A conversa, hoje cedo, na padaria onde sempre tomo um cafezinho, foi a retirada de dois ônibus aqui da região. Os dois faziam um trajeto fundamental para quem presta serviço na vizinhança – e não são poucas pessoas – deixando-as na Central do Brasil. Todos os dias, por volta das 17h, era comum ver uma fila se formar no ponto final. Os veículos saíam lotados e chegavam lotados por volta das 7h, 8h da manhã. Assim mesmo, foram extintos.

Em conversa com um técnico da Prefeitura encarregado de informar a população sobre as mudanças urbanas na “Cidade Olímpica”, fiquei sabendo que uma das ideias é desafogar as ruas pequenas do incômodo de terem que abrigar carros enormes. Nesse caso, a mudança foi a seguinte: em vez de duas linhas de ônibus, a mesma ruazinha pequena está sendo utilizada por uma linha de ônibus. Se, para o trânsito local e para os moradores, é uma troca quase irrelevante, com certeza para quem usava os ônibus como transporte de casa para o trabalho, não é. A única opção que esses trabalhadores, prestadores de serviço, têm de agora em diante para chegar aqui, é andar pouco mais de um quilômetro desde onde fica o último ponto da linha que vem da Central do Brasil.

Alguém lembrou, na conversa da padaria, que andar faz bem. Concordo plenamente. Tenho como hábito de saúde fazer uma longa caminhada diária, subindo e descendo ruas, de cerca de uma hora. Com roupa adequada, calçado adequado, sabendo que depois disso posso chegar em casa, tomar um banho, beber água e começar o dia de trabalho. Isso é bem diferente do que a rotina de muitos trabalhadores que moram bem longe e que, para chegarem aqui por volta de 8h,  precisam começar a “viagem” às 6h ou antes. Depois de um trem lotado e de outra baldeação, ter que encarar um quilômetro a pé, muitas vezes com bolsa pesada e sapato não apropriado... eu não chamaria de exercício ideal.

Ampliamos, assim, a reflexão sobre mobilidade urbana para um motivo importante: o bem-estar da população que precisa de transporte público. Não só a lógica de quem quer fugir dos engarrafamentos.

A mobilidade urbana é um dos seis estudos que o Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (ONU-Habitat) , em parceria com o governo brasileiro, está disponibilizando em seu site  com recomendações para implementação de políticas públicas. A ideia é que esses documentos tenham um papel importante na preparação da Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III), que acontece daqui a sete meses, em Quito, no Equador. No pano de fundo, o desejo de que tais estudos possam ser úteis para a redução das desigualdades e para a promoção de um desenvolvimento urbano sustentável.

Na primeira parte, o texto faz críticas ao uso indiscriminado do solo e à expansão urbana sem planejamento. São dois fatores que têm efeitos diretos sobre a eficiência do transporte público. Numa cidade baseada na horizontalização, e São Paulo é um exemplo dado pelos pesquisadores, esse formato prejudica o acesso dos sistemas coletivos de transporte. É necessário ter aglomeração de demanda, dizem eles, para que as empresas de ônibus ou do Metrô ou de trens tenham lucro e queiram continuar fornecendo o serviço. A questão é: o que elas consideram lucro suficiente?

“Cidades pouco densas não conseguem sustentar sistemas de alta capacidade; e redes de baixa capacidade precisariam de vários transbordos para acessos específicos. Assim, em uma cidade pouco densa, o sistema de transporte coletivo é pouco eficiente, logo, existirá uma preferência por viagens individuais que irão saturar o trânsito nas zonas centrais”, diz o texto do estudo.

A questão é que as cidades crescem por conta do desenvolvimento econômico, o que torna as viagens mais longas e aumenta a necessidade de mais viagens.

“A formação de novas localizações para o trabalho, estudo, serviços e lazer, bem como o aumento no número de dependentes ou o crescimento da renda impulsionam a geração de mais viagens. A necessidade de mais tempo para cumprir todos os compromissos sociais e econômicos de uma família, que nesse tipo de urbanização se encontram mais distantes, é, em parte, respondida com o uso do automóvel como meio de transporte”, diz o estudo.

O resultado é que, segundo pesquisa feita em 2010 pelo Banco Mundial, nos últimos 20 anos, a média do número de veículos por  mil habitantes cresceu 6% nas nações membros da OCDE (os mais ricos, entre eles Noruega, França e Dinamarca). Já os indicadores de motorização do Brasil, China, Índia e Rússia cresceram em 89%, 213%, 50% e 34% respectivamente para o mesmo período, de 2003 e 2009. A cidade do Rio de Janeiro, no mesmo período, teve crescimento populacional de apenas 5%, enquanto o de automóveis foi de aproximadamente 50 %.

“O fenômeno é ainda mais preocupante, no Rio, se for adicionado o crescimento da frota de motocicletas (300% em 20 anos), que tem sido importante alternativa ao automóvel para enfrentar o congestionamento diário”, relata o texto.

Alguns dados indicam uma forte tendência de aumento do número de automóveis justamente nas camadas sociais de mais baixa renda, que precisam de transporte público. Em Bogotá, segundo o estudo, mesmo com a implementação do sistema Bus Rapid Transit (BRT), em 2000 a taxa de motorização aumentou, o que revelava a necessidade de políticas voltadas para pautar o uso do automóvel.

Como acontece com frequência em nosso tempo, que Milton Santos gostava de definir como “Um mundo confuso e confusamente percebido”, há várias maneiras de se ver e refletir sobre a mobilidade urbana. Se, por um lado, o baixo preço dos automóveis e dos combustíveis tem propiciado às pessoas de menor renda comprar um veículo para se locomover, por outro lado isso vem criando o caos urbano de que tanto nos queixamos. Sem falar na questão de absoluta relevância que é a poluição pelos gases de efeito estufa que geram as mudanças climáticas. Pensar em diminuir a compra de automóveis pode trazer também consequências econômicas que ninguém quer, como o desemprego e a consequente falta de renda.

O trabalho de quem se propõe a administrar uma cidade, portanto, somente no quesito mobilidade urbana já exige uma tremenda concentração, por exemplo, para planejar e organizar uma rede de transportes públicos coletivos que tenha capacidade para se articular com o desenvolvimento local. É o quesito número um  na lista de sugestões proposta no estudo que servirá de base para a Conferência de Quito em setembro. Há outras tantas, e cada uma dela vem acompanhada por reflexões bem detalhadas.

A questão central, no entanto, foge um pouco. Porque se estamos falando sobre o ir e vir de pessoas, é importante que elas sejam levadas em conta. No livro “Desenvolvimento à Escala Humana”, escrito por Manfred A. Max-Neef, Antonio Elizalde e Martin Hopenhayn, da coleção  Sociedade e Meio Ambiente edita pela Universidade Regional de Blumenau, os autores lembram que o desenvolvimento precisa ser orientado para a satisfação das necessidades humanas, o que “exige uma nova maneira de interpretar a realidade”.

No topo das sugestões dos três autores – um economista, um sociólogo e o outro filósofo, todos chilenos – está o de que aqueles que são escolhidos para implantar as políticas que vão nortear a vida dos cidadãos deixem a arrogância de lado. Os que sofrem na pele e no dia a dia os efeitos de políticas voltadas apenas à lógica desenvolvimentista precisam menos de “programas de conscientização” e mais de espaço para dizer o que pensam.

Termino com um trecho do livro, do qual recomendo a leitura:

“A criação de uma ordem política que possa representar as necessidades e interesses de uma população heterogênea é um desafio, tanto para um estado como para uma cultura democrática. É respeitar e encorajar a diversidade, em vez de controlá-la. Visando atingir este fim, o desenvolvimento precisa fomentar a existência de espaços locais, facilitar as micro-organizações e dar apoio à multiplicidade de matrizes culturais que fazem parte da sociedade civil”.