O Globo – Metade dos povos indígenas isolados é alvo de religiosos
24 Feb 2020
DANIEL BIASETTO
A nomeação de um ex-missionário evangélico para a coordenação da área de indígenas isolados da Funai reacendeu uma polêmica que vinha adormecida desde os anos 1990, quando o órgão suspendeu a entrada em terras indígenas de missões religiosas que ameaçavam pôr em risco a política de não contato, sustentada pela Constituição de 1988. Trinta anos depois, a investida de evangelizadores continua e já atinge 13 dos 28 povos reconhecidos em situação de total isolamento. A diferença é que, agora, esses missionários, se sentem respaldados pelo discurso do atual governo.
Levantamento feito pelo GLOBO de denúncias da entrada de missionários evangélicos em terras indígenas feitas ao Ministério Público Federal (MPF), dados da Funai e do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI) mostra que a maioria das ocorrências está no Vale do Javari (AM), região com a maior concentração de nativos isolados do mundo. Além do Javari, com o registro de ameaça a dez povos, há ainda ocorrências nas terras indígenas Mamoadate (AC) e Hi-Merimã (AM).
A lei brasileira determina que iniciativas de contato com os grupos isolados devem partir deles próprios, cabendo ao governo federal proteger e demarcar suas terras. Além do proselitismo religioso, os isolados sofrem a ameaça de madeireiros, garimpeiros, narcotraficantes e caçadores ilegais, além dos desmatamentos e incêndios.
CRIME FEDERAL
As mais recentes ocorrências de invasão de territórios indígenas por missionários, segundo a Funai, se deram no Vale do Javari. Uma delas denunciada por indígenas da etnia Matis e a outra na terra indígena Hi-Merimã, onde um missionário realizava uma expedição exploratória.
A Funai afirma que os casos foram encaminhados ao (MPF) e à Polícia Federal (PF) para providências cabíveis, mas não informou se houve alguma conclusão.
“A Funai informa que desde o ano de 2018 houve duas ocorrências de entrada irregular de missionários em territórios indígenas onde há povos isolados ou de recente contato. Invasão de Terra Indígena configura crime federal e são investigadas pela Polícia Federal”, diz a nota.
O GLOBO confirmou com o MPF que os dois casos foram investigados e as ações chegaram à 6ª Câmara da Procuradoria-Geral da República, responsável por populações indígenas e comunidades tradicionais, com o apoio da Secretaria de Cooperação Jurídica Internacional. Um deles foi arquivado.
O MPF apura ao menos 21 denúncias envolvendo missões religiosas em terras indígenas, entre elas casos envolvendo a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), onde atuou o ex-missionário e hoje coordenador da área de indígenas isolados da Funai, Ricardo Lopes Dias.
A MNTB atua na evangelização de índios na Amazônia desde os anos 1950 e foi expulsa após dois casais norte-americanos e outros missionários brasileiros estabeleceram contato com índios da etnia Zoé, no Pará. Investigada pela suposta responsabilidade na morte de indígenas que teriam contraído doenças como gripe e pneumonia, teve seu processo arquivado.
O GLOBO apurou que por trás dessas missões sob investigação figura um grupo de religiosos norte-americanos ligados a igrejas evangélicas, acusados pelos indígenas de tentarem, recorrentemente, invadir as terras indígenas na região do Javari para obter contato com os isolados. Três deles são suspeitos de organizarem expedições com esse objetivo: os pastores Andrew Tonkin, Steve Campbell e Wilson Kannenberg.
Campbell, ligado à Igreja Batista, foi denunciado após ingressar no território dos Hi-Merimã no início de 2019, guiado por um índio Jamamadi, da qual é próximo.
Recentemente, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) denunciou às autoridades que Tonkin entrou sem autorização na região onde vivem os isolados perto do rio Itacoaí, oeste do Amazonas.
—Ele pretendia fazer contato com os isolados Korubo e foi visto em meados de setembro acompanhado de um pastor indígena Mayouruna —afirmou o presidente da Univaja, Paulo Marubo.
HIDROAVIÃO
Tonkin usaria um hidroavião monomotor para chegar à área dos indígenas isolados. O avião pertenceria a Kannenberg, segundo afirmaram ao GLOBO moradores de Atalaia do Norte e Benjamim Constant, no sudoeste do Amazonas, onde vivem os americanos. O GLOBO não obteve retorno do contato feito com Kannenberg.
O GLOBO falou com Tonkin na última sexta-feira à noite e o questionou sobre as acusações de invadir terra indígena. O missionário pediu que as perguntas fossem enviadas por e-mail e não deu mais retorno.
No site Frontier International Mission que se intitula “um ministério batista de livre arbítrio”, Tonkin aparece como líder missionário. A página traz ainda a colaboração de dois casais, também norte-americanos, Doug e Lydia Caudill e Ezra and Joanna Brainard.
Procurado, Ezra afirmou que eles nunca estiveram em terras de índios isolados.
— Nosso objetivo é trazer para o povo de qualquer cultura a paz, alegria, amizade e o amor de Deus através de Jesus Cristo —disse ele, por e-mail.
A Embaixada dos Estados Unidos disse que é responsabilidade das autoridades locais “qualquer atividade que possa contrariar as leis do Brasil”.
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