O conhecimento indígena sob ataque, segundo este pesquisador
Por Camilo Rocha, do Nexo –
Saberes de povos indígenas, historicamente influentes para a cultura brasileira, correm riscos quando terras são invadidas ou retiradas, diz o arqueólogo Eduardo Góes Neves
Os primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro registraram diversos ataques a comunidades e terras indígenas. Entre eles, estão invasões a terras dos Uru-eu-wau-wau, em Rondônia, e dos Awá Guajá, no Maranhão. Para o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), as declarações de Bolsonaro, antes e depois da posse, têm funcionado como incentivo para que se invista contra territórios indígenas.
Com a transferência da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da Agricultura, existe preocupação de quem atua em questões indígenas com o futuro das terras indígenas, em especial as mais de 200 que ainda estão em processo de demarcação. Em entrevista dada em Brasília em 18 de janeiro, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, falou em não permitir invasões e proteger aldeias isoladas, mas também que deveria ser permitida a produção agrícola comercial nas terras indígenas, ideia criticada por estudiosos da área.
Leia Mais
(#Envolverde)
Saberes de povos indígenas, historicamente influentes para a cultura brasileira, correm riscos quando terras são invadidas ou retiradas, diz o arqueólogo Eduardo Góes Neves
Os primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro registraram diversos ataques a comunidades e terras indígenas. Entre eles, estão invasões a terras dos Uru-eu-wau-wau, em Rondônia, e dos Awá Guajá, no Maranhão. Para o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), as declarações de Bolsonaro, antes e depois da posse, têm funcionado como incentivo para que se invista contra territórios indígenas.
Com a transferência da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da Agricultura, existe preocupação de quem atua em questões indígenas com o futuro das terras indígenas, em especial as mais de 200 que ainda estão em processo de demarcação. Em entrevista dada em Brasília em 18 de janeiro, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, falou em não permitir invasões e proteger aldeias isoladas, mas também que deveria ser permitida a produção agrícola comercial nas terras indígenas, ideia criticada por estudiosos da área.
Leia Mais
(#Envolverde)
O conhecimento indígena
sob ataque, segundo este pesquisador
Camilo Rocha
20 Jan 2019 (atualizado 22/Jan 15h41)
Saberes de povos indígenas, historicamente influentes para a cultura
brasileira, correm riscos quando terras são invadidas ou retiradas, diz o
arqueólogo Eduardo Góes Neves
Foto: Bruno Kelly/Reuters
Yanomami ao lado de uma mina ilegal de ouro durante uma operação de uma
agência ambiental contra exploração ilegal em terras indígenas, em
Roraima
Os primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro registraram diversos
ataques a comunidades e terras indígenas. Entre eles, estão invasões a
terras dos Uru-eu-wau-wau, em Rondônia, e dos Awá Guajá, no Maranhão.
Para o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), as declarações de
Bolsonaro, antes e depois da posse, têm funcionado como incentivo para
que se invista contra territórios indígenas.
Com a transferência da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o
Ministério da Agricultura, existe preocupação de quem atua em questões
indígenas com o futuro das terras indígenas, em especial as mais de 200
que ainda estão em processo de demarcação. Em entrevista dada em
Brasília em 18 de janeiro, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina,
falou em não permitir invasões e proteger aldeias isoladas, mas também
que deveria ser permitida a produção agrícola comercial nas terras
indígenas, ideia criticada por estudiosos da área.
“É um tipo de conhecimento cujo desaparecimento é muito ruim,
principalmente agora, com o mundo em que estamos vivendo, sentindo e
percebendo com mais intensidade a mudança climática.”
Eduardo Góes Neves
Arqueólogo, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
Não são apenas extensões de terra ou modos de vida tradicionais que
correm risco quando se desloca ou se modifica o uso de terras ocupadas
por populações tradicionais. Existe também um acúmulo de conhecimento de
cada povo ou comunidade que fica ameaçado. São saberes que vão desde
informações sobre uso de plantas a modos de preservar o meio ambiente em
uma área.
“O arrendamento da terra [conforme proposto pelo governo Bolsonaro] é
como tirar todo o conhecimento tradicional que estes povos têm, toda a
tradição que têm no resguardo da floresta”, explicou Carlos Nobre,
cientista e pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais), em entrevista ao UOL.
Em 2014, um comunicado da Plataforma para Biodiversidade e Serviços do
Ecossistema das Nações Unidas enfatizou que o conhecimento das
comunidades indígenas de várias regiões tinha utilidade para áreas como
agricultura, manejo florestal e exploração dos oceanos, assim como para
cumprir as metas da biodiversidade global.
“Os povos da floresta são detentores de bancos genéticos e promotores de
novas variedades de agricultivares”, escreveu Mauricio Torres, doutor
em Geografia Humana pela USP, em artigo de 2011 intitulado “A despensa
viva: um banco de germoplasma nos roçados da floresta”, em que questiona
a perda dessa diversidade agrícola frente à “uniformidade” do
agronegócio. Em seu trabalho, Torres pontua que em comunidades, em que a
história se baseia na transmissão oral, há uma “memória coletiva”
interligada com a paisagem e a geografia de suas regiões.
Para Eduardo Góes Neves, pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP (Universidade de São Paulo), autor de “Arqueologia da Amazônia” e
coautor de “Unknown Amazon: Culture in Nature in Ancient Brazil”
(Amazônia desconhecida: cultura na natureza no Brasil antigo, em
tradução livre), desperdiçar esse patrimônio implica um grave problema
ético. “Esse arranjo que compõe a diversidade do planeta tem milhares de
anos e a nossa geração não tem o direito de acabar com isso”, afirmou
ao Nexo, por telefone.
Leia a entrevista completa abaixo.
Quando se extingue ou se altera o território de um povo indígena, quais
os riscos para o conhecimento que ele acumulou?
Eduardo Góes Neves Corre o risco é de desaparecer também. Esse processo
geralmente é muito violento e truculento e o processo de transmissão
desse conhecimento também é demorado, é um diálogo que as sociedades vão
construindo ao longo do tempo. A gente sabe de populações que têm
contato há muitos anos com a sociedade nacional, mas que têm
conhecimentos que ficam guardados naquele âmbito. E se formos pensar no
conhecimento sobre bichos, dos ciclos da natureza, por exemplo, isso é
muito importante diante dos desafios que temos pensando em lugares como
na Amazônia, que a gente ainda nem conhece direito e estamos ocupando de
maneira totalmente errada. É um tipo de conhecimento cujo
desaparecimento é muito ruim, principalmente agora, com o mundo em que
estamos vivendo, sentindo e percebendo com mais intensidade a mudança
climática.
Quando se fala em conhecimento indígena, pensamos primordialmente em
plantas. O que mais a gente pode considerar?
Eduardo Góes Neves É uma maneira diferente de olhar para o mundo. Cada
maneira de olhar que é diferente da que consagramos, a tradição
intelectual judaico-cristã, tem de ser respeitada pelo seu próprio
valor. A gente fala de ontologias diferentes, maneiras de olhar para o
mundo, de pensar a existência. Compartilhamos o mesmo planeta, mas somos
populações com histórias culturais diferentes, então vivemos o desafio
de aceitar essa unicidade que é biológica, mas ao mesmo tempo de
respeitar todas as manifestações culturais, assim como as outras formas
de vida que estão aqui, e não só humanas, mas animais, plantas. Claro
que o conhecimento sobre a natureza é importante, mas estamos falando de
um conhecimento sobre o mundo em geral, sobre o universo, no sentido
mais amplo. Mas essa discussão não pode ser apenas utilitária, porque
esses caras têm uma solução para os problemas que criamos no mundo.
Claro que é importante, é legal saber para poder usar e aplicar, mas tem
uma questão mais de fundo, de justiça. As sociedades ocidentais tem a
força bélica, mas não temos o direito de fazer isso, se formos pensar
num sentido mais profundo. Esse arranjo que compõe a diversidade do
planeta tem milhares de anos e a nossa geração não tem o direito de
acabar com isso, de zerar esse relógio.
Você pode falar um pouco mais sobre como o conhecimento indígena
colabora para manter a biodiversidade?
Eduardo Góes Neves Uma coisa vai ficando cada vez mais clara: uma parte
dessa biodiversidade da Amazônia foi formada por humanos, por uma
interação entre humanos e não-humanos, plantas e animais, ao longo dos
últimos 10, 12 mil anos. O que se percebe em populações tradicionais,
não só indígenas, mas quilombolas também, e populações ribeirinhas, é o
interesse em estimular a diversidade, experimentar plantas diferentes,
plantar, colher, trazer para o quintal, ver para que serve, ver como
funciona. Um exemplo: trabalhamos com restos de plantas preservadas
arqueologicamente e temos de fazer coleções de referência para comparar,
por exemplo, [vestígios de] plantas antigas com modernas para poder
classificá-las. Percebemos que mais de 90% das plantas que encontramos
não sabemos ainda quais são. Significa que estamos vislumbrando só uma
parte inicial desse conhecimento. Esse processo de produção, de aumentar
a biodiversidade, é muito interessante, mas o que temos oferecido para a
Amazônia nos últimos anos é justamente o oposto: é reduzir a
diversidade, é não saber manejar. E fazemos isso de uma maneira
tecnologicamente muito avançada e máquinas super-modernas, como a gente
vê lá no Cerrado, substituindo a biodiversidade por algumas poucas
espécies de plantas e animais.
Como vê o discurso que encara os indígenas como “animais no zoológico”,
como se em estágio “inferior” ao do homem branco?
Eduardo Góes Neves Existe aí uma espécie de racismo ambiental, porque a
gente vem de uma tradição intelectual forjada em países nórdicos, de
clima temperado, na Europa e na América do Norte, que tem um contexto
geográfico e ecológico totalmente diferente e que vê as regiões
tropicais como insalubres, marginais, periféricas, que tem de ser
aprimoradas. Lembro quando descobri que a malária não era uma doença
tropical em uma visita ao Instituto de Medicina Tropical, mas existia
malária na Europa até o século 20, nos Estados Unidos também. O conceito
de doença tropical não é natural, mas sim social, que tem a ver com
pobreza, com o contexto dos trópicos. Existe uma relação de colonialismo
interno que funciona da mesma maneira. Nosso discurso sobre a Amazônia é
sempre de que ela tem de ser aprimorada, desenvolvida, ocupada, a
partir de critérios que não têm nada a ver com essas regiões e que não
respeitam populações que vivem lá há séculos, milhares de anos, e que
desenvolveram formas de vida interessantes para esse tipo de ambiente.
Faz sentido, no contexto atual, desvalorizar o conhecimento indígena
para poder usar como justificativa [de ocupar suas terras]. Ninguém está
preocupado com o país, se trata de negócios, tem muito dinheiro
potencialmente disponível nessas terras. O paradoxal é que são terras
públicas. É um discurso cínico: eles querem privatizar terras públicas
dizendo que é pelo interesse nacional. Como é que uma terra pública pode
ser contra o interesse nacional?
Olhando historicamente, qual o tamanho da influência do conhecimento
indígena na cultura e sociedade brasileiras?
Eduardo Góes Neves Veja as matas de pinhão no sul do Brasil, por
exemplo. Temos evidências de que são antrópicas, de que foram manejadas
pelos ancestrais dos indígenas caingangue. Temos evidências de que o
símbolo do estado do Paraná, a araucária, compõe matas que ganharam mais
extensão pelo manejo humano, o que chamamos de domesticação da
paisagem. A mandioca todo mundo sabe, mas tem a castanha, pupunha,
amendoim, cacau, goiaba, tabaco, o açaí, que virou um produto de
exportação, que gera muito dinheiro no norte do Brasil. É uma planta
manejada há muito tempo. Saindo da Amazônia, temos exemplos como a
batata, que é uma planta andina. Hoje, se pensamos em comida alemã e
inglesa logo pensamos em batata. Tem muita planta consumida no mundo
inteiro que resultou desse processo de manejo e seleção realizado por
povos indígenas que vivem no continente americano há muito tempo. Esse
conhecimento não funciona da mesma maneira que o método científico, mas
ele vem de uma curiosidade que reflete uma forma de conhecimento que é
sofisticada também. Desprezar isso tem uma questão ética, mas é também
uma grande estupidez. É uma catástrofe.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/01/20/O-conhecimento-ind%C3%ADgena-sob-ataque-segundo-este-pesquisador
© 2018 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/01/20/O-conhecimento-ind%C3%ADgena-sob-ataque-segundo-este-pesquisador
© 2018 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.
O conhecimento indígena
sob ataque, segundo este pesquisador
Camilo Rocha
20 Jan 2019 (atualizado 22/Jan 15h41)
Saberes de povos indígenas, historicamente influentes para a cultura
brasileira, correm riscos quando terras são invadidas ou retiradas, diz o
arqueólogo Eduardo Góes Neves
Foto: Bruno Kelly/Reuters
Yanomami ao lado de uma mina ilegal de ouro durante uma operação de uma
agência ambiental contra exploração ilegal em terras indígenas, em
Roraima
Os primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro registraram diversos
ataques a comunidades e terras indígenas. Entre eles, estão invasões a
terras dos Uru-eu-wau-wau, em Rondônia, e dos Awá Guajá, no Maranhão.
Para o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), as declarações de
Bolsonaro, antes e depois da posse, têm funcionado como incentivo para
que se invista contra territórios indígenas.
Com a transferência da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o
Ministério da Agricultura, existe preocupação de quem atua em questões
indígenas com o futuro das terras indígenas, em especial as mais de 200
que ainda estão em processo de demarcação. Em entrevista dada em
Brasília em 18 de janeiro, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina,
falou em não permitir invasões e proteger aldeias isoladas, mas também
que deveria ser permitida a produção agrícola comercial nas terras
indígenas, ideia criticada por estudiosos da área.
“É um tipo de conhecimento cujo desaparecimento é muito ruim,
principalmente agora, com o mundo em que estamos vivendo, sentindo e
percebendo com mais intensidade a mudança climática.”
Eduardo Góes Neves
Arqueólogo, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP
Não são apenas extensões de terra ou modos de vida tradicionais que
correm risco quando se desloca ou se modifica o uso de terras ocupadas
por populações tradicionais. Existe também um acúmulo de conhecimento de
cada povo ou comunidade que fica ameaçado. São saberes que vão desde
informações sobre uso de plantas a modos de preservar o meio ambiente em
uma área.
“O arrendamento da terra [conforme proposto pelo governo Bolsonaro] é
como tirar todo o conhecimento tradicional que estes povos têm, toda a
tradição que têm no resguardo da floresta”, explicou Carlos Nobre,
cientista e pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais), em entrevista ao UOL.
Em 2014, um comunicado da Plataforma para Biodiversidade e Serviços do
Ecossistema das Nações Unidas enfatizou que o conhecimento das
comunidades indígenas de várias regiões tinha utilidade para áreas como
agricultura, manejo florestal e exploração dos oceanos, assim como para
cumprir as metas da biodiversidade global.
“Os povos da floresta são detentores de bancos genéticos e promotores de
novas variedades de agricultivares”, escreveu Mauricio Torres, doutor
em Geografia Humana pela USP, em artigo de 2011 intitulado “A despensa
viva: um banco de germoplasma nos roçados da floresta”, em que questiona
a perda dessa diversidade agrícola frente à “uniformidade” do
agronegócio. Em seu trabalho, Torres pontua que em comunidades, em que a
história se baseia na transmissão oral, há uma “memória coletiva”
interligada com a paisagem e a geografia de suas regiões.
Para Eduardo Góes Neves, pesquisador do Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP (Universidade de São Paulo), autor de “Arqueologia da Amazônia” e
coautor de “Unknown Amazon: Culture in Nature in Ancient Brazil”
(Amazônia desconhecida: cultura na natureza no Brasil antigo, em
tradução livre), desperdiçar esse patrimônio implica um grave problema
ético. “Esse arranjo que compõe a diversidade do planeta tem milhares de
anos e a nossa geração não tem o direito de acabar com isso”, afirmou
ao Nexo, por telefone.
Leia a entrevista completa abaixo.
Quando se extingue ou se altera o território de um povo indígena, quais
os riscos para o conhecimento que ele acumulou?
Eduardo Góes Neves Corre o risco é de desaparecer também. Esse processo
geralmente é muito violento e truculento e o processo de transmissão
desse conhecimento também é demorado, é um diálogo que as sociedades vão
construindo ao longo do tempo. A gente sabe de populações que têm
contato há muitos anos com a sociedade nacional, mas que têm
conhecimentos que ficam guardados naquele âmbito. E se formos pensar no
conhecimento sobre bichos, dos ciclos da natureza, por exemplo, isso é
muito importante diante dos desafios que temos pensando em lugares como
na Amazônia, que a gente ainda nem conhece direito e estamos ocupando de
maneira totalmente errada. É um tipo de conhecimento cujo
desaparecimento é muito ruim, principalmente agora, com o mundo em que
estamos vivendo, sentindo e percebendo com mais intensidade a mudança
climática.
Quando se fala em conhecimento indígena, pensamos primordialmente em
plantas. O que mais a gente pode considerar?
Eduardo Góes Neves É uma maneira diferente de olhar para o mundo. Cada
maneira de olhar que é diferente da que consagramos, a tradição
intelectual judaico-cristã, tem de ser respeitada pelo seu próprio
valor. A gente fala de ontologias diferentes, maneiras de olhar para o
mundo, de pensar a existência. Compartilhamos o mesmo planeta, mas somos
populações com histórias culturais diferentes, então vivemos o desafio
de aceitar essa unicidade que é biológica, mas ao mesmo tempo de
respeitar todas as manifestações culturais, assim como as outras formas
de vida que estão aqui, e não só humanas, mas animais, plantas. Claro
que o conhecimento sobre a natureza é importante, mas estamos falando de
um conhecimento sobre o mundo em geral, sobre o universo, no sentido
mais amplo. Mas essa discussão não pode ser apenas utilitária, porque
esses caras têm uma solução para os problemas que criamos no mundo.
Claro que é importante, é legal saber para poder usar e aplicar, mas tem
uma questão mais de fundo, de justiça. As sociedades ocidentais tem a
força bélica, mas não temos o direito de fazer isso, se formos pensar
num sentido mais profundo. Esse arranjo que compõe a diversidade do
planeta tem milhares de anos e a nossa geração não tem o direito de
acabar com isso, de zerar esse relógio.
Você pode falar um pouco mais sobre como o conhecimento indígena
colabora para manter a biodiversidade?
Eduardo Góes Neves Uma coisa vai ficando cada vez mais clara: uma parte
dessa biodiversidade da Amazônia foi formada por humanos, por uma
interação entre humanos e não-humanos, plantas e animais, ao longo dos
últimos 10, 12 mil anos. O que se percebe em populações tradicionais,
não só indígenas, mas quilombolas também, e populações ribeirinhas, é o
interesse em estimular a diversidade, experimentar plantas diferentes,
plantar, colher, trazer para o quintal, ver para que serve, ver como
funciona. Um exemplo: trabalhamos com restos de plantas preservadas
arqueologicamente e temos de fazer coleções de referência para comparar,
por exemplo, [vestígios de] plantas antigas com modernas para poder
classificá-las. Percebemos que mais de 90% das plantas que encontramos
não sabemos ainda quais são. Significa que estamos vislumbrando só uma
parte inicial desse conhecimento. Esse processo de produção, de aumentar
a biodiversidade, é muito interessante, mas o que temos oferecido para a
Amazônia nos últimos anos é justamente o oposto: é reduzir a
diversidade, é não saber manejar. E fazemos isso de uma maneira
tecnologicamente muito avançada e máquinas super-modernas, como a gente
vê lá no Cerrado, substituindo a biodiversidade por algumas poucas
espécies de plantas e animais.
Como vê o discurso que encara os indígenas como “animais no zoológico”,
como se em estágio “inferior” ao do homem branco?
Eduardo Góes Neves Existe aí uma espécie de racismo ambiental, porque a
gente vem de uma tradição intelectual forjada em países nórdicos, de
clima temperado, na Europa e na América do Norte, que tem um contexto
geográfico e ecológico totalmente diferente e que vê as regiões
tropicais como insalubres, marginais, periféricas, que tem de ser
aprimoradas. Lembro quando descobri que a malária não era uma doença
tropical em uma visita ao Instituto de Medicina Tropical, mas existia
malária na Europa até o século 20, nos Estados Unidos também. O conceito
de doença tropical não é natural, mas sim social, que tem a ver com
pobreza, com o contexto dos trópicos. Existe uma relação de colonialismo
interno que funciona da mesma maneira. Nosso discurso sobre a Amazônia é
sempre de que ela tem de ser aprimorada, desenvolvida, ocupada, a
partir de critérios que não têm nada a ver com essas regiões e que não
respeitam populações que vivem lá há séculos, milhares de anos, e que
desenvolveram formas de vida interessantes para esse tipo de ambiente.
Faz sentido, no contexto atual, desvalorizar o conhecimento indígena
para poder usar como justificativa [de ocupar suas terras]. Ninguém está
preocupado com o país, se trata de negócios, tem muito dinheiro
potencialmente disponível nessas terras. O paradoxal é que são terras
públicas. É um discurso cínico: eles querem privatizar terras públicas
dizendo que é pelo interesse nacional. Como é que uma terra pública pode
ser contra o interesse nacional?
Olhando historicamente, qual o tamanho da influência do conhecimento
indígena na cultura e sociedade brasileiras?
Eduardo Góes Neves Veja as matas de pinhão no sul do Brasil, por
exemplo. Temos evidências de que são antrópicas, de que foram manejadas
pelos ancestrais dos indígenas caingangue. Temos evidências de que o
símbolo do estado do Paraná, a araucária, compõe matas que ganharam mais
extensão pelo manejo humano, o que chamamos de domesticação da
paisagem. A mandioca todo mundo sabe, mas tem a castanha, pupunha,
amendoim, cacau, goiaba, tabaco, o açaí, que virou um produto de
exportação, que gera muito dinheiro no norte do Brasil. É uma planta
manejada há muito tempo. Saindo da Amazônia, temos exemplos como a
batata, que é uma planta andina. Hoje, se pensamos em comida alemã e
inglesa logo pensamos em batata. Tem muita planta consumida no mundo
inteiro que resultou desse processo de manejo e seleção realizado por
povos indígenas que vivem no continente americano há muito tempo. Esse
conhecimento não funciona da mesma maneira que o método científico, mas
ele vem de uma curiosidade que reflete uma forma de conhecimento que é
sofisticada também. Desprezar isso tem uma questão ética, mas é também
uma grande estupidez. É uma catástrofe.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/01/20/O-conhecimento-ind%C3%ADgena-sob-ataque-segundo-este-pesquisador
© 2018 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2019/01/20/O-conhecimento-ind%C3%ADgena-sob-ataque-segundo-este-pesquisador
© 2018 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário