O projeto que tenta resolver ‘briga’ entre agricultores e arara ameaçada de extinção na Caatinga
Espécimes de arara-azul-de-lear cresceram em número, para alívio de conservacionistas; mas, como seu habitat natural está desmatado, elas se voltaram aos milharais da região para se alimentar.
Graças a projetos de recuperação e proteção de sua população, o número de exemplares de arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari) — uma espécie ameaçada de extinção, que vive exclusivamente na região conhecida como Raso da Catarina, na Caatinga do Nordeste da Bahia — aumentou de apenas 60 para mais de 1,7 mil nos últimos 40 anos.
É uma boa notícia, sem dúvida, mas que trouxe um efeito colateral indesejado, não previsto.
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Devido à escassez de sua comida natural preferida, o coquinho licuri (coquinho pequeno que dá em cachos grandes), as aves se voltaram aos milharais, entrando em conflito com os agricultores do entorno da área de proteção onde vivem.
De acordo com a agrônoma e mestre em Ciências Florestais Kilma Manso Raimundo da Rocha, da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), que atua na região desde 2005, a conservação da arara-azul-de-lear se deve a um conjunto de esforços de diferentes instituições, responsáveis, dentre outras ações, pela proibição do tráfico de animais silvestres e à caça furtiva; preservação do habitat da espécie; pesquisas sobre ela e seu ambiente; mitigação dos conflitos com produtores rurais e educação ambiental.
“O aumento da população de araras é o resultado direto da integração dessas ações, quer desenvolvidas em conjunto ou de forma isolada, há mais de três décadas”, diz.
Mas com o aumento do número das aves vieram os conflitos com os agricultores, principalmente com os plantadores de milho, que, na região, serve de alimentos para as pessoas, o gado e as galinhas.
E agora, contra a vontade dos produtores, alimenta também as araras-azuis-de-lear. “Infelizmente, a espécie é considerada praga por eles na região do Raso da Catarina, por atacar sistematicamente milharais”, conta Kilma.
Segundo ela, os ataques às lavouras de milho ocorrem em diversas fases de cultivo, mas principalmente durante o período de amadurecimento das espigas.
“E por causa do grande número de araras que compõem os bandos que atacam os milharais, os danos costumam ser bastante severos, resultando em perda de praticamente toda a área cultivada e, por conseguinte, acarretando sérios prejuízos aos agricultores“, explica Kilma.
Um bando grande delas, por exemplo, é capaz de destruir um hectare de lavoura (cerca de 1,5 campos de futebol) em um ou dois dias.
No contra-ataque em defesa de suas plantações, os produtores usam pedras, paus e até armas de fogo.
Desmatamento
Segundo Kilma, os conflitos ocorrem por dois motivos principais: o crescimento vertiginoso da população de araras, principalmente nos últimos 15 anos, e o aumento significativo das áreas desmatadas, com a destruição da vegetação nativa, que fornecia alimentos para as aves.
Entre as plantas que oferecem comida para as araras-azuis-de-lear e que tiveram sua área diminuída está a palmeira licurizeiro, que produz o coquinho licuri, a iguaria preferida delas.
Também contribuíram as secas, cada vez mais constantes e prolongadas, que reduzem a oferta de alimentação natural na caatinga.
“Então temos por um lado, um número muito maior de araras em busca de comida e de outro um aumento contínuo da área desmatada”, explica Kilma.
“Resumindo, temos mais aves e menos alimentos da vegetação nativa. Então, com isso elas se lançam nas áreas agrícolas.”
Recompensa
Para mitigar o conflito entre os agricultores e as aves, Kilma criou a ONG ECO — Organização para Conservação do Meio Ambiente, que desenvolve o Projeto para Ressarcimento de Danos aos Milharais Decorrentes de Ataques de Araras-Azuis-de-Lear, que repõe aos produtores a mesma quantidade milho que elas destroem.
“O objetivo principal da iniciativa é evitar atitudes hostis (muitas das quais resultantes em morte das aves) contra as araras, por parte dos agricultores que têm suas lavouras atacadas e, muitas vezes, completamente destruídas”, explica Kilma.
A iniciativa foi concebida, em 2005, pela americana Linda Wittkoff, hoje falecida, que veio morar no Brasil com o marido, William, em 1961, e na época presidia a Fundação Lymington. Ela e a Parrots International, uma ONG de preservação dos Estados Unidos, se tornaram as instituições pioneiras no financiamento do projeto.
Hoje, o projeto é financiado também por outras instituições nacionais e internacionais.
Kilma diz que a iniciativa tem contribuído para evitar conflitos entre as araras e os agricultores, assim como, indiretamente, para o aumento da oferta de alimentos disponíveis para as aves, pois os produtores de milho, por terem a certeza de que serão ressarcidos dos danos em suas lavouras, terminam por permitir que elas se alimentem livremente das plantações.
“Isso acaba favorecendo a melhoria das condições de vida delas, pois é maior a oferta de alimentos para a totalidade de sua população nativa existente na região”, explica.
Os resultados do Projeto para Ressarcimento de Danos aos Milharais Decorrentes de Ataques de Araras-Azuis-de-Lear mostram a distribuição de, aproximadamente, 8,3 mil sacas de milho de 60 kg, que beneficiaram cerca de 1 mil agricultores familiares, cujas lavouras foram destruídas pelos ataques das aves ao longo dos últimos 15 anos.
Por isso, a situação está hoje mais controlada, ainda que os ataques tenham alcançado uma área de abrangência muito maior que no começo do projeto.
“Mesmo com um maior número de milharais atacados e, por conseguinte, um número igualmente maior de agricultores afetados, a percepção negativa que eles tenderiam a construir e manter sobre essas aves é sistematicamente desconstruída pelas nossas ações”, comemora Kilma.
Isso ocorre principalmente porque os danos provocados aos milharais são integralmente ressarcidos, ao que se soma o fato de que os agricultores e demais moradores das áreas rurais abrangidas pelo projeto passam a ter um melhor entendimento de todo o contexto dos ataques às lavouras.
“Eles agora entendem que é uma resposta das araras à falta de alimentos oferecidos pela vegetação nativa da Caatinga, que tem sido bastante desmatada”, diz Kilma.
Fonte: G1
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