YARA SCHAEFFER-NOVELLI é professora da USP, sócia-fundadora do Instituto BiomaBrasil e membro do Grupo de Especialistas em Manguezal da União Internacional para a Conservação da Natureza - SSC/IUCN
Especial para a Folha
A linha de costa do Brasil tem extensão de cerca de 8.500 quilômetros e uma superfície de zona costeira, o espaço geográfico de interação do ar, do mar e da terra (que inclui seus recursos, renováveis ou não) da ordem de 600 mil quilômetros quadrados.
Nessa faixa, contamos com 463 municípios, ou 8% do total de cidades brasileiras. O número algumas inclui cidades de grande porte, como nove capitais.
É nesse espaço -caracterizado por ambientes especialmente sensíveis, vulneráveis e frágeis, devido à presença de ecossistemas como manguezais, estuários, marismas, lagunas e praias- que se encontra algo como 60% da população do país.
A interação entre os componentes desse sistema é um verdadeiro quebra-cabeça.
Temos uma zona costeira cujos limites não podem ser delineados, pois a própria linha de costa que determinaria a fronteira entre a terra emersa e o mar é dinâmica, variando com processos naturais, de ordem ambiental, e de origem antrópica, ou seja, induzidos pelo homem.
Entre os processos ambientais que geram impactos e alteram as feições dessa área litorânea, identificamos os geológicos, os climáticos e os decorrentes da própria dinâmica costeira, influenciada por tempestades, furacões, tormentas, ressacas e transgressões marinhas, quando o nível do mar sobe para perto do solo e causa inundação.
Esse último fator pode ser compreendido melhor quando se fala do aumento do nível do mar.
Estamos falando de cenários de elevação de 5,4 centímetros por ano neste século, segundo estudos conduzidos pelo físico e meteorologista José Marengo.
Esse avanço do mar em relação à terra emersa provoca inundações de água do mar nas cidades costeiras e contaminação do lençol freático, aumentando a sua salinidade.
Isso compromete a agricultura de pequena escala, além de causar o estreitamento de praias e a erosão da linha de costa, com perda de quarteirões inteiros.
Esse quadro quase sinistro pode ser equacionado a partir de mudanças ou de adaptações do comportamento dos seres humanos.
Esse avanço começa por admitir que seres vivos, manguezais e oceanos fazem parte de um mesmo sistema, o planeta Terra.
Os ciclos de vida, embora tenham suas peculiaridades, têm suas escalas de espaço e tempo próprias para se reproduzirem de forma sustentável, obedecendo às diferentes escalas produtivas.
É essa reprodução que irá repor os estoques explorados, desde que respeitem as taxas de reprodução das respectivas populações.
Esse respeito às taxas de "reposição" dos seres representa uma revisão nos moldes da sustentabilidade dos recursos naturais para retomada do desenvolvimento econômico sob bases duradouras, à semelhança do que foi proposto na década de 1970 pelo economista alemão E. F. Schumacher, no livro "O Importante é Ser Pequeno".
Atualmente lidamos com "mercados artificiais", onde são negociadas mercadorias que não foram geradas para serem "vendidas", como o meio ambiente, segundo o filósofo austríaco Karl Polanyi.
Com vista à sustentabilidade de ecossistemas complexos, como aqueles com que estamos lidando, é essencial que o uso dos recursos não comprometa a saúde ou a integridade dos sistemas em nenhum nível.
Cabe esclarecer que saúde e integridade não são sinônimos: saúde se refere ao presente e integridade faz referência a período de tempo mais abrangente, que lida com a habilidade de manutenção dos sistemas em um futuro ainda imprevisível.
Somos responsáveis pelo patrimônio herdado de nossos antepassados, de forma que ele passe para as futuras gerações. Elas, igualmente, serão responsáveis por esta cadeia de custódia.
A natureza é resiliente, capaz de auto-organização e de autorreparação. Como partes do sistema, precisamos apenas deixar de herança a saúde e a integridade deste "capital de múltiplas gerações".
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