Três anos após o crime da Samarco, pouco mudou no país para fazer deste desastre um marco para o aprofundamento da proteção ambiental
O pensador estadunidense Benjamin Franklin tem uma citação de bolso que se aplica muito bem aos três anos do desastre da mineradora Samarco na bacia do Rio Doce: “A experiência é uma escola onde são caras as lições, mas em nenhuma outra os tolos podem aprender.”O que deveria ser um duro aprendizado para aperfeiçoarmos um sistema de licenciamento ambiental que nos proteja de outras catástrofes como esta, vai no caminho inverso. O Congresso Nacional quer priorizar a flexibilização (diga-se enfraquecimento) desse fundamental instrumento de prevenção de danos ao meio ambiente e à segurança das pessoas.
O crime cometido pela Samarco não começou naquele fatídico 5 de novembro de 2015, quando a barragem de Fundão se rompeu.
Para o promotor Carlos Eduardo Pinto, que integrou a força-tarefa de investigação no primeiro ano da tragédia, até ser surpreendentemente afastado do caso, as falhas tiveram início no processo de licenciamento ambiental da obra e seguiram acontecendo pela inação dos órgãos de fiscalização. “Nos procedimentos de investigação foi possível constatar que o licenciamento ambiental da Samarco foi todo realizado de modo irregular, com diversas omissões técnicas gravíssimas, que foram decisivas para a tragédia”, afirma.
O licenciamento ambiental é uma obrigação legal prévia à instalação de qualquer empreendimento ou atividade potencialmente poluidora ou degradadora do meio ambiente. Segundo o promotor, para agilizar o empreendimento, as concessões de licenças prévia, de instalação e operação foram autorizadas de maneira provisória e antecipada, o que “contraria a regra geral de análise das licenças pelo órgão colegiado”.
Outra falha foi a ilegalidade na emissão da licença de instalação sem que fosse apresentado seu projeto executivo e irregularidades na renovação da licença de operação, realizada sem a análise do Relatório de Avaliação de Desempenho Ambiental (RADA).
A fragilidade dos mecanismos de fiscalização e a precarização das vistorias técnicas pelos órgãos públicos permitem às mineradoras contratarem consultorias especializadas para que forneçam os laudos necessários para a operação de suas atividades. “Assim, o poder de polícia que deveria ser exercido pelo poder público acaba sendo terceirizado ao próprio empreendedor, que faz seu autocontrole por meio das consultorias que ele mesmo contrata”, diz o promotor.
E agora, o meio ambiente?
Se a atuação (ou a falta dela) dos órgãos responsáveis pelo licenciamento e fiscalização ambiental foi determinante para a negligência da Samarco, é essencial que estes órgãos atuem agora de forma efetiva para garantir a reparação ambiental e a compensação aos afetados, que ainda sofrem para ser indenizados.A Fundação Renova é responsável por colocar em prática o plano de manejo de rejeitos elaborado pelas mineradoras e definir o que será feito com o material despejado em cada localidade.
Basicamente, a decisão gira em torno de duas opções: o rejeito será removido do meio ambiente ou não?
A análise leva em conta que os rejeitos se misturaram ao sedimento dos rios e com o solo. Assim, mesmo a Renova admite que o material inicialmente considerado inerte (não-tóxico) pode trazer maiores riscos de contaminação. Nestes casos, a empresa avalia que o melhor é manter os rejeitos de minérios nos locais atingidos, em vez de retirar o material e levá-lo para um aterro ou uma nova barragem para armazenamento.
Para o promotor Carlos Eduardo, a decisão da empresa é um absurdo. Ele afirma que desde o período em que atuava na força-tarefa do caso foi contra a técnica que a Renova tem empregado. “Desde o rompimento foi possível perceber que a estratégia da consolidação dos impactos seria utilizada. Isso quer dizer que a recuperação ambiental dos rios atingidos pela onda de lama será feita sem a retirada do material. É isso mesmo! Com a conivência dos órgãos ambientais se define que a retirada da lama será mais danosa do que a sua permanência”, afirma.
Ele define essa estratégia como um “grave erro técnico” se for empregada em muitos dos territórios atingidos, e afirma que a Renova opta pela solução mais simples e barata em detrimento da remoção da lama. “Só a partir daí [retirada da lama], poderíamos considerar o início da recuperação dos danos ambientais decorrentes do rompimento da barragem de Fundão”, afirma.
Porém, a discussão sobre a manutenção dos rejeitos se mostra mais complexa. Em algumas regiões atingidas essa opção é defendida por engenheiros florestais e estudiosos do tema. O professor do Laboratório de Ecologia e Restauração Florestal da ESALQ-USP, Ricardo Rodrigues, explica que em alguns casos a manutenção dos rejeitos pode fazer sentido. “Se o rejeito não apresentar contaminantes – e essa deve ser a principal pergunta e ser respondida com transparência e total credibilidade científica -, deve ser mantido na área, pois sua retirada vai causar um novo grande impacto ambiental”, avalia.
Nesses casos, ele explica, a “restauração seria feita em cima do rejeito remodelado”. Porém, como não existem ainda estudos definitivos sobre a toxicidade da lama, o professor adverte: “Se houver contaminantes, o projeto não é mais de restauração, e sim de remediação ambiental, com o uso de espécies bioacumuladoras.”
Para além da retirada dos rejeitos, é preciso atentar para o processo de reflorestamento e recuperação das matas nativas. Nesse ponto, Rodrigues conta que os projetos iniciais das empresas aos quais teve acesso “estavam muito deficitários, em termos de concepção teórica e mesmo prática, não incorporando as evoluções de restauração das últimas décadas”.
O professor Ricardo Rodrigues e sua equipe coordenaram um dos estudos independentes financiados por doações arrecadadas pelo coletivo Rio de Gente, que avalia as diferentes perspectivas de reflorestamento para as áreas atingidas pela lama como forma de recuperar as matas nativas de cada região.
Eles chegaram à conclusão de que a recuperação das florestas é possível, mas as empresas precisam ser transparentes para aplicar as melhores técnicas conhecidas pela ciência. “Constatamos que é possível fazer excelentes projetos de restauração ecológica das áreas degradadas se a tomada de decisão estiver atrelada com o uso e geração de conhecimento científico. A destruição foi muito intensa, mas a natureza tem uma capacidade enorme de recuperação se bem estudada e manejada”, afirma.
Licenciamento em risco
O processo para emissão do licenciamento é uma conquista histórica para a preservação do meio ambiente, mas três anos após a tragédia do Rio Doce, ele está em risco com projetos de lei e declarações de políticos que tentam enfraquecê-lo, sob a justificativa de torná-lo mais ágil.Uma dessas ameaças é a nova Lei Geral de Licenciamento, que tramita no Congresso Nacional sob a relatoria do deputado Mauro Pereira (PMDB-RS).
O projeto de Lei prevê o enfraquecimento da participação popular durante a emissão do licenciamento, fortalecendo o lobby das grandes empresas, com o estabelecimento de consulta às populações atingidas apenas antes da concessão da Licença Prévia; a extinção do poder de veto de órgãos como Funai, Iphan e Fundação Cultural Palmares, silenciando as populações tradicionais, quilombolas e a preservação do patrimônio histórico brasileiro; e permite que os governos estaduais “simplifiquem” os projetos de licenciamento para atrair investimentos ao seu estado, o que pode intensificar uma “guerra fiscal” em busca de projetos com alto risco ambiental.
Ao invés de servir de exemplo e estabelecer um marco para que jamais se repita, o crime de Mariana tem sido silenciosamente ignorado pela classe política, que segue atendendo aos interesses de grandes e poderosas empresas, mesmo depois de assistir a destruição no rio Doce. “Temos a oportunidade de evitar novos desastres como o da Samarco mostrando que só nos interessa o fortalecimento da proteção ambiental através dos processos de licenciamento e fiscalização, e não sua facilitação para que as grandes empresas possam lucrar o máximo, realizando o mínimo pelo meio ambiente e populações locais.”, resume Fabiana Alves, da campanha de Clima e Energia do Greenpeace.
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