MP pede suspensão de licenciamento de incineradora de lixo em Santos
José Alberto Gonçalves Pereiraquarta-feira, 28 outubro 2020 18:52
São Paulo – O Ministério Público Estadual recomendou à Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) que suspenda o processo de licenciamento ambiental de uma incineradora de lixo prevista para ser instalada na área continental de Santos, no litoral paulista. Para o MP, o licenciamento só poderia ser retomado após o Plano Regional de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos da Baixada Santista (PRGIRS/BS) ser aprovado por um colegiado metropolitano com participação da sociedade civil, como prevê o Estatuto da Metrópole. Aprovado o plano, o colegiado deveria definir a combinação tecnológica mais adequada dos pontos de vista ambiental, econômico e social para o tratamento e a destinação final do lixo da região.
O PRGIRS/BS foi aprovado em 4 de abril de 2018 pelo Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana da Baixada Santista (Condesb), composto pelos prefeitos de nove cidades e nove representantes do governo paulista, sem a participação da sociedade civil. Chama a atenção que o projeto da Unidade de Recuperação Energética (URE) Valoriza Santos, que queimará lixo para gerar eletricidade, não tenha sido discutido pelo Condesb, visto que a usina é anunciada pelo empreendedor como a solução para o tratamento de aproximadamente 2 mil toneladas de resíduos sólidos geradas diariamente nos municípios da Baixada Santista. O próprio prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa (PSDB), não pautou o assunto nas reuniões do Condesb, que ele preside.
Outro problema grave apontado pelos promotores é o local escolhido para receber a URE Valoriza. Trata-se de área vetada pelo Zoneamento Ecológico-Econômico da Baixada Santista (ZEE/BS) para esse tipo de empreendimento. Como o zoneamento foi instituído por uma norma estadual, o Decreto 58.996/2013, a legislação municipal não pode ser menos restritiva que a do estado. Ou seja, a Cetesb nem poderia iniciar o licenciamento da URE Valoriza em local não previsto no ZEE-BS para receber a atividade de incineração de lixo.
No estudo e relatório de impacto ambiental (EIA/Rima) da URE, a Valoriza Energia SPE justifica a escolha de uma área no aterro sanitário do Sítio das Neves pela conveniência logística e porque ela é liberada para a disposição final de resíduos sólidos pela Lei de Uso e Ocupação do Solo da Área Continental de Santos (Lei Complementar 729/2011). Elaborado pela SGW Services, também responsável pelo EIA/Rima do projeto da URE de Barueri, o estudo da incineradora Valoriza Santos não menciona o decreto estadual que oficializou o ZEE-BS.
Contendo oito recomendações, o documento remetido à Cetesb é assinado pelas promotoras Almachia Zwarg Acerbi e Flávia Maria Gonçalves, do Grupo de Atuação e Defesa do Meio Ambiente (Gaema) do MP, e pelo promotor de Justiça do Meio Ambiente de Santos, Adriano Andrade de Souza.
A reportagem procurou a Cetesb e a Valoriza Energia SPE para que opinassem sobre o teor do documento do MP. Por meio de sua assessoria de imprensa, a Cetesb informou que “o processo de licenciamento segue em andamento e tais recomendações serão consideradas no momento das análises, juntamente com as informações complementares e esclarecimentos prestados pelo empreendedor”. A assessoria de imprensa da Valoriza Energia SPE respondeu que desconhece o documento do MP.
Investimento orçado em R$ 300 milhões, a Unidade de Recuperação Energética (URE) Valoriza Santos é um projeto da Valoriza Energia SPE, empresa controlada pelo grupo Diniz/Terracom, que responde há décadas pelos serviços de coleta e disposição final do lixo da maior parte da Baixada Santista. A URE será instalada no aterro sanitário do Sítio das Neves, operado pela Terrestre Ambiental, empresa do grupo Diniz/Terracom, com capacidade para incinerar as cerca de 2 mil toneladas de lixo recolhidas diariamente em sete das nove cidades da região e gerar 50 megawatts de energia elétrica, suficientes para abastecer um município de 250 mil habitantes.
Para os promotores, “o licenciamento da URE previamente à fixação do modelo de gestão de resíduos pelo Condesb implicará a imposição, por um particular – leia-se, o empreendedor –, à administração metropolitana, de um modelo de gestão regional resíduos, em detrimento da discricionariedade de escolha dos integrantes do Conselho Metropolitano”. Segundo o MP, o licenciamento ambiental da URE nessa circunstância violaria ao menos duas leis federais – o Estatuto da Metrópole e a Política Federal de Saneamento Básico.
Segundo o Estatuto da Metrópole (Lei Federal 13.089/2015), estado e municípios integrantes de regiões metropolitanas devem promover uma governança interfederativa das funções públicas de interesse comum, caso da gestão dos resíduos sólidos. Nos artigos 6º, 7º e 8º, o Estatuto da Metrópole preconiza que essa governança precisa respeitar o princípio da gestão democrática da cidade, incluindo “a participação de representantes da sociedade civil nos processos de planejamento e tomada de decisão” em instâncias colegiadas deliberativas.
Tendo em vista a urgência do assunto, o promotor Adriano Sousa pediu ao Procurador-Geral de Justiça, Mário Luiz Sarrubbo, que promova um mandado de injunção coletivo junto ao Tribunal de Justiça de São Paulo para assegurar o direito de participação popular no Condesb visando à elaboração, tomada de decisões e fiscalização de medidas relacionadas ao plano regional de resíduos sólidos. Na representação que protocolou em 30 de setembro passado na PGJ, o promotor propõe que o mandado de injunção preveja a destinação imediata à sociedade civil de 18 assentos no Condesb, ou seja, o mesmo número de cadeiras ocupadas pelo Poder Público no colegiado.
Mais audiências públicas
O MP também recomenda à Cetesb que determine ao empreendedor a realização de audiências públicas presenciais sobre o EIA/Rima da URE Valoriza em Bertioga, Guarujá, Santos, São Vicente, Cubatão, Praia Grande e Mongaguá, observando-se as Resoluções Conama 9/97 e 237/97. Segundo a 9/97, os órgãos de meio ambiente são obrigados a realizar audiência pública sempre que a julgarem necessária ou quando for solicitada por entidade civil, pelo MP ou por 50 ou mais cidadãos.
Licenças ambientais concedidas perdem a validade se a audiência pública requerida não for promovida em conformidade com a Resolução Conama 9/97, que também prevê a possibilidade de realização de mais de uma audiência pública sobre o mesmo projeto em função da localização geográfica dos solicitantes ou da complexidade do tema. Os próprios representantes da Valoriza Energia SPE admitiram que o assunto é bastante complexo para ser adequadamente esclarecido numa reunião de duas horas. A declaração foi dada numa reunião digital extraordinária do Conselho Municipal da Defesa do Meio Ambiente de Santos (Comdema), realizada no último dia 22 para a Valoriza Energia SPE apresentar o projeto da URE aos membros do conselho. Foi a primeira apresentação do projeto ao Comdema, embora a prefeitura santista esteja oficialmente ciente do empreendimento pelo menos desde janeiro passado.
No documento entregue à Cetesb, os promotores discorrem sobre “sérios indícios” de que vários participantes da audiência pública sobre o EIA/Rima promovida pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) em 1º de outubro por meio virtual “tiveram suas falas direcionadas por terceiros para elogiarem o empreendimento”. Em um dos casos citados pelos promotores, “o áudio aberto permitiu escutar claramente a voz de uma pessoa o orientando a tomar cuidado para que os espectadores não percebessem que ele estava lendo sua fala”.
Para o MP, “trata-se de mais um “efeito colateral” indesejado das audiências virtuais, revelador de que podem estar facilitando a utilização das audiências públicas como um instrumento de distorção da percepção do órgão licenciador e dos espectadores quanto ao nível do sentimento social de reprovação de um empreendimento”.
O MP também lembra que os catadores de recicláveis devem ser ouvidos sobre o projeto da URE Valoriza. “Ora, é fato notório que a condição econômica dos catadores é um obstáculo para que possam acessar, por meio de ferramentas tecnológicas, o ambiente virtual em que se dará a audiência pública, resultando no seu alijamento do processo de discussão, em violação ao seu direito constitucional de informação e de participação democrática”, assinala o documento dos promotores.
Três irregularidades apontadas no documento do MP foram reveladas em reportagem publicada em ((o))eco em 13 de outubro sobre falhas nos procedimentos da prefeitura de Santos para aprovar o estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) da URE Valoriza. São elas: a omissão no EIV e no EIA/Rima sobre potenciais impactos em um futuro reservatório de água da Sabesp localizado perto da URE; a falta de estudo comparativo entre as 12 alternativas tecnológicas para a gestão do lixo previstas no PRGIRS/BS; e a escolha de uma área para a URE não recomendada pelo plano regional de resíduos sólidos.
O MP faz oito recomendações sobre o processo de licenciamento ambiental da URE Valoriza Santos no documento enviado à Cetesb no último dia 20:
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- Suspender o processo de licenciamento ambiental até que o Condesb aprecie as propostas do plano regional de resíduos sólidos com a participação da sociedade civil, conforme determina o Estatuto da Metrópole.
- Fornecer justificativas técnicas e jurídicas para a continuidade do licenciamento ambiental de um empreendimento em local não permitido pelo Zoneamento Ecológico-Econômico da Baixada Santista (ZEE-BS).
- Realizar audiências públicas presenciais sobre o EIA/Rima nas sete cidades da Baixada Santista que enviarão lixo para ser incinerado na URE Valoriza.
- Determinar ao empreendedor que complemente o EIA-Rima com um estudo comparativo sobre todas as alternativas tecnológicas existentes para o tratamento do lixo urbano, incluindo as analisadas no plano regional. Segundo o documento do MP, o EIA/Rima não atendeu ao que estabelece o Manual de Licenciamento Ambiental da Cetesb, limitando-se a um “estudo conveniente apenas para a defesa da tecnologia escolhida pelo próprio empreendedor”, a mass burning (queima de massa bruta).
- Considerar no licenciamento a Política Estadual de Mudanças Climáticas (PEMC), que se preocupa com projetos que geram gases de efeito estufa, caso do CO2, liberado na queima dos resíduos, e do metano, emitido no processo de estabilização da fração orgânica do lixo.
- Exigir da Valoriza Energia SPE esclarecimentos complementares no EIA-RIMA sobre a taxa atual de coleta seletiva dos sete municípios que remeterão lixo à URE Valoriza, de modo a saber se os planos regional e municipais de resíduos sólidos estão sendo cumpridos.
- Cobrar do empreendedor proposta para atender ao artigo 24 da Resolução Conama 316/2002, que prevê metas bienais crescentes para a segregação de resíduos, e aos artigos 9º e 10º da Resolução SIMA 47/2020, que trata da separação de recicláveis e da fração úmida do lixo na preparação do combustível derivado de resíduos (CDR).
- Demandar do empreendedor que leve em conta nos estudos dos riscos à saúde humana a Decisão de Diretoria da Cetesb 34/2015 e eventuais efeitos da operação da URE no futuro reservatório de água da Sabesp, situado a pouco mais de 1 km da usina de lixo.
Agência silencia sobre ausência de usina de lixo nas reuniões do Condesb
A reportagem questionou a Agência Metropolitana da Baixada Santista (Agem-BS) sobre a ausência de discussão do projeto da URE Valoriza no Conselho de Desenvolvimento da Baixada Santista (Condesb), presidido pelo prefeito de Santos, Paulo Alexandre Barbosa.
Sem responder a pergunta, a agência declarou que “o empreendimento em questão ainda está em fase de licenciamento ambiental e a Agem, que atua como braço executivo do (Condesb), debate questões relativas ao tema de resíduos sólidos no âmbito da Câmara Temática de Meio Ambiente e Saneamento [CTMA]”.
A Agem-BS também não explicou por que o projeto da URE Valoriza Santos está ausente das discussões da CTMA, nem as razões para o longo período sem reuniões dessa câmara temática. Seu último encontro ocorreu em junho de 2019.
A Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regional (SDR) complementou as respostas da agência, vinculada à pasta. Explicou que a CTMA articula os municípios da Baixada Santista na elaboração de programas de redução e reciclagem, sem responder à solicitação de dados atualizados sobre as taxas de coleta seletiva e compostagem nas nove cidades da região e informações agregadas regionalmente sobre os dois procedimentos.
Segundo a SDR, os nove municípios da RMBS assinaram protocolo de intenções para seguir as propostas do plano regional. A pasta, porém, não apresentou um balanço do cumprimento das metas do PRGIRS/BS. Para auxiliar as prefeituras na execução do plano regional, a Agem-BS solicitou ao Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro) em junho de 2019 a liberação de R$ 1,137 milhão para o projeto de implementação das ações do PRGIRS/BS. Consultado pela reportagem, o Fehidro informou que o projeto permanece em análise, sem fornecer prazo final para sua decisão quanto ao pedido da agência.
A Prefeitura de Santos informou que a Lei de Uso e Ocupação do Solo da Área Continental (Lei Complementar 729/2011) permite a instalação do projeto que prevê a URE na área indicada, no caso, o Sítio das Neves.
Para Consema, internet propicia ampla participação
Antes do envio do documento à Cetesb, a reportagem havia questionado a secretaria-executiva do Conselho Estadual do Meio Ambiente de São Paulo (Consema) a respeito de críticas levantadas por ambientalistas da Baixada Santista sobre o que veem como um “jogo de cartas marcadas”, com participação limitada da sociedade civil na discussão do projeto da URE Valoriza.
Por meio do departamento de imprensa da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sima), a secretaria-executiva do Consema afirmou que “a audiência pública para debate do EIA/Rima da URE Valoriza Santos cumpriu todos os requisitos legais pertinentes, atingindo os objetivos do evento”.
Sobre o abaixo-assinado com mais de 700 adesões pedindo a realização de audiência pública nas nove cidades da Baixada Santista, protocolado em 5 de agosto pela ONG Ecophalt, de Praia Grande, o órgão esclareceu que informou à entidade que “o formato de realização pela internet possibilita ampla e direta participação e acompanhamento, não apenas aos munícipes de Santos, onde se localiza o projeto, mas a qualquer interessado no debate sobre o assunto (…)”.
A secretaria-executiva do Consema não comentou o pedido da reportagem para que avaliasse a qualidade da audiência pública ocorrida em 1º de outubro, tendo em vista os indícios de que diversas falas foram previamente direcionadas para elogiar o empreendimento. A íntegra das respostas do órgão pode ser consultada aqui.
A Valoriza Energia SPE não respondeu às questões enviadas pela reportagem a respeito da audiência pública realizada pelo Consema sobre o EIA/Rima da URE Valoriza Santos.
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