Circuito curto de alimentos, a saída possível para evitar dependência dos transportes
Por Amelia Gonzalez, G1
Enquanto vivemos desmandos que parecem tornar infindável um movimento tão desastroso para o país como esta greve dos transportes de carga,
enquanto sigo sem conseguir entender muito os vai-e-vem que põe a todos
nós, brasileiros, meio atordoados com as notícias, decidi me dedicar a
um exercício para imaginar como poderia ser diferente tudo isso. Como
poderíamos evitar a dependência dos combustíveis, dos caminhões, dos
caminhoneiros, das empresas de transportes, para nos alimentar? Como
poderíamos evitar o imenso desperdício de alimentos que se tornou marca
registrada dessa greve?
Sim, é possível, e não estou me dedicando a um exercício de ficção. Há uma semana escrevi sobre o documentário "Sustainable",
e meu texto focou no aspecto de saúde alimentar, uma das mensagens do
filme. Mas as cenas que mostram o trabalho do pequeno produtor rural,
personagem principal, entregando pessoalmente, em sua caminhonete, seus
produtos para restaurantes de Illinois, me fizeram lembrar do circuito
curto de alimentos, uma forma de aproximar a produção do consumo,
bandeira defendida por dez entre dez ambientalistas e agroecologistas.
E já estivemos muito mais perto disso do que vocês, caros leitores, podem imaginar.
Em outubro de 2011 fiz uma entrevista para o "Razão Social" com Renato
Maluf, então presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional
(Consea), orgão criado pelo sociólogo Betinho nos anos 90, recuperado
pelo ex-presidente Lula em seu primeiro mandato, e que agora está
bastante esvaziado. Maluf, que naquela época tinha um papel importante
no cenário internacional no nicho de segurança alimentar, explicou-me
como seria possível escapar do circuito longo dos alimentos, aquele que
provoca nossa dependência dos transportes.
"Praticar o circuito local é usar a produção de pequeno porte diversificada e promover uma circulação regional. Essa concepção de abastecimento alimentar descentralizada é fundamental, com base em circuitos curtos", disse ele.
Em 2011 estava sendo formulado um Plano de Segurança Alimentar para o
país para tentar acabar com os problemas já detectados pelo Consea, um
órgão bipartite (governo e sociedade civil). Entre eles, o fato de uma
parte da produção do país exportada ser baseada na monocultura, o que
nos põe num lugar, nada invejável nem digno de orgulho, como o país que
mais consome agrotóxicos na América Latina. Temos ainda um elevado nível
de mecanização; o comprometimento de biodiversidade por conta da
produção agrícola e uma alta concentração fundiária, lembrou-me Maluf.
"Temos aqui ainda uma enorme quantidade de corporações internacionais e nacionais que expressam o modelo de consumo de alimentos atual, que está nos levando, entre outras coisas, a vários problemas de saúde associados à alimentação", disse-me ele.
O foco do Consea, com reuniões frequentes entre seus membros, incluindo
representantes do governo, era mudar esse quadro. Para isso, o modelo
agrícola defendido é o da agroecologia, uma alternativa baseada no
manejo ecológico dos bens naturais, incorporando aspectos sociais,
coletivos e participativos dos grupos interessados. É um enfoque que
visa ao desenvolvimento rural sustentável em todas as suas dimensões.
Recorro ao livro "Agroecologia – um novo caminho para a extensão rural
sustentável" (Ed. Terra Mater), cuja edição foi coordenada por Maria
Alzira Brum Lemos, para esmiuçar um pouco mais sobre o tema. O cerne da
agroecologia é a agricultura familiar, instituída no país como
consequência do processo de democratização nos anos 80. Na década de 90,
quando foi criado o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA),
extinto pelo governo Temer, uma das funções do novo órgão era elaborar,
propor e executar políticas públicas para o segmento da agricultura
familiar. Em 2004, foi criada a Política Nacional de Assistência Técnica
e Extensão (Pnater).
"De acordo com a Pnater, a agricultura familiar é aquela em que os
trabalhos em nível de unidade de produção são exercidos
predominantemente pela família, mantendo ela as iniciativas, o domínio e
o controle do que e de como produzir, havendo estreita relação entre o
que é produzido e o que é consumido (unidade de produção e consumo),
mantendo alto grau de diversificação produtiva, tendo alguns produtos
relacionados com o mercado", escreve a engenheira agrônoma Rejane
Beatriz Mendes no livro sobre Agropecuária.
A colheita de dados para o Censo Agropecuário, Florestal e Agrícola de 2017,
que pode nos dar alguma referência sobre o consumo, na mesa dos
brasileiros, de produtos que são produzidos pela agricultura familiar,
terminou em fevereiro deste ano. O que se sabe é que o orçamento para o
setor está estagnado. Segundo informações do site do Greenpeace,
o governo Temer anunciou no ano passado o Plano Safra da Agricultura
Familiar 2017/2018, com valor de crédito a ser liberado aos pequenos
trabalhadores rurais de R$ 30 bilhões, a mesma quantia do ano passado.
"A agricultura familiar é a verdadeira responsável pela produção de
alimentos no país. Incentivar esses produtores, que já adotam sistemas
mais sustentáveis de produção, é fundamental. Porém, é tudo que o
governo não vem fazendo. No ano passado, a diferença de investimento
entre a agricultura convencional e a agroecológica foi de 75%.
Independente de quem seja presidente, o governo federal é um dos
principais responsáveis pela expansão desse modelo que aplica veneno em
nossa comida”, defende Marina Lacorte, da campanha de Agricultura e
Alimentação do Greenpeace, no site da organização.
Mas, já foi diferente. Em 2014, a agricultura familiar era responsável por 70% dos
alimentos que chegavam à mesa dos brasileiros, um percentual que
assegurava alguma tranquilidade para muitas famílias no campo. Não vamos
ser ingênuos, a ponto de afirmar que o Brasil já poderia estar
liderando o circuito curto de alimentos e transformando a vida dos que
produzem alimentos e não fazem parte da grande cadeia de empresas da
indústria alimentícia. Historicamente, somos um grande produtor agrícola
com base na propriedade, desde os tempos do Brasil Colônia. Mas há
caminhos que nos mostram outras possibilidades, que bom que existem.
Para atualizar o meu pensamento, busquei notícias mais recentes sobre
Renato Maluf, que hoje continua sendo professor do Programa de
Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Numa
palestra que proferiu no ano passado, Maluf comentou sobre tudo o que
vimos refletindo neste texto e me deu a possibilidade de abrir um
caminho a mais. Para ele, há um meio eficaz de mudar um cenário tão
desastroso para a nossa agricultura: a participação incessante da
sociedade civil.
"E ela já vem desempenhando um papel importante, ao exercer a crítica
sobre as tendências do sistema alimentar dominante. Ela deve ainda criar
propostas alternativas em termos de como organizar a produção de
alimentos e o consumo. E se unir em associações. Temos de superar a
centralização de autoridade que ocorre no estilo tecnocrático de fazer
políticas públicas, a fim de ter a sociedade civil realmente engajada na
elaboração e monitoramento desse processo", diz ele.
Ficamos assim, para refletir.
Ficamos assim, para refletir.
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