O desperdício de alimentos se tornou pauta obrigatória durante esta greve (seria melhor dizer locaute?)
dos caminhoneiros. Mesmo que tudo terminasse agora, mesmo que os
caminhões passassem a circular livremente a partir do minuto seguinte a
um acordo efetivo que deixasse as partes satisfeitas, assim mesmo
haveria um grande, talvez incomensurável, montante de alimentos sendo
jogados fora.
Imaginem, por exemplo, um caminhão que está há quatro dias na estrada
cheio de tomates. Ou de batatas, ou de chuchus, inhames... Esses ou
quaisquer outros produtos que tenham sido retirados da terra e que
estejam dentro de um compartimento fechado, mercê de temperaturas não
naturais. É claro que não sairão do cativeiro direto para a gôndola dos
supermercados ou feiras-livres. Estarão passados, talvez com fungos,
amassados, ou seja, nada convidativos para consumo.
Isso, para não falar do pior: cargas vivas. Animais que estão sendo
transportados, segundo uma das muitas reportagens que tenho acompanhado
sobre a greve, estão há dias sem alimentação adequada, o que é mais do
que desperdício, um crime que só a humanidade tem coragem de cometer
contra um ser vivo.
Preciso acreditar que muitos dos transportadores já tomaram providências com relação a isso. Mas o gesto de caminhoneiros que ontem jogaram 500 mil litros de leite
em parte da pista e acostamento da rodovia MG-050, em Passos, Minas
Gerais, é emblemático. Será este o fim de outras toneladas de alimentos?
Terão, ao menos, já aberto as caçambas e distribuído a quem precisa?
Pode ser que não. O desperdício de alimentos é algo que nem sempre é
considerado uma grave falha, como deveria. Tive um pai estrangeiro, que
de vez em quando se irritava com isso e dizia:
"Vocês, brasileiros, só vão aprender a cuidar do que têm em abundância quando passarem por uma guerra".
Outro lugar que tem recebido, legitimamente, os holofotes da mídia
nesses dias é a Central de Abastecimento, Ceasa de Irajá. Para lá
convergem os produtos que chegam das fazendas, é onde se compra tudo
mais barato e é também o termômetro para se saber os preços que são
praticados pelo mercado. Com a greve, o total de 300 megacaminhões que
chegam ali por dia tem ficado reduzido a 30, 50. A batata, produto dos
mais procurados, cujo saco de 50 quilos é vendido a cerca de R$ 70, R$
80, está custando R$ 300. Isso é um desastre e afeta, sobretudo, os
pequenos restaurantes que vende a preço barato com um lucro baixo.
Mas, falamos sobre desperdício. E semana passada estive na Ceasa, a
trabalho, quando este assunto rendeu panos para mangas. Tomávamos um
café, G. e eu, quando passou uma senhora bem carregada de milho. Deixou
cair uma espiga. Fizemos menção de buscar do chão para ela mas não deu
tempo: a mulher descartou nossa ajuda, fazendo um gesto com a mão que
queria dizer que já estava carregada demais, não ia se importunar por
causa de uma espiga. No segundo seguinte, um carregador passou também
apressado e esmagou a espiga com as rodas de seu carrinho. Lá se foi um
alimento.
Assim mesmo, pegamos do chão e oferecemos ao dono do café, que tem seu
ponto ali no Ceasa há anos e quase se surpreendeu com nosso gesto:
"Ih... esse negócio de desperdício é comum aqui. Já tivemos um
programa, se não me engano se chamava Banco de Alimentos, quando
tentaram educar o pessoal. Mas não deu certo. Já estou acostumado. Tem
dias que incomoda mesmo, a gente vê uma quantidade grande de produtos
que são jogados fora com tanta gente passando fome no mundo...",
comentou o comerciante.
Para ilustrar sua fala, busquei no site da Central de Abastecimento
notícias sobre o tal programa, e fiquei feliz em saber que no mês de
abril foram doados 91,5 toneladas de alimentos pelo Banco. Ao todo,
foram atendidas 217 instituições que beneficiaram mais de 42 mil
pessoas, diz a notícia.
"O Banco de Alimentos é um equipamento de segurança alimentar e
nutricional, responsável por captar e distribuir alimentos que não foram
comercializados, mas que estão em perfeitas condições para consumo",
diz o texto explicativo. O Programa foi criado no governo Lula e
funciona como uma espécie de distribuidora de alimentos que não estão em
perfeitas condições para consumo, mas que servem ainda para nutrir.
"Os produtos são doados por produtores, comerciantes e pelo Programa de
Aquisição de Alimentos- PAA, modalidade que compra com doação
simultânea, composto por recursos do Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS), que consiste na compra do alimento do
agricultor familiar que é doado para as instituições beneficiadas pelo
Banco de Alimentos", completa o texto no site.
Falta combinar com os consumidores e com o pessoal que não se inscreveu
no Programa. É bacana ter doado mais de 90 toneladas de alimentos, mas
dá para ver, in loco, que tem muito mais a fazer. Há enormes lixeiras
entre um e outro dos 43 pavilhões da Ceasa que ficam cheios de alimentos
descartados e, não raro, ali as pessoas sem recursos correm para se
abastecer com o que pode. Retiram do lixo o alimento que vai servir para
nutri-las. E não precisava ser assim.
De qualquer forma, o comentário irritado e exagerado do meu pai não se
aplicaria ap
enas aos brasileiros. Dados do ano passado liberados pela
Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO)
revelam que, por ano, aproximadamente um terço dos alimentos produzidos
em todo o mundo não é consumido pela população, sendo perdido em alguma
etapa da cadeia de produção ou desperdiçado no elo final, em
restaurantes e residências. Isso representa cerca de 1,3 bilhão de
toneladas de alimentos que não são aproveitados ou, em valor monetário,
uma quantia aproximada de US$ 1 trilhão.
É sobre cultura que estamos falando, sobre mudança de hábitos. E será,
sempre, a falta de contato verdadeiramente respeitoso com o meio
ambiente que nos cerca, a responsável por tanto desmazelo com produtos
que, no fim das contas, servem para nos manter vivos.
Uma crise como esta, uma greve complexa, cheia de não-ditos e de
não-combinados, há de, pelo menos, deixar visíveis essas falhas graves
para que se possa pensar a respeito. Aqui perto de casa, por exemplo,
tem um ponto final de ônibus e fico perplexa com o fato de o motorista
deixar o motor ligado por cerca de cinco a dez minutos enquanto espera
dar a hora da partida. Já fui até lá, expus a questão, pedi que
desligassem, mas era tratada com um certo desdém. Pelo menos, assim eu
percebia. É assim que me sinto sempre que mostro erros que cometemos
contra a natureza.
Hoje não ouço mais o barulho irritante da máquina, embora o ônibus
continue ali. Por que economizar só quando a escassez bateu?
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