quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O mundo mais urbanizado e as cidades virando saunas

 

O mundo mais urbanizado e as cidades virando saunas

 

O mundo mais urbanizado e as cidades virando saunas, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

“Todos os nossos problemas ambientais se tornam mais fáceis de resolver com menos pessoas e mais difíceis e, em última instância, impossíveis de resolver com cada vez mais pessoas”
David Attenborough

[EcoDebate] O mundo está ficando cada vez mais urbanizado, tanto em termos absolutos, quanto em termos relativos. A população urbana era de 750 milhões de habitantes em 1950, representando 29,6% da população total. Em 2008, a população urbana global chegou a 3,4 bilhões de habitantes, representando 50% da população total. A partir desta data o mundo passou a ter maioria da população vivendo em cidades.

Em 2020, a população urbana chegou a 4,4 bilhões de pessoas (56,2% da população total). Em 2050, deve haver 6,7 bilhões de habitantes urbanas, representando mais de dois terços (68,4%) do total populacional, conforme mostra o gráfico abaixo da Divisão de População da ONU.

população urbana absoluta e relativa no mundo: 1950-2050

A urbanização tem sido o principal vetor da transformação socioeconômica e demográfica do Planeta e do processo de modernização. Nos últimos 2 séculos, as cidades lideraram as inovações econômicas, tecnológicas, científicas e culturais que reconfiguraram as estruturas familiares, a organização social e as relações de trabalho, possibilitando avanços sem precedentes nos direitos de cidadania de parcelas cada vez mais amplas da população.

O processo de urbanização já trouxe muitos ganhos históricos, mas poderá trazer vantagens ainda maiores nas próximas décadas. As transições urbana e demográfica são dois fenômenos fundamentais da modernidade e acontecem de forma sincrônica. como mostraram Martine, Alves e Cavenaghi (2013).

Também de forma sincrônica ocorrem o processo de modernização e de aquecimento global. Entre 1770 e 2020, a economia global cresceu 135 vezes, a população mundial cresceu 9,2 vezes e a renda per capita cresceu 15 vezes. Este crescimento demoeconômico foi maior do que o de todo o período dos 200 mil anos anteriores, desde o surgimento do Homo sapiens. Mas todo o crescimento e enriquecimento humano ocorreu às custas do desequilíbrio climático que prevaleceu no Holoceno (últimos 12 mil anos).

Em função do crescimento das atividades antrópicas, as emissões globais de CO2 que estavam em 2 bilhões de toneladas em 1900, passaram para 6 bilhões de toneladas em 1950, chegaram a 25 bilhões de toneladas no ano 2000 e atingiram 37 bilhões de toneladas em 2019. A concentração de CO2 na atmosfera que permaneceu abaixo de 280 partes por milhão (ppm) durante todo o Holoceno, subiu rapidamente após a Revolução Industrial e Energética. A concentração de CO2 chegou a 300 ppm em 1920, atingiu 317 ppm em março de 1960 e pulou para 417 ppm em maio de 2020. Em consequência do efeito estufa, as temperaturas do Planeta estão subindo e acelerando as mudanças climáticas e seus efeitos danosos sobre a vida na Terra.

Indubitavelmente, o mundo vai ter um grande crescimento urbano até 2050 e também terá um aumento do aquecimento global. Mas a questão que se coloca é a seguinte: é melhor enfrentar os desafios do crescimento populacional na cidade ou no campo?

Existem muitas pessoas saudosistas que falam em desurbanização ou até mesmo “desmigração”. Alguns sonham com uma volta ao rural e com uma casa no campo, de preferência de “pau-a-pique e sapê, com carneiros e cabras pastando solenes no jardim”, como na música de Zé Rodrix. Mas o próprio mundo rural atualmente é bastante diferente do que foi no passado e a urbanidade já avançou para além das cercas que dividem o campo da cidade.

Diversos estudos mostram que os indicadores sociais e econômicos melhoram com o aumento da urbanização. Os países mais urbanizados tendem a ter maior renda, maior nível educacional, menor mortalidade infantil, maior esperança de vida, maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), menores níveis de violência, menor proporção de pessoas passando fome, menor mortalidade materna, menor desigualdade de gênero, etc. Em geral, a concentração urbana permite ganhos de escala e ganhos do efeito de aglomeração, ao contrário da dispersão rural ou das pequenas cidades.

David Owen, no livro Green Metropolis, mostra que os impactos ambientais (emissões, resíduos, ou consumo de terra per capita) é menor nas cidades densas do que nas cidades espraiadas ou nos países com população rural dispersa. Ele mostra que Nova Iorque, especialmente Manhattan, é muito mais eficiente no uso da energia e tem menor pegada ecológica per capita do que cidades como Washington ou Los Angeles. Por exemplo, a verticalização das moradias e escritórios torna mais eficiente o transporte coletivo, pois seria impossível manter metrôs e trens de alta velocidade em áreas rurais ou mesmo em áreas suburbanas de baixa densidade populacional. O fato é que a urbanização é uma tendência que veio para ficar e vai se expandir nas próximas décadas.

No artigo “Global multi-model projections of local urban climates” de Lei Zhao et. al., publicado na revista Nature Climate Change, em 04/01/2021, os autores usam uma nova técnica de modelagem para estimar que, no ano 2100, as cidades do mundo podem chegar a um aquecimento de 4,4º Celsius em média. Isto, deixaria muito para trás as metas do Acordo de Paris. Em geral, os modelos climáticos globais tendem a desprezar as áreas urbanas, pois estas representam apenas 3% da superfície terrestre do planeta. As cidades são apenas um pontinho do território global. Contudo, o artigo sugere que cidades mais quentes podem ser catastróficas para a saúde pública urbana, que já sofre os efeitos do aumento do calor. Entre 2000 e 2016, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, o número de pessoas expostas a ondas de calor saltou 125 milhões e o calor extremo ceifou mais de 166.000 vidas entre 1998 e 2017. Assim, o crescimento das cidades e o aumento do aquecimento global – provocando ilhas de calor nas cidades – podendo gerar uma situação de “cidades saunas”, tornando inabitáveis muitas megacidades do mundo, principalmente nas áreas tropicais. Milhões de pessoas, especialmente idosos e crianças, podem ser vítimas das ondas letais de calor.

Para conter o aquecimento global é preciso haver um decrescimento demoeconômico. Voltar para o meio rural não resolve o problema.

A solução é manter a taxa de urbanização em elevação, mas reduzir o tamanho das cidades por meio da redução demográfica. Assim, o mundo poderia ter maior proporção de habitantes nas cidades, mas as cidades seriam menores em função de um menor número de pessoas em decorrência da transição demográfica e da permanência de taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição.

Artigo de Jim Robbins (BBC Future/Yale e360, 23 novembro 2020) mostra a natureza está passando por um processo de extinção em massa à medida que habitats naturais são alterados pela atividade humana. À medida que o ser humano continua a expandir rapidamente seu domínio sobre a natureza — desmatando e incendiando florestas, exterminando espécies e interrompendo funções do ecossistema — um número cada vez maior de cientistas e conservacionistas influentes acredita que proteger metade do Planeta de alguma forma será a solução para mantê-lo habitável. A ideia ganhou notoriedade pela primeira vez em 2016, quando Edward O. Wilson, o importante biólogo conservacionista, publicou a sugestão no livro “Da Terra Metade: O nosso planeta luta pela vida”.

Desta forma, a melhor maneira de lutar contra o aquecimento global é concentrar a população global nas cidades, mas em cidades menores, com mais áreas verdes, com agricultura urbana e com uma economia sustentável, aumento das áreas anecúmenas e com regeneração ecológica do mundo.

José Eustáquio Diniz Alves
Colunista do EcoDebate.
Doutor em demografia, link do CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

Referências:
ALVES, JED. A urbanização e o crescimento das megacidades, Ecodebate, 22/04/2015
http://www.ecodebate.com.br/2015/04/22/a-urbanizacao-e-o-crescimento-das-megacidades-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/

George Martine, Jose Eustáquio Alves, Suzana Cavenaghi. Urbanization and fertility decline: Cashing in on Structural Change, IIED Working Paper. IIED, London, December 2013. ISBN 978-1-84369-995-8 https://pubs.iied.org/10653IIED/
https://pubs.iied.org/pdfs/10653IIED.pdf

Lei Zhao et. al. Global multi-model projections of local urban climates. Nature Climate Change, 04 January 2021
https://www.nature.com/articles/s41558-020-00958-8

JIM ROBBINS. O plano para transformar metade do mundo em reserva ambiental, BBC Future / Yale e360, 23 novembro 2020
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-54841832

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 27/01/2021

 

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