quinta-feira, 5 de outubro de 2017

A importância das árvores mortas

A importância das árvores mortas

Por Marcos Rodrigues*

Mantenho em meu jardim três árvores mortas, que continuam em pé. Os jardineiros e paisagistas ficam horrorizados com minha decisão, aparentemente insana. Árvores mortas apodrecem, e seus galhos podem cair sobre transeuntes e residentes, levando-os à morte. Eu concordo.


A primeira delas é um ibirapitá de uns dez metros de altura e que morreu há cerca de doze anos. Aprendi que ibirapitás não têm vida muito longa, diferente dos milenares jequitibás. Os galhos foram apodrecendo e caindo. Os mais perigosos eu tive o cuidado de retirá-los com a ajuda de serrotes. Assim, ficou por ali, como um totem prateado, somente o tronco principal, de uns sete metros de altura e uns trinta a quarenta centímetros de diâmetro, ornamentando meu jardim. Certo dia, um pica-pau-carijó (Colaptes melanochlorus) começou a cavar um buraco.


Ficou dias martelando, com seu poderoso bico e infatigável pescoço um perfeito oco redondo, cuja entrada tinha cerca de menos de dez centímetros de diâmetro. Entre um turno de marteladas e outro, o pica-pau voava para uma sucupira-branca (Pterodon emarginatus) bem próxima e cantava suas notas agudas enquanto parecia descansar. Acostumou-se tanto à minha presença, que deixava que eu me aproximasse até três metros de distância; depois voava gloriosamente para a sucupira-branca. Ali botou ovos, criou os filhotes, trazendo-os insetos incansavelmente por vários dias quando, por fim, todos desapareceram. Esse ciclo se repetiu pelo menos por quatro primaveras. Todo ano o pica-pau ali aparecia, dava uma ajeitada no seu oco, criava sua prole, e desaparecia.


A partir de certo ano, o pica-pau desistiu de fazer do oco do ibirapitá sua morada, muito embora continue frequentando o jardim em busca de suas presas. Foi nesta ocasião que um bem-te-vi-rajado (Myiodnastes maculatus) apoderou-se do velho oco, e durante os dois anos seguintes botou seus ovos e criou seus ninhegos até estes alçarem voo.

Este ano fui obrigado a retirar o totem por motivos de segurança, pois a queda da árvore seria eminente. O bem-te-vi-rajado voltou; procurou pelo tronco; piou; voou por todos os lados procurando seu antigo lar, e nada. Resolveu este ano fazer o ninho entre a haste de uma folha velha de palmeira e o seu tronco, o que, de certo modo, mimetiza uma cavidade.

A segunda árvore morta que eu mantinha em pé era um capitão-do-campo (Terminalia argentea). Ela não era muito grossa, mas tinha vários ramos, e sobre ela crescia e florescia uma belíssima jibóia com suas enormes folhas em forma de orelha de elefante verde claro, manchadas de prata e ouro, a comum Epipremnum aureum. A jiboia transformava o singelo tronco da árvore morta em um ambiente complexo, tropical, cheio de reentrâncias, lacunas e raízes expostas onde eventualmente outras plantas aproveitavam o substrato para também crescer ali.

Foi num pequeno galho podre de não mais de dez centímetros de diâmetro, protegido pelas folhas da jiboia, que um pica-pau-anão (Picumnus cirratus) fez sua cavidade. Com rápidos movimentos de pescoço e um pequeno, mas poderoso bico, o pica-pau-anão foi capaz de escavar um buraco de menos de três centímetros de diâmetro, onde depositou seus ovos e criou seus filhotes. Voltou ao mesmo oco por três anos consecutivos. Infelizmente os galhos deste defunto capitão-do-campo não resistiram por muito tempo e acabaram sendo eliminados do jardim. Mas os pica-paus-anões continuam a frequentar o jardim e, vez ou outra os escuto cantando aquele inconfundível trinado fino e longo.

A terceira árvore morta eu não sei como se chama, pois já estava morta quando cheguei ao jardim pela primeira vez, há mais de quinze anos. Ela permanece até hoje, quase sem galhos, mas o tronco principal continua aparentemente firme e forte. Ali, durante nove anos consecutivos viveu uma família de João-graveto (Phacellodomus rufifrons). O joão-graveto constrói um grande ninho que é um amontoado de gravetos tão pesado que acaba por pender o galho em que está fixado. O ninho, diferente da maioria das outras aves, é usado durante todo o ano, e nele famílias de até dez indivíduos pernoitam cotidianamente.

Se várias espécies de aves podem usar o mesmo tipo de local para construírem seus ninhos, a competição entre indivíduos, tanto das mesmas quanto de diferentes espécies, é inevitável, inclusive sucedendo a morte aos mais fracos. À medida que retiramos as árvores mortas do ambiente, aumentamos a competição entre estas aves que necessitam de cavidades ou ocos. Assim, o número de espécies ou de indivíduos dominantes pode afetar o número e a distribuição dos outros subordinados. Em situações extremas, uma determinada espécie pode ser extinta de áreas onde todos os locais de nidificação adequados são ocupados por concorrentes dominantes. Em situações menos extremas, o número de espécies subordinadas pode variar de um ano para outro ou de um lugar para outro. Árvores mortas, mas ainda em pé, têm sua função no ecossistema.

Só no meu pequeno jardim pude observar interações agressivas entre os pica-paus e os bem-te-vis, entre as andorinhas (Pygochelidon cyanoleuca), os tuins (Forpus xanthopterygius), os periquitos (Brotogeris chiriri) e as curruíras (Troglodytes musculus). Sem contar que outros animais também podem usufruir destes ocos, como abelhas, roedores e gambás.

Ocos de árvores são um recurso crítico para a reprodução de muitas aves. Onde as árvores mortas estão desaparecendo, a limitação da população de aves pode ser um problema sério de conservação. Já se conhecem hoje espécies de aves com população em declínio devido à falta de árvores com ocos propícios para a construção de ninhos, como é o caso do papagaio australiano Polytelis swainsonii. A falta de ocos utilizáveis pode ser fator limitante para os psitacídeos em geral (araras, papagaios, cacatuas, maritacas e tuins), pois eles dependem de outras espécies que constroem os buracos, como pica-paus, ou de buracos produzidos ao acaso por um quebra de galhos por exemplo.

A quebra de galhos seja por apodrecimento ou por ventos fortes, por incrível que pareça, tem sido apontada como a melhor maneira de formar cavidades. São mais importantes até que as cavidades produzidas por pica-paus, pois são mais longevas, duram mais. Portanto, têm o potencial de hospedar por mais tempo os animais que usam cavidades, mas que não as constroem.

Uma árvore morta no seu jardim, ou num jardim público, faz parte de um ecossistema, abriga ainda formas de vida e potenciais locais para ninhos. Uma árvore morta não é apenas uma árvore morta.


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*Marcos Rodrigues é doutor em zoologia pela Universidade de Oxford (UK). Hoje, é professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais.

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