por Maurício Hashizume, Repórter Brasil –
Municípios às margens do Parque Indígena do Xingu são palco do
avanço do agronegócio e registram altos índices de focos de incêndio e
desmate; ações tímidas do governo do MT e agenda antiambiental da gestão
Bolsonaro estimulam degradação da floresta amazônica no estado
Três toras de árvores tombadas e um boi ilustram, respectivamente, os
brasões oficiais das cidades de Marcelândia e Feliz Natal, no norte do
Mato Grosso. Desmatamento, exploração madeireira e criação de gado
também estão patentes no cotidiano local e nos altos índices recentes de
devastação nos dois municípios, tanto em termos de focos de calor como
de área de floresta derrubada. Localizadas às margens do Parque Indígena
do Xingu, numa região conhecida pela abertura de “novas áreas” de
desmatamento, essas cidades simbolizam a escalada da degradação
ambiental da Amazônia
no estado e colaboram para que o Mato Grosso se afaste da meta, que ele
próprio firmou em 2015, de desmatamento ilegal zero até 2020.
Feliz Natal teve 162 focos de incêndios registrados pelo Inpe
(Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) entre junho e julho deste
ano – maior registro entre os municípios do bioma amazônico no Mato
Grosso, enquanto Marcelândia teve a maior área desmatada (83 km²) em
imóveis rurais cadastrados, segundo dados do Prodes entre 2018 e 2019. E
estes são apenas dois dos dados que mostram como a situação dessas
cidades representa o fracasso do estado em acabar com desmatamento ilegal – uma promessa lançada durante a Cúpula do Clima em Paris que vem se tornando cada vez mais inalcançável.
Entre agosto de 2019 e julho deste ano, o Inpe detectou 1,8 mil km² de área desflorestada no bioma Amazônia do Mato Grosso, aumento de de 31%
em comparação a um ano antes. Se confrontado com dois ciclos atrás
(agosto de 2017 a julho de 2018), o salto foi de 60%. A escalada da
degradação mês a mês também impressiona e foi mais intensa justamente no
último mês de julho, com o índice de desmatamento sofrendo uma alta de
136% em relação ao mês anterior.
Uma das principais medidas tomadas pelo governo do Mato Grosso para
coibir a destruição da floresta no prazo determinado foi o investimento
em modernos sistemas de satélites de monitoramento. Ao custo de R$ 6
milhões, em 2019, foi contratado o sistema de alertas Planet,
resultado de recursos captados pelo Mato Grosso junto ao Reino Unido e à
Alemanha. Outra iniciativa, essa em parceria com o Ministério Público
Estadual, para cumprir a meta era cruzar os dados do Planet com áreas
lançadas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) para agilizar os relatórios
de infrações ambientais.
No entanto, essas medidas foram neutralizadas por três erros, de
acordo com especialistas. As projeções e promessas feitas estavam foram
da realidade; faltou atuação política contra as ações do governo federal que dificultam o controle do desmatamento
e, por fim, ações práticas foram tímidas já que só o monitoramento
remoto de incêndio e desmate, mesmo com satélites de ponta, não é
suficiente.
Procurado pela reportagem, o governo mato-grossense afirmou
reconhecer que “o déficit de investimentos necessários para alavancar o
desenvolvimento sustentável no Estado ainda é muito grande“, mas afirmou
que para que isso aconteça também é preciso que haja “uma ação coletiva
com a participação de outras esferas da administração pública e com
envolvimento do setor privado e da sociedade civil” (leia aqui a resposta na íntegra).
Fernando Sampaio, diretor-executivo da estratégia do governo para zerar o desmatamento, chamada Produzir, Conservar e Incluir,
admite que a meta estadual “está muito longe” de ser alcançada. “Os
ruralistas falam que o Brasil consegue produzir muito mais sem desmatar.
Mas o fato é que, mesmo melhorando as ações de fiscalização ambiental
para tentar segurar [a devastação], esse jogo só vai virar quando a
gente conseguir trazer um valor real para a floresta em pé”.
O município de Feliz Natal, mais uma vez, pode ser usado para
ilustrar a declaração de Sampaio sobre como a floresta intacta vale
muito menos do que uma área devastada. A prefeitura
determina, para fins de arrecadação de impostos, que cada hectare de
área preservada vale R$ 1.480, enquanto o de área boa para lavoura vale o
triplo: R$ 4.433. Mesmo para áreas consideradas regulares para lavoura,
o valor fixado é de R$ 3.614. “Até hoje a floresta em pé continua não
valendo nada. Para qualquer um que tenha área de floresta, a terra vale
muito mais sem floresta do que com”, reforça Sampaio.
Desmatamento ‘desesperador’ e produção pecuária recorde
“Os números são terríveis. O volume de desmatamento é desesperador,
pela perda de biodiversidade que o Brasil está sofrendo”, afirma o
promotor de Justiça Marcelo Vacchiano, coordenador do Centro de Apoio
Técnico à Execução Ambiental do Ministério Público Estadual do Mato
Grosso (MPMT).
A diretora-adjunta do Instituto Centro de Vida (ICV), Alice Thuault,
também vê os números da escalada de desmatamento como “assustadores” e
condena a “pirotecnia antiambiental” da parte do governo federal que
passou a dominar a agenda do setor. No mesmo levantamento que apresentou
o dado de que 85% dos desmatamentos no Mato Grosso são ilegais
no período 2018/2019, a queda de autuações por danos à flora no Estado
por parte do Ibama também foi sublinhada: de 1.093, em 2015, para apenas
411 em 2019, menos da metade em um ano de maior intensidade de
devastação ambiental.
O Ibama vem sendo alvo de uma “intervenção militar”
principalmente desde o Decreto da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e a
criação, em maio, da Operação Verde Brasil 2, que vem causando uma
desconstrução de políticas estatais ao substituir equipes técnicas
experientes por comandos militares.
Na opinião do promotor Vacchiano, essa agenda governamental que não
enfrenta os problemas socioambientais do país inclui ainda anistias por
crimes ambientais, passividade perante as invasões de florestas,
grilagens e orientações do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles,
para “passar a boiada” com desregulamentações jurídicas.
Na esfera estadual, organizações da sociedade civil criticam ainda a aprovação na Assembleia Legislativa de Mato Grosso de projeto de lei
que permite a derrubada de mata nativa em Área de Proteção Permanente
(APP) para projetos autodeclarados de “baixo impacto”, sem a devida
checagem do cadastro ambiental, e também dá margem para licenciamentos
“expressos”, com base apenas em documentação apresentação pela parte
interessada. Na sua versão original, o projeto autorizava até o registro
de CAR sobreposto a Terras Indígenas ainda em processo de homologação —
item que acabou sendo retirado do texto aprovado em julho, em pleno
contexto de pandemia, após pressão dos indígenas e de ambientalistas.
Esse cenário de fragilidade ambiental se dá num contexto de produção
do agronegócio nas alturas. O Valor Bruto da Produção Agropecuária (VBP)
no Mato Grosso deve atingir R$ 125 bilhões em 2020, segundo o
Ministério da Agricultura. É o maior do país (17,5%), seguido por Paraná
(12,8%), com R$ 91 bilhões, e São Paulo (12,7%), com R$ 90,7 bilhões. Neste ano, o valor bruto nacional
deve atingir R$ 716 bilhões — alta de 8,8% na comparação com 2019.
Puxados por safras recordes de grãos e pela valorização dos preços dos
produtos agrícolas, será a maior produção em 31 anos — mesmo em meio à
pandemia do novo coronavírus e com diversos setores passando por
retração.
Nível municipal
Tanto os números como as medidas do governo em suas ações de desmonte
ambiental ganham corpo na trajetória recente de Marcelândia. Situada a
210 km de Sinop, centro do chamado “Nortão” do Mato Grosso, entre a
Rodovia BR-163 e o Parque Indígena do Xingu, a cidade foi alvo de
operações do Ibama e da Força Nacional – como a Curupira (2005) e a Arco
de Fogo (2008) – que flagraram irregularidades e abalaram a indústria
madeireira local.
Depois de ter permanecido entre 2008 a 2013 na lista de municípios prioritários para ações de prevenção, monitoramento e controle
do Ministério do Meio Ambiente, Marcelândia passou cinco anos no grupo
de municípios com desmatamento monitorado e sob controle para, em 2018,
retornar à lista de maior atenção.
Em Marcelândia, apenas uma única pessoa, ligada a uma companhia do
setor do agronegócio, está sendo responsabilizada, no pacote de
inquéritos do Ministério Público, pelo desmatamento ilegal de 2,9 mil
hectares (que correspondem a quase 3 mil campos de futebol) entre 2008 e
2019. Um outro proprietário, empresário que vive distante em cidade do
Sul do país onde foi prefeito, está respondendo perante ao MP pela
derrubada ilícita de outros 1 mil hectares noo mesmo período.
O município tem predominância de grandes propriedades – as terras com
menos de 400 hectares ocupam apenas 5% da área, enquanto fazendas com
mais de 2 mil hectares abocanham 71% — o que sinaliza que quem desmata e
faz queimar em Marcelândia, em geral, não é o agricultor familiar, o
assentado ou o membro de comunidade. São os grandes fazendeiros.
“O município passa hoje por uma transição da pecuária para a
agricultura. Então, temos uma rotatividade de proprietários que, antes,
não era assim tão comum. Observamos que alguns deles chegam aqui, fazem a
sua ‘limpeza’, a sua ‘abertura’ e procedem a sua ‘queima’. Às vezes,
ignoram o fato de que existe a fiscalização”, relata a secretária
municipal de Meio Ambiente, Suzana Barbosa.
Segundo ela, também houve uma queda na frequência das fiscalizações
ambientais: “Entre 2013 a 2018, a equipe do Ibama costumava chegar aqui
logo que se encerrava o período das chuvas (entre fevereiro e abril) e
ficava até novembro ou dezembro”. Em 2019 e 2020, as ações foram
escassas, de acordo com Barbosa, apenas com intervenções pontuais de
monitoramento remoto, e não duraram mais que 20 dias.
No ano passado, os incêndios florestais registrados pelo Corpo de Bombeiros
em Marcelândia deram um susto na população, que se recordou do cenário
infernal da temporada do fogo de 2010 — quando labaredas avançaram sobre
o município, deixando famílias desabrigadas, destruindo 80% das
empresas e criando a necessidade de decreto de emergência.
Mesmo assim, Marcelândia ainda aparece como terceiro município do
bioma Amazônia no Mato Grosso com maior número de focos de calor (148)
detectados pelo Inpe entre junho e julho de 2020, apenas atrás da vizinha Feliz Natal (162) e da Gaúcha do Norte (152).
#Envolverde
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