A preocupação do povo indígena com a preservação de sementes
naturais saltou da realidade para o universo da literatura infantil.
Recém-publicado pela editora Expressão Popular, o livro “O sopro da
vida”, de autoria do escritor indígena Kamuu Dan Wapichana, traz à tona a
temática, que está entre os aspectos centrais da luta pela preservação
do cerrado brasileiro, alvo de intensa especulação agrária por parte de
ruralistas e multinacionais do setor.
De acordo com
Wapichana, embora não indique diretamente o nome de lugares específicos, o
enredo foi inspirado na história do Santuário dos Pajés, em Brasília (DF),
território indígena onde vive o autor.
Santuário dos Pajés
Alvo de aliciamento
constante de construtoras que, ao longo da última década, ocuparam parte da
área para expandir prédios de luxo numa nova zona residencial da cidade, a
comunidade do Santuário trava uma disputa permanente pela preservação do
terreno, marcado pela vegetação do cerrado e por uma rica variedade de espécies
botânicas da região.
Para Kamuu, a
história do Santuário reflete a realidade de diferentes comunidades
populares do Brasil que trabalham pela manutenção da riqueza natural do cerrado
– região marcada pela diversidade de sementes naturais, como copaíba, sucupira,
milho, jatobá, urucum e outras.
Com base
nisso, o autor criou, para o livro, uma narrativa conduzida pelo menino Win
Dan, de 4 anos, que pretende salvar as chamadas “plantas bebês”, numa
referência às sementes naturais.
O personagem tem o mesmo
nome do filho mais novo do escritor e, segundo Kamuu, a história foi tecida a
partir da tentativa de deixar para a criança um legado voltado à importância da
conservação da natureza.
“É numa perspectiva de que ele faça a mesma coisa de tratar bem o
cerrado, a água, de ver a riqueza do cerrado no meio de uma situação
urbana, aí nasce ‘O sopro da vida’”, afirma o escritor, que é autor
também do livro “A árvore dos sonhos”, obra que ficou em segundo lugar
no Concurso FNLIJ/UKA Tamoios de Textos de Escritores Indígenas em 2016.
Escritor indígena Kamuu Dan Wapichana, autor do livro recém-lançado “O sopro da vida”. Foto: Leonardo Milano
Educação Ambiental
Indicado para crianças
da faixa etária do ensino fundamental, o novo livro nasce também da necessidade
do autor de ter um material de referência para promover a educação ambiental na
formação infantil.
Servidor da
Funai desde a década de 1990, Wapichana atua também como educador social
em escolas de Brasília para divulgar a cultura indígena por meio de atividades
que promovem a consciência ambiental. Com a publicação de “O sopro da vida”, o
autor espera potencializar o trabalho.
“As pessoas
não estão percebendo este contexto que está ocorrendo. O nosso mundo começa a
entrar em colapso por conta do tema ambiental, que é o que eu trago pras
crianças, pras elas começarem a perceber isso e tratarem bem as sementes,
porque só com as sementes vamos ter floresta. E tem que ser agora, tem que ser
urgente”, complementa.
Militância
O tema abordado na obra
se conecta diretamente com a militância popular contra o avanço de alimentos
geneticamente modificados, os chamados “transgênicos”, associados às práticas
do agronegócio. Kammu Dan Wapichana lembra que o modelo de produção contrasta
com a defesa e a preservação das sementes naturais, também nomeadas de
“sementes crioulas”.
Produzidas
geralmente por indígenas, quilombolas e agricultores familiares, essas
variedades hoje estão ameaçadas pelo crescimento dos latifúndios, que produzem
em larga escala e se dedicam especialmente a cultivos como os de soja e milho.
“Nós não
sabemos o que estamos consumindo nos mercados. A maioria dos produtos feitos do
milho, por exemplo, é transgênica. Eles [os ruralistas] cada vez mais
devastam o nosso território e comercializam sementes que não são mais as
naturais da nossa região, então, a gente precisa resgatar urgentemente essas
sementes tradicionais, senão daqui a um tempo não tem mais como plantar”,
defende o escritor.
Bilíngue
Outro aspecto
de realce na obra é o caráter inclusivo do material, cuja edição é bilíngue,
sendo publicada em português e em wapichana, idioma nativo dos pais do autor.
Para Kamuu, a obra colabora com a promoção da cultura e da literatura
indígenas, além de enriquecer o acervo da língua, ainda precário. O idioma é
falado por comunidades do interior de Roraima, estado onde nasceu o escritor.
“Como eu não
tive essa oportunidade de ter a língua wapichana dentro da escola, tenho uma
satisfação imensa de poder ajudar [as novas gerações]. Os parentes ficaram
super contentes com isso. O Brasil tem 274 línguas indígenas e não valoriza
essa diversidade. Então, o livro é uma maneira de valorizar inclusive o povo
brasileiro, que tem toda essa riqueza”, conta.
Simbiose
Para o autor,
o livro é também um meio de valorização da interação entre homem e natureza,
uma combinação de destaque na cosmovisão indígena, cujos ensinamentos
atravessam tempos e gerações na busca por uma relação saudável entre as duas
partes.
“Pra nós, a
floresta é nossa morada, a terra é nossa mãe e a água é nossa irmã. Tem vários
elementos que a gente não pode dissociar, e um deles são as sementes. Não
podemos perdê-las porque, quando a gente perde uma árvore, morre também um ser
dentro da gente. Na minha visão como indígena, vejo as plantas como irmãs e as
sementes como bebês, por conta do cuidado que a gente tem com elas. Eu sou
parte desse grande todo e dessas sementes. Eu também sou uma semente”, poetiza
Wapichana.
Já lançada em
Brasília (DF) e em Boa Vista (RR), a obra tem previsão de lançamento
também em Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo e Goiânia.
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