existem
várias maneiras. Pode ser uma liquefação estática e dinâmica. O material
está bem no limite de ficar fluido, aí você cutuca e ele escorre.
E essa perturbação pode ser o quê?
JOSÉ MARQUES FILHO Pode ser um sismo ou você pode estar escavando perto.
Pode ser um monte de coisa. Se mexeu o maciço ou se você fez furos
perto, pode gerar um problema. O ideal é estar com os drenos sempre
funcionando, controlando a barragem para que não tenha esse estado de
solução.
O sr. viu o vídeo da ruptura da barragem? Houve liquefação?
JOSÉ MARQUES FILHO Pode ter sido, sim. Pode ser também uma mistura de
fenômenos, porque tem uma parte arenosa, argilosa, mas há uma chance de
ter sido liquefação. Eu não posso falar com certeza.
ESTAVA ERRADO: A primeira versão deste texto nomeou de forma equivocada o
trabalho de mestrado de Washington Pirete da Silva. Na realidade, o
termo correto é dissertação, e não tese. O texto foi corrigido às 11h30
de 6 de fevereiro de 2019.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/02/05/O-hist%C3%B3rico-da-barragem-da-Vale.-E-o-risco-de-liquefa%C3%A7%C3%A3o
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