Cerrado: cresce a conscientização sobre a savana negligenciada do Brasil
(Colaborou Alícia Prager) A
estrada de terra vermelha e esburacada corta a mata verde oliva quase
impenetrável que nos afunila de ambos os lados. É a estação chuvosa no
Oeste da Bahia, e o Cerrado floresce.
O bioma chegou a cobrir dois milhões de quilômetros quadrados, abrangendo 20% do território nacional, por dez estados e o Distrito Federal. Hoje, metade está de pé. Ofuscado pela fama internacional da Amazônia, o Cerrado ficou esquecido – e está ameaçado.
O seu ritmo de desmatamento é mais rápido que o do vizinho – foram 9,4 mil quilômetros quadrados perdidos de Cerrado em 2015, contra 6,2 mil de floresta amazônica, segundo o Ministério do Meio Ambiente. Serviu especialmente para dar lugar a pastos e plantações. O Cerrado está na última fronteira do agronegócio brasileiro, nos estados do Norte e Nordeste, enquanto sua proteção continua fraca – apenas 7,5% do bioma está em áreas protegidas.
Mas recentemente vozes locais e internacionais passaram a pressionar pela proteção do bioma até então relegado. Em outubro de 2017, 23 companhias globais – na maioria cadeias de supermercado e fast food – assinaram o Cerrado Manifesto, um pedido de ação para interromper seu desmatamento. Em três meses, o número de signatários quase triplicou. A causa ainda ganhou destaque no Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro.
Além disso, uma campanha nacional em prol do Cerrado (“Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida”) vem crescendo. A iniciativa que inclui 43 organizações, entre elas as ONGs ActionAid e WWF, além do Ministério Público Federal, cobra que os olhos se voltem para a espécies e as comunidades que lá habitam. Este mês, lançaram uma petição para que o Cerrado e a Caatinga se tornem patrimônio nacional. Em duas semanas, ela ganhou mais de 75 mil assinaturas.
“Esta campanha é o resultado do aumento da conscientização sobre a importância do Cerrado. Ela busca uma forma de desenvolvimento que seja menos predatória às pessoas e ao meio ambiente”, diz Gerardo Cerdas Vega, da ONG ActionAid, que publicou um relatório documentando os impactos do agronegócio no desmatamento do Cerrado.
Mais de cem espécies ameaçadas
Mas afinal por que a savana brasileira vem ganhando projeção internacional? Apesar de desvalorizado, o Cerrado abriga 5% da biodiversidade do planeta: mais de dez mil espécies de plantas, 900 pássaros e 300 mamíferos vivem aqui. A redução do bioma já vem afetando esta riqueza. Pelo menos 137 espécies de animais estão ameaçadas, estima Mariella Superina, da ONG União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), que mantém uma lista global de espécies ameaçadas.
O tatu-canastra (Priodontes maximus) e o gato-do-mato (Leopardus tigrinus) – listados como “vulneráveis” – estão dispersos pelo Cerrado, então têm dificuldade de encontrar parceiros para acasalar. No caso do tatu, há quatro a cada cem quilômetros quadrados. E são muito suscetíveis às mudanças no solo para a agricultura. Faltam números específicos sobre a redução das espécies, mas Superina confirma que foi expressiva.
Floresta de cabeça para baixo
Dirigir pelo Cerrado é como cruzar não um, mas vários biomas. A vegetação toma diferentes formas à medida que cruzamos suas áreas com pouco impacto humano. Nos baixões, árvores de galhos contorcidos crescem por entre bosques. Ao subir as chapadas, a mata vai se tornando rasteira; os arbustos floridos assumem a paisagem. É a chapada o principal alvo do agronegócio. Ali as terras são planas, fáceis de desmatar e plantar, além de receberem mais água da chuva.
O Cerrado se divide entre duas estações: seca e chuvosa. De abril a setembro, as fortes secas provocam incêndios espontâneos. Por isso, flora e fauna precisaram adquirir resistência ao longo do tempo. Além disso, o Cerrado está bem no centro de outros biomas brasileiros, e por isso é espaço de transição de várias espécies. São esstes dois fatores que contribuíram para tornar o Cerrado tão robusto e biodiverso, diz um estudo da Pnas.
Acima do solo, as árvores criaram uma casca espessa e encorpada para se proteger das chamas e garantir uma recuperação rápida. No subsolo, raízes longas são necessárias para explorar fontes de águas profundas na estação seca.
“O Cerrado é uma floresta de cabeça para baixo”, diz Rafael Loyola, professor da Universidade Federal de Goiás, que explica que, justamente, essa esta evolução para o subsolo dificulta sua recuperação: “Simplesmente plantar um monte de árvores não traria o Cerrado de volta”.
Os buritis nos seguem por todo o trajeto: são as grandes palmeiras que dominam florestas ou enquadram as icônicas veredas de solos pantanosos. Estão na paisagem e na cultura do povo do Cerrado. As folhas viram palha; os frutos, ricos em vitamina A, se tornam comida, medicamento e óleos. Tem ainda o pequi e o cascudo – ou marolo ou ainda araticum-do-cerrado – cada povo escolhe seu nome.
As comunidades tradicionais que habitam o Cerrado têm uma relação próxima com seus frutos. Atrasados ou não na nossa programação, não importando quem estivesse nos guiando pelas florestas do Oeste baiano, sempre havia tempo para uma parada. Olhos treinados avistavam de longe o fruto mais maduro. Com bolsas cheias – e cheirosas – aí sim podíamos seguir viagem.
Muitos desses frutos sequer são conhecidos de boa parte dos brasileiros, mas estão na essência do Cerrado e de sua população. As cascas desses frutos são grossas como a das árvores e exigem paciência e boa vontade para chegar às suas pedras preciosas.
Também é no Cerrado que estão boa parte de nossas reservas hídricas que abastecem todo o país. Por isso dizem que o bioma é o berço das águas do Brasil. Oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras estão no Cerrado, e três grandes aquíferos: Guarani, Bambuí e Urucuia.
“A remoção da vegetação nativa reduz a resiliência do ecossistema e sua capacidade de armazenar e distribuir água”, explica Bernardo Strassburg, fundador do Instituto Internacional para Sustentabilidade (ISS).
A substituição de árvores por pastagens e lavouras já pode estar impactando o ciclo hídrico do Cerrado, segundo Marcelo Simon, da Embrapa. Pesquisas recentes, diz ele, mostram que a conversão da floresta em agricultura intensifica as secas.
Além disso, a vegetação de raízes profundas consegue estocar enormes quantidades de carbono, mas essa capacidade vem se reduzindo com o desmatamento para o avanço agrícola. As emissões de carbono geradas por esse processo no Cerrado representaram 29% do total do Brasil entre 2003 e 2013, segundo um estudo publicado no Environmental Research Letters.
Mudanças climáticas também têm seu peso. Estima-se que a precipitação diminua de 10% a 20% até 2040 no bioma, diz Marcelo Simon., da Embrapa. Outros estudos prevêem incêndios florestais mais frequentes devido ao aprofundamento da seca, o que poderia ameaçar espécies nativas e o estoque de carbono.
Enquanto isso, o Cerrado segue desprotegido, criticam ambientalistas. O Código Florestal define a preservação de até 80% da vegetação nativa da Amazônia. No Cerrado, a exigência fica entre 20% e 35%. Essas percentagens são das chamadas reservas legais – porções das propriedades rurais onde não é permitido desmatar. Foi aprovado em 2012 e teve sua constitucionalidade mantida recentemente pelo Supremo Tribunal Federal.
Um ‘espaço vazio’
Historicamente, documentos oficiais e discursos políticos declaravam o Cerrado como um espaço vazio no meio do Brasil, diz Clóvis Caribé, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana. “Este argumento foi usado pelo governo e por empresas para avançar com o plano de desenvolvimento seguindo uma dinâmica econômica, mas desconsiderando povos indígenas e comunidades tradicionais que já habitavam a área há muito tempo”.
A migração para esta região “vazia” do Brasil central se intensificou com a construção de Brasília, em 1960, e, novamente, uma década depois, com a expansão agrícola. Hoje, mais de 25 milhões de pessoas vivem no Cerrado, 15% da população brasileira.
O Cerrado se tornou a zona a ser safricadada em prol do progresso econômico por meio das commodities, diz Caribé. Enquanto esforços para se proteger a Amazônia foram crescendo, o Cerrado foi ficando esquecido. Até agora.
O bioma chegou a cobrir dois milhões de quilômetros quadrados, abrangendo 20% do território nacional, por dez estados e o Distrito Federal. Hoje, metade está de pé. Ofuscado pela fama internacional da Amazônia, o Cerrado ficou esquecido – e está ameaçado.
O seu ritmo de desmatamento é mais rápido que o do vizinho – foram 9,4 mil quilômetros quadrados perdidos de Cerrado em 2015, contra 6,2 mil de floresta amazônica, segundo o Ministério do Meio Ambiente. Serviu especialmente para dar lugar a pastos e plantações. O Cerrado está na última fronteira do agronegócio brasileiro, nos estados do Norte e Nordeste, enquanto sua proteção continua fraca – apenas 7,5% do bioma está em áreas protegidas.
Mas recentemente vozes locais e internacionais passaram a pressionar pela proteção do bioma até então relegado. Em outubro de 2017, 23 companhias globais – na maioria cadeias de supermercado e fast food – assinaram o Cerrado Manifesto, um pedido de ação para interromper seu desmatamento. Em três meses, o número de signatários quase triplicou. A causa ainda ganhou destaque no Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro.
Além disso, uma campanha nacional em prol do Cerrado (“Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida”) vem crescendo. A iniciativa que inclui 43 organizações, entre elas as ONGs ActionAid e WWF, além do Ministério Público Federal, cobra que os olhos se voltem para a espécies e as comunidades que lá habitam. Este mês, lançaram uma petição para que o Cerrado e a Caatinga se tornem patrimônio nacional. Em duas semanas, ela ganhou mais de 75 mil assinaturas.
“Esta campanha é o resultado do aumento da conscientização sobre a importância do Cerrado. Ela busca uma forma de desenvolvimento que seja menos predatória às pessoas e ao meio ambiente”, diz Gerardo Cerdas Vega, da ONG ActionAid, que publicou um relatório documentando os impactos do agronegócio no desmatamento do Cerrado.
Mais de cem espécies ameaçadas
Mas afinal por que a savana brasileira vem ganhando projeção internacional? Apesar de desvalorizado, o Cerrado abriga 5% da biodiversidade do planeta: mais de dez mil espécies de plantas, 900 pássaros e 300 mamíferos vivem aqui. A redução do bioma já vem afetando esta riqueza. Pelo menos 137 espécies de animais estão ameaçadas, estima Mariella Superina, da ONG União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), que mantém uma lista global de espécies ameaçadas.
O tatu-canastra (Priodontes maximus) e o gato-do-mato (Leopardus tigrinus) – listados como “vulneráveis” – estão dispersos pelo Cerrado, então têm dificuldade de encontrar parceiros para acasalar. No caso do tatu, há quatro a cada cem quilômetros quadrados. E são muito suscetíveis às mudanças no solo para a agricultura. Faltam números específicos sobre a redução das espécies, mas Superina confirma que foi expressiva.
Floresta de cabeça para baixo
Dirigir pelo Cerrado é como cruzar não um, mas vários biomas. A vegetação toma diferentes formas à medida que cruzamos suas áreas com pouco impacto humano. Nos baixões, árvores de galhos contorcidos crescem por entre bosques. Ao subir as chapadas, a mata vai se tornando rasteira; os arbustos floridos assumem a paisagem. É a chapada o principal alvo do agronegócio. Ali as terras são planas, fáceis de desmatar e plantar, além de receberem mais água da chuva.
O Cerrado se divide entre duas estações: seca e chuvosa. De abril a setembro, as fortes secas provocam incêndios espontâneos. Por isso, flora e fauna precisaram adquirir resistência ao longo do tempo. Além disso, o Cerrado está bem no centro de outros biomas brasileiros, e por isso é espaço de transição de várias espécies. São esstes dois fatores que contribuíram para tornar o Cerrado tão robusto e biodiverso, diz um estudo da Pnas.
Acima do solo, as árvores criaram uma casca espessa e encorpada para se proteger das chamas e garantir uma recuperação rápida. No subsolo, raízes longas são necessárias para explorar fontes de águas profundas na estação seca.
“O Cerrado é uma floresta de cabeça para baixo”, diz Rafael Loyola, professor da Universidade Federal de Goiás, que explica que, justamente, essa esta evolução para o subsolo dificulta sua recuperação: “Simplesmente plantar um monte de árvores não traria o Cerrado de volta”.
Os buritis nos seguem por todo o trajeto: são as grandes palmeiras que dominam florestas ou enquadram as icônicas veredas de solos pantanosos. Estão na paisagem e na cultura do povo do Cerrado. As folhas viram palha; os frutos, ricos em vitamina A, se tornam comida, medicamento e óleos. Tem ainda o pequi e o cascudo – ou marolo ou ainda araticum-do-cerrado – cada povo escolhe seu nome.
As comunidades tradicionais que habitam o Cerrado têm uma relação próxima com seus frutos. Atrasados ou não na nossa programação, não importando quem estivesse nos guiando pelas florestas do Oeste baiano, sempre havia tempo para uma parada. Olhos treinados avistavam de longe o fruto mais maduro. Com bolsas cheias – e cheirosas – aí sim podíamos seguir viagem.
Muitos desses frutos sequer são conhecidos de boa parte dos brasileiros, mas estão na essência do Cerrado e de sua população. As cascas desses frutos são grossas como a das árvores e exigem paciência e boa vontade para chegar às suas pedras preciosas.
Também é no Cerrado que estão boa parte de nossas reservas hídricas que abastecem todo o país. Por isso dizem que o bioma é o berço das águas do Brasil. Oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras estão no Cerrado, e três grandes aquíferos: Guarani, Bambuí e Urucuia.
“A remoção da vegetação nativa reduz a resiliência do ecossistema e sua capacidade de armazenar e distribuir água”, explica Bernardo Strassburg, fundador do Instituto Internacional para Sustentabilidade (ISS).
A substituição de árvores por pastagens e lavouras já pode estar impactando o ciclo hídrico do Cerrado, segundo Marcelo Simon, da Embrapa. Pesquisas recentes, diz ele, mostram que a conversão da floresta em agricultura intensifica as secas.
Além disso, a vegetação de raízes profundas consegue estocar enormes quantidades de carbono, mas essa capacidade vem se reduzindo com o desmatamento para o avanço agrícola. As emissões de carbono geradas por esse processo no Cerrado representaram 29% do total do Brasil entre 2003 e 2013, segundo um estudo publicado no Environmental Research Letters.
Mudanças climáticas também têm seu peso. Estima-se que a precipitação diminua de 10% a 20% até 2040 no bioma, diz Marcelo Simon., da Embrapa. Outros estudos prevêem incêndios florestais mais frequentes devido ao aprofundamento da seca, o que poderia ameaçar espécies nativas e o estoque de carbono.
Enquanto isso, o Cerrado segue desprotegido, criticam ambientalistas. O Código Florestal define a preservação de até 80% da vegetação nativa da Amazônia. No Cerrado, a exigência fica entre 20% e 35%. Essas percentagens são das chamadas reservas legais – porções das propriedades rurais onde não é permitido desmatar. Foi aprovado em 2012 e teve sua constitucionalidade mantida recentemente pelo Supremo Tribunal Federal.
Um ‘espaço vazio’
Historicamente, documentos oficiais e discursos políticos declaravam o Cerrado como um espaço vazio no meio do Brasil, diz Clóvis Caribé, professor da Universidade Estadual de Feira de Santana. “Este argumento foi usado pelo governo e por empresas para avançar com o plano de desenvolvimento seguindo uma dinâmica econômica, mas desconsiderando povos indígenas e comunidades tradicionais que já habitavam a área há muito tempo”.
A migração para esta região “vazia” do Brasil central se intensificou com a construção de Brasília, em 1960, e, novamente, uma década depois, com a expansão agrícola. Hoje, mais de 25 milhões de pessoas vivem no Cerrado, 15% da população brasileira.
O Cerrado se tornou a zona a ser safricadada em prol do progresso econômico por meio das commodities, diz Caribé. Enquanto esforços para se proteger a Amazônia foram crescendo, o Cerrado foi ficando esquecido. Até agora.
Este post foi modificado em March 29, 2018, 4:35 pm
Flavia MilhoranceJornalista
com mais de dez anos de experiência em reportagem e edição em veículos
de imprensa do Brasil e exterior, como BBC Brasil, O Globo, TMT Finance e
Mongabay News. Mestre em jornalismo de negócios e finanças pelas
Universidade de Aarhus (Dinamarca) e City University, em Londres.
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