Cerrado: cresce a conscientização sobre a savana negligenciada do Brasil
Cerrado: cresce a conscientização sobre a savana negligenciada do Brasil
Corujas no Cerrado: uma centena de espécies ameaçadas ( Foto Nathália Machado /Universidade Federal de Goiás)
Em parceria com
(Colaborou Alícia Prager) A
estrada de terra vermelha e esburacada corta a mata verde oliva quase
impenetrável que nos afunila de ambos os lados. É a estação chuvosa no
Oeste da Bahia, e o Cerrado floresce. O
bioma chegou a cobrir dois milhões de quilômetros quadrados, abrangendo
20% do território nacional, por dez estados e o Distrito Federal.
Hoje, metade está de pé. Ofuscado pela fama internacional da Amazônia, o
Cerrado ficou esquecido – e está ameaçado. O
seu ritmo de desmatamento é mais rápido que o do vizinho – foram 9,4
mil quilômetros quadrados perdidos de Cerrado em 2015, contra 6,2 mil de
floresta amazônica, segundo o Ministério do Meio Ambiente.
Serviu especialmente para dar lugar a pastos e plantações. O Cerrado
está na última fronteira do agronegócio brasileiro, nos estados do Norte
e Nordeste, enquanto sua proteção continua fraca – apenas 7,5% do bioma está em áreas protegidas. Os tons do céu do Cerrado: bioma precisa de mais proteção (Foto Flavia Milhorance)Mas
recentemente vozes locais e internacionais passaram a pressionar pela
proteção do bioma até então relegado. Em outubro de 2017, 23 companhias
globais – na maioria cadeias de supermercado e fast food – assinaram o Cerrado Manifesto,
um pedido de ação para interromper seu desmatamento. Em três meses, o
número de signatários quase triplicou. A causa ainda ganhou destaque no
Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro. Além disso, uma campanha nacional
em prol do Cerrado (“Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida”) vem crescendo. A
iniciativa que inclui 43 organizações, entre elas as ONGs ActionAid e
WWF, além do Ministério Público Federal, cobra que os olhos se voltem
para a espécies e as comunidades que lá habitam. Este mês, lançaram uma petição para que o Cerrado e a Caatinga se tornem patrimônio nacional. Em duas semanas, ela ganhou mais de 75 mil assinaturas. “Esta
campanha é o resultado do aumento da conscientização sobre a
importância do Cerrado. Ela busca uma forma de desenvolvimento que seja
menos predatória às pessoas e ao meio ambiente”, diz Gerardo Cerdas
Vega, da ONG ActionAid, que publicou um relatório documentando os impactos do agronegócio no desmatamento do Cerrado. O tatu-canastra é uma das espécies ameaçadas do Cerrado (Foto Fernando Trujillo/IUCN )Mais de cem espécies ameaçadas Mas
afinal por que a savana brasileira vem ganhando projeção internacional?
Apesar de desvalorizado, o Cerrado abriga 5% da biodiversidade do
planeta: mais de dez mil espécies de plantas, 900 pássaros e 300
mamíferos vivem aqui. A redução do bioma já vem afetando esta riqueza.
Pelo menos 137 espécies de animais estão ameaçadas, estima Mariella
Superina, da ONG União Internacional para a Conservação da Natureza
(UICN), que mantém uma lista global de espécies ameaçadas. O tatu-canastra (Priodontes maximus) e o gato-do-mato (Leopardus tigrinus)
– listados como “vulneráveis” – estão dispersos pelo Cerrado, então
têm dificuldade de encontrar parceiros para acasalar. No caso do tatu,
há quatro a cada cem quilômetros quadrados. E são muito suscetíveis às
mudanças no solo para a agricultura. Faltam números específicos sobre a
redução das espécies, mas Superina confirma que foi expressiva. Fedegoso do Cerrado: a mata do bioma tem muito a oferecer (Foto Flavia Milhorance)Floresta de cabeça para baixo Dirigir
pelo Cerrado é como cruzar não um, mas vários biomas. A vegetação toma
diferentes formas à medida que cruzamos suas áreas com pouco impacto
humano. Nos baixões, árvores
de galhos contorcidos crescem por entre bosques. Ao subir as chapadas, a
mata vai se tornando rasteira; os arbustos floridos assumem a paisagem.
É a chapada o principal alvo do agronegócio. Ali as terras são planas,
fáceis de desmatar e plantar, além de receberem mais água da chuva. O
Cerrado se divide entre duas estações: seca e chuvosa. De abril a
setembro, as fortes secas provocam incêndios espontâneos. Por isso,
flora e fauna precisaram adquirir resistência ao longo do tempo. Além
disso, o Cerrado está bem no centro de outros biomas brasileiros, e por
isso é espaço de transição de várias espécies. São esstes dois fatores
que contribuíram para tornar o Cerrado tão robusto e biodiverso, diz um estudo da Pnas. Acima
do solo, as árvores criaram uma casca espessa e encorpada para se
proteger das chamas e garantir uma recuperação rápida. No subsolo,
raízes longas são necessárias para explorar fontes de águas profundas na
estação seca. “O
Cerrado é uma floresta de cabeça para baixo”, diz Rafael Loyola,
professor da Universidade Federal de Goiás, que explica que, justamente,
essa esta evolução para o subsolo dificulta sua recuperação:
“Simplesmente plantar um monte de árvores não traria o Cerrado de
volta”. O buriti, um dos frutos da rica biodiversidade do Cerrado (Foto Flavia Milhorance) Os
buritis nos seguem por todo o trajeto: são as grandes palmeiras que
dominam florestas ou enquadram as icônicas veredas de solos pantanosos.
Estão na paisagem e na cultura do povo do Cerrado. As folhas viram
palha; os frutos, ricos em vitamina A, se tornam comida, medicamento e
óleos. Tem ainda o pequi e o cascudo – ou marolo ou ainda
araticum-do-cerrado – cada povo escolhe seu nome.
As
comunidades tradicionais que habitam o Cerrado têm uma relação próxima
com seus frutos. Atrasados ou não na nossa programação, não importando
quem estivesse nos guiando pelas florestas do Oeste baiano, sempre havia
tempo para uma parada. Olhos treinados avistavam de longe o fruto mais
maduro. Com bolsas cheias – e cheirosas – aí sim podíamos seguir viagem.
Muitos
desses frutos sequer são conhecidos de boa parte dos brasileiros, mas
estão na essência do Cerrado e de sua população. As cascas desses frutos
são grossas como a das árvores e exigem paciência e boa vontade para
chegar às suas pedras preciosas.
Também
é no Cerrado que estão boa parte de nossas reservas hídricas que
abastecem todo o país. Por isso dizem que o bioma é o berço das águas do
Brasil. Oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras estão no Cerrado, e
três grandes aquíferos: Guarani, Bambuí e Urucuia.
“A
remoção da vegetação nativa reduz a resiliência do ecossistema e sua
capacidade de armazenar e distribuir água”, explica Bernardo Strassburg,
fundador do Instituto Internacional para Sustentabilidade (ISS).
A
substituição de árvores por pastagens e lavouras já pode estar
impactando o ciclo hídrico do Cerrado, segundo Marcelo Simon, da
Embrapa. Pesquisas recentes, diz ele, mostram que a conversão da
floresta em agricultura intensifica as secas.
Além
disso, a vegetação de raízes profundas consegue estocar enormes
quantidades de carbono, mas essa capacidade vem se reduzindo com o
desmatamento para o avanço agrícola. As emissões de carbono geradas por
esse processo no Cerrado representaram 29% do total do Brasil entre 2003
e 2013, segundo um estudo publicado no Environmental Research Letters.
Mudanças
climáticas também têm seu peso. Estima-se que a precipitação diminua de
10% a 20% até 2040 no bioma, diz Marcelo Simon., da Embrapa. Outros
estudos prevêem incêndios florestais mais frequentes devido ao
aprofundamento da seca, o que poderia ameaçar espécies nativas e o
estoque de carbono.
Enquanto
isso, o Cerrado segue desprotegido, criticam ambientalistas. O Código
Florestal define a preservação de até 80% da vegetação nativa da
Amazônia. No Cerrado, a exigência fica entre 20% e 35%. Essas
percentagens são das chamadas reservas legais – porções das propriedades
rurais onde não é permitido desmatar. Foi aprovado em 2012 e teve sua
constitucionalidade mantida recentemente pelo Supremo Tribunal Federal.
Um ‘espaço vazio’ Historicamente,
documentos oficiais e discursos políticos declaravam o Cerrado como um
espaço vazio no meio do Brasil, diz Clóvis Caribé, professor da
Universidade Estadual de Feira de Santana. “Este argumento foi usado
pelo governo e por empresas para avançar com o plano de desenvolvimento
seguindo uma dinâmica econômica, mas desconsiderando povos indígenas e
comunidades tradicionais que já habitavam a área há muito tempo”.
A
migração para esta região “vazia” do Brasil central se intensificou com
a construção de Brasília, em 1960, e, novamente, uma década depois, com
a expansão agrícola. Hoje, mais de 25 milhões de pessoas vivem no
Cerrado, 15% da população brasileira.
O
Cerrado se tornou a zona a ser safricadada em prol do progresso
econômico por meio das commodities, diz Caribé. Enquanto esforços para
se proteger a Amazônia foram crescendo, o Cerrado foi ficando esquecido.
Até agora.
Este post foi modificado em March 29, 2018, 4:35 pm
Flavia MilhoranceJornalista
com mais de dez anos de experiência em reportagem e edição em veículos
de imprensa do Brasil e exterior, como BBC Brasil, O Globo, TMT Finance e
Mongabay News. Mestre em jornalismo de negócios e finanças pelas
Universidade de Aarhus (Dinamarca) e City University, em Londres.
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