Discurso ‘pró-garimpo’ aumenta desmatamento, ameaça indígenas e internacionaliza floresta. Entrevista especial com Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Jardim Wanderley
Segundo os ambientalistas, a abertura do atual governo para a atividade traz consigo mais desmatamento na Amazônia, expõe comunidades originárias e ‘entrega’ recursos naturais a capital estrangeiro
Por: Patricia Fachin | Edição: João Vitor Santos / IHUQue o governo de Jair Bolsonaro não é afeito à atenção e cuidado com a região amazônica não é nenhuma novidade. No entanto, é preciso estar atento para o fato de que, além de ‘abrir a porteira para a boiada’, a facilitação da atividade de mineração em terras preservadas, especialmente pertencentes a comunidades indígenas, dispara uma cadeia de danos a toda a região. Segundo Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Jardim Wanderley, ambientalistas que atuam na Amazônia, “o garimpo vem sendo um importante vetor de desmatamento em Terras Indígenas e Unidades de Conservação”.
Em entrevista conjunta, concedida por e-mail à IHU On-Line, apontam que “nos últimos anos, desde o início da crise em 2015, o garimpo vem aumentando sua participação no desmatamento na Amazônia. A partir de 2019, essa tendência se aprofundou ainda mais, com a permissividade da política ambiental de Bolsonaro e o discurso pró-garimpo”. Mas os danos não param por aí.
Depois que o Estado permite a instalação do garimpo, violência contra indígenas, outros conflitos, contaminação por metais pesados e instalação de garimpos ilegais passam pelos caminhos abertos pelas grandes empresas. “A construção de infraestrutura de apoio para as atividades industriais (estradas, aeroportos, hotéis, mercados, centros comerciais etc.) facilitaria o acesso às Terras Indígenas e reduziria o custo de instalação das mineradoras ilegais”, exemplificam.
Aliás, empresas essas que, em sua maioria, estão ligadas a grandes corporações internacionais. Ou seja, os ambientalistas ainda observam que o poder estatal é quem está entregando a Amazônia para estrangeiros. “Os dados mostram que, diferente do que é dito pelo presidente, não seriam as ONGs as responsáveis pela ‘internacionalização da Amazônia’, mas sim as empresas mineradoras, por meio de complexas estruturas de propriedade, que garantem ao capital financeiro global o controle das reservas minerais da região e, consequentemente, direito para definir o uso do solo, podendo expulsar de seus territórios pequenos agricultores e comunidades tradicionais”, sintetizam.
Dário Bossi é missionário comboniano, membro da rede Iglesias y Minería e assessor da Comissão especial para Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB.
Bruno Milanez é doutor em Política Ambiental pela Lincoln University, Nova Zelândia, e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do Grupo Pesquisa e Extensão Política, Economia, Mineração Ambiente e Sociedade – PoEMAS.
Luiz Jardim Wanderley é doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, professor da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Grupo Pesquisa e Extensão Política, Economia, Mineração Ambiente e Sociedade – PoEMAS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que a Amazônia é um território visado pelas empresas de exploração mineral?
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Primeiro, devemos lembrar que o território amazônico é visado há muito tempo pelas empresas mineradoras. A mineração em larga escala já tem mais de meio século na região, com a descoberta de manganês na Serra do Navio (AP), na década de 1940, e o início de sua exploração na década seguinte. Ao final da década de 1960, os achados de minério de ferro de Carajás e de bauxita em Porto Trombetas, no Pará, motivaram políticas públicas de pesquisa, como o projeto RADAM [operado entre 1970 e 1985 no âmbito do Ministério das Minas e Energia, foi dedicado à cobertura de diversas regiões do território brasileiro, em especial a Amazônia, por imagens aéreas de radar, captadas por avião].
Na década de 1970 e 1980, novas descobertas foram feitas, como o nióbio de Seis Lagos, no Amazonas, o caulim nos vales dos rios Capim e Jari, no Pará, o estanho de Bom Futuro, em Rondônia e em Pitinga no Amazonas. Essas descobertas, os fomentos públicos à atividade de mineração na Amazônia e os investimentos estatais e internacionais foram fundamentais para a era dos grandes projetos de mineração na região nos anos 1970 e 1980. Ou seja, é bom enfatizar que já desde 1940 vemos o interesse das mineradoras nacionais e internacionais pelo subsolo da Amazônia brasileira.
Depósitos e ocorrências metálicas e principais distritos de mineração e províncias metalogênicas em 2017 (Fonte: CPRM2018)
As mineradoras são atraídas para a Amazônia também
graças às grandes subvenções públicas, às isenções fiscais e à
facilitação de créditos dos bancos públicos. Alessandra Cardoso, do Instituto de Estudos Socioeconômicos – Inesc, chama a Amazônia de “paraíso extrativo e tributário das transnacionais da mineração” . Para além da Lei Kandir, que isenta do ICMS os minérios extraídos em todo território nacional para exportação, no caso específico da Amazônia há incentivos fiscais concedidos pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – Sudam, que incluem descontos de 75% do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica.“Já desde 1940 vemos o interesse das mineradoras nacionais e internacionais pelo subsolo da Amazônia brasileira”
Cobiça sobre áreas ainda não pesquisadas
A Amazônia ainda é uma importante fronteira mineral, quem sabe uma das últimas do mundo. Isso significa que há um grande volume de áreas não exploradas pelas mineradoras, mas também desconhecidas de suas potencialidades minerais. Existem ainda grandes porções do território amazônico que nunca foram pesquisadas, ou que possuem pesquisas minerais muito incipientes. Essas áreas estão sobretudo em florestas de proteção integral (94 milhões de ha) e Terras Indígenas (115 milhões de ha), que tornam 40% do território proibido à exploração da mineração. Assim, a possível abertura de mais de 200 milhões de hectares sem pesquisa aprofundada é uma das grandes cobiças das mineradoras sobre a região.
Em junho deste ano, o ministro da Economia, Paulo Guedes, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos, criou a Política de Apoio ao Licenciamento Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos. Essa proposta pretende facilitar o licenciamento ambiental para exploração de “minerais estratégicos” para o país. A definição de “estratégico”, porém, é muito ampla: refere-se a minerais de cuja importação depende a economia brasileira, ou importantes para produtos de alta tecnologia, ou que podem oferecer uma vantagem comparativa no superávit de nossa balança comercial. Nesses termos tão genéricos cabe tudo: ferro, bauxita, cobre, níquel, fósforo, potássio, nióbio etc.: mais um ataque anunciado à Amazônia!
IHU On-Line – O que predomina na Amazônia hoje, a mineração empresarial ou a mineração garimpeira?
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Atualmente, na Amazônia, ambos os processos de extração, garimpos e mineração, ocorrem concomitantemente. Em alguns casos mineração e garimpos trabalham lado a lado, como em áreas do Tapajós, no oeste paraense, ou no norte do Mato Grosso. Em Aripuanã (MT), a empresa Nexa da Votorantim fez, este ano, um acordo com garimpeiros para operarem às margens de seu empreendimento.
Bacia Amazônica com a localização do rio Tapajós | Mapa: Wikipédia
No governo Bolsonaro, os empresários do garimpo vêm ganhando força nas negociações políticas junto ao Executivo. Mas isso tem menos a ver com um aumento da sua influência econômica e mais por uma proximidade com o discurso fisiológico do atual governo, antiambientalista, pró-ilegalidades e anti-indígena.
Força-Tarefa Amazônia
Uma recente e detalhada reportagem da Agência Pública deu visibilidade às investigações da Força-Tarefa Amazônia (FTA), que desvendaram no sistema dos garimpos uma “lavanderia” de dinheiro sujo a céu aberto, envolvendo o coração financeiro da América do Sul, São Paulo. No esquema, o ouro extraído na Amazônia ilegalmente, sobretudo em Terras Indígenas e Unidades de Conservação, é legalizado por empresas de compra de ouro (DTVMs) que as incorpora legalmente no sistema financeiro paulista como ativos para investimentos.
Em junho de 2020, um dos empresários que banca o lobby para legalização do garimpo em Terras Indígenas participou de audiência com o vice-presidente, Hamilton Mourão, que preside o Conselho da Amazônia, a quem entregou um documento em que empresários do garimpo e agentes financeiros assumem o compromisso de combater a ilegalidade, desde que o governo federal garanta o fim de ações repressivas e da destruição de equipamentos de mineração.
O interesse crescente pelo ouro no Brasil se dá num contexto de consistente aumento do valor desse minério no mercado internacional, considerado um “valor refúgio” em tempos de pandemia e de conflitos comerciais entre a China e os Estados Unidos. Eterna segurança financeira em momentos de crise financeira e volatilidade das moedas nacionais, o ouro valorizou 78% em um ano (julho 2019-2020).
“O interesse crescente pelo ouro no Brasil se dá num contexto de consistente aumento do valor desse minério no mercado internacional”
Mobilização contra investimento no ouro
A rede Igrejas e Mineração e diversas entidades de defesa dos direitos humanos e da natureza, no mundo, criticam fortemente os investimentos em ouro, sendo a extração desse metal um dos processos mais poluentes e impactantes. E ainda, do ponto de vista social, o trabalho insalubre e perigoso em garimpos se torna uma das poucas opções para trabalhadores e trabalhadoras desempregados e sem perspectivas no interior da Amazônia.
Empresas de mineração
Entre as mineradoras, a ex-estatal Vale S.A. (antiga Companhia Vale do Rio Doce – CVRD) se destaca como principal mineradora da Amazônia e do Brasil, responsável pelo grande projeto Carajás – complexo minerometalúrgico que extrai ferro, cobre, ouro e níquel no sudeste do Pará e escoa pela Estrada de Ferro Carajás, que se estende até São Luís do Maranhão. Ao longo do caminho, uma mínima parte do minério é transformada em ferro-gusa. A Vale S.A. é proprietária majoritária da Mineração Rio do Norte (MRN) de bauxita, em Oriximiná (PA).
Além disso, foi a construtora e operadora do complexo metalúrgico de alumínio em Barcarena e da mina de bauxita em Paragominas, ambos vendidos para norueguesa Hydro na última década. Podemos citar também outras grandes mineradoras transnacionais na Amazônia, como a Alcoa World Alumina Brasil Ltda., que além de ser a segunda maior sócia da MRN, também opera a mina de bauxita em Juruti-PA; a Mineração Taboca S.A., que extrai estanho em Pitinga, Amazonas; a Mineração Buritirama S.A., exploradora de manganês em Marabá, Pará. E as mineradoras de ouro Beadell Brasil Ltda., no Amapá, Mineração Apoena S.A. no Mato Grosso e Serabi Mineração S.A. no Pará.
“Enquanto os empresários dos garimpos possuem poder local e regional, sobretudo nos municípios e às vezes a nível estadual, as mineradoras, em especial as transnacionais, possuem poder para influenciar a política estadual e nacional”
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Diferente do argumento das empresas mineradoras, segundo as quais o impacto da mineração ocorre apenas onde existe a cava, deve-se levar em consideração todos os impactos associados à infraestrutura, bem como à ocupação decorrente dos projetos minerais.
O caso mais emblemático, apresentado acima, é o complexo mina-ferrovia-porto do Programa Grande Carajás, que foi instalado na metade dos anos 1980 com o objetivo de escoar 35 milhões de toneladas de minério de ferro por ano e chegou recentemente a duplicar toda sua infraestrutura, abrindo novas minas no coração da Floresta Nacional de Carajás, construindo uma segunda ferrovia ao lado da primeira e expandindo o porto de Ponta da Madeira em São Luís (MA), na perspectiva de alcançar o patamar de exportação de 150 milhões de toneladas por ano.
Uma infraestrutura desse nível rasga os territórios da Amazônia, provocando desmatamento, expulsão de comunidades e famílias, contaminação do solo, do ar e da água, assoreamento de córregos e rios, poluição sonora e acidentes por atropelamento de animais e pessoas pelos trens, que continuamente atravessam os territórios de cerca de 100 comunidades.
Apesar de provocar tantos danos, a expansão desse complexo minerador está oficialmente habilitada pelo estado a operar no Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura.
“A partir de 2019, essa tendência se aprofundou ainda mais com a permissividade da política ambiental de Bolsonaro e o discurso pró-garimpo”
Minério e soja
A infraestrutura implantada para o escoamento do minério de ferro está servindo também para a exportação de soja, que chegou a 7,9 milhões de toneladas em 2019. Sendo a composição das ferrovias Norte-Sul e Carajás um canal privilegiado de escoamento dos produtos do monocultivo que hoje estão ameaçando a Amazônia.
Discurso pró-garimpo aumenta desmatamento
De acordo com artigo publicado no periódico Nature Communication, projetos extrativos de mineração podem induzir desmatamento até uma distância de 70 km das concessões minerais. A mesma pesquisa indica que as operações minerais em larga escala na Amazônia induziram um desmatamento 12 vezes maior do que a área de lavra concedida, tendo sido responsáveis, ao todo, por 9% do desmatamento na região entre 2000 e 2015.
Além disso, o garimpo vem sendo um importante vetor de desmatamento em Terras Indígenas e Unidades de Conservação. Nos últimos anos, desde o início da crise em 2015, o garimpo vem aumentando sua participação no desmatamento na Amazônia. A partir de 2019, essa tendência se aprofundou ainda mais com a permissividade da política ambiental de Bolsonaro e o discurso pró-garimpo.
“Operações minerais em larga escala na Amazônia induziram um desmatamento 12 vezes maior do que a área de lavra concedida; tendo sido responsáveis, ao todo, por 9% do desmatamento na região entre 2000 e 2015”
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Considerando os dados sobre concessão de lavra disponibilizados pela Agência Nacional de Mineração – ANM em 2019, as empresas nos estados da Amazônia Legal que possuíam direito minerário sobre a maior área eram a Companhia Brasileira de Alumínio (Grupo Votorantim), Vale S.A., Mineração Rio do Norte (Vale/Brasil, 40%, Alcoa/EUA, 21%, South32/Austrália, 14%, Rio Tinto/Austrália, 12%), Mineração Taboca S.A. (Minsur/Peru) e Mineração Paragominas S.A. (Hydro/Noruega).
Por outro lado, se baseamos nossas análises nas autorizações de pesquisa, as empresas que se destacam seriam Potássio do Brasil Ltda. (Brazil Potash/Canadá), Amazonas Exploração e Mineração Ltda. (Amazon Resources Ltd/Reino Unido), Amarillo Mineração do Brasil Ltda. (Amarillo Gold Corporation/Canadá), Potássio Ocidental Mineração Ltda. (Pacific Silk Road Corporation/Canadá) e Vale S.A.
Em primeiro lugar, chama a atenção a presença do capital internacional já controlando grande parte do subsolo da Amazônia, seja em termos presentes (concessão de lavra), seja em termos futuros (autorização de pesquisa). Os dados mostram que, diferente do que é dito pelo presidente, não seriam as ONGs as responsáveis pela “internacionalização da Amazônia”, mas sim as empresas mineradoras, por meio de complexas estruturas de propriedade, que garantem ao capital financeiro global o controle das reservas minerais da região e, consequentemente, direito para definir o uso do solo, podendo expulsar de seus territórios pequenos agricultores e comunidades tradicionais. Como afirmou o presidente em 2019: “o interesse é no minério”.
Ao se olhar para as licenças de pesquisa, percebe-se uma maior atuação de empresas de capital fechado, sobre as quais é mais difícil obter dados. Possivelmente essas empresas apenas negociam ou especulam os direitos minerários. Algumas talvez realizem as pesquisas minerais, e se elas se mostrarem economicamente viáveis, possivelmente venderão seus direitos para empresas maiores que tenham capacidade de realizar a atividade de extração.
Deve-se levar em conta, porém, que os dados da ANM não permitem avaliar a relação entre as empresas. Por exemplo a Mineração Santa Elina (6ª posição no ranking de pesquisa) é proprietária da Mineração Silvana (8ª no ranking de pesquisa). Considerando as áreas das duas conjuntamente, elas ficariam em terceiro lugar em pesquisa mineral na Amazônia. É possível que elas, assim como outras empresas mineradoras, tenham mais de uma subsidiária; por isso, torna-se muito difícil identificar com certeza quais empresas dominam o subsolo da Amazônia.
“Chama a atenção a presença do capital internacional já controlando grande parte do subsolo da Amazônia, seja em termos presentes (concessão de lavra), seja em termos futuros (autorização de pesquisa)”
Trama de mentiras e interesses
IHU On-Line – Uma parte significativa das terras indígenas e áreas protegidas na Amazônia já está registrada em nome de empresas mineiras, que disputam o direito à exploração das terras. Quais são as terras mais visadas pelas empresas, por quais razões e como tem acontecido esse processo?
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Segundo uma reportagem do Estadão, existem hoje 3.212 processos ativos de atividades minerais previstas dentro das Terras Indígenas da Amazônia Legal. Esses pedidos envolvem uma área total de 24 milhões de hectares, o equivalente a 21% de todo o território indígena da Amazônia Legal.
As terras mais ameaçadas, de acordo com os dados do Instituto Socioambiental – ISA, são a TI Yanomami (RR, AM) com 449 processos minerários, a TI Menkragnoti (PA, MT) com 374, e a TI Baú (PA) com 214. Do ponto de vista de percentual das áreas solicitadas, essa lista muda um pouco dado que no caso das TIs Baú, Rio Paru d’Este (PA) e Xikrin do Cateté (PA) os pedidos de pesquisa já correspondem a 100% de toda a sua extensão. Ou seja, se todos esses pedidos forem concedidos, esses territórios em sua integralidade serão transferidos para as companhias mineradoras.
Essa situação mostra a baixa preocupação e a forma displicente com que o Estado brasileiro lida com a questão das TIs. Uma vez que a legislação não permite a extração mineral em Terras Indígenas, esses pedidos deveriam ser automaticamente negados. Porém, ao invés de recusar as solicitações, a ANM os deixa em “espera”, como se fosse uma fila aguardando a regulamentação. À medida que essa fila cresce, aumenta a pressão sobre o governo pela liberação da TI. Ao mesmo tempo, dada a ideia do “direito de prioridade” que é comumente adotado pelas empresas do setor, isso vai criando um sentimento de propriedade e de direito adquirido, que torna depois a situação muito pior.
Já houve ao menos um caso no Canadá onde uma empresa mineradora solicitou o direito de pesquisa, mas como não realizou corretamente os protocolos junto aos Povos Indígenas, enfrentou grande resistência, que acabou por inviabilizar economicamente o projeto. Por fim, a empresa desistiu e processou o governo provincial, por não ter realizado os lucros que esperava. É esse o tipo de problema que pode ser gerado aqui, caso se avance com a permissão da mineração em Terras Indígenas.
“Uma vez que a legislação não permite a extração mineral em Terras Indígenas, esses pedidos deveriam ser automaticamente negados”
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Uma das principais resistências em defesa da Amazônia e em apoio aos povos indígenas deve ser contra o PL 191. É preciso garantir o direito ao consentimento prévio, livre e informado a estes povos, fortalecendo a oposição à mineração em suas terras, importante estratégia para preservação dos territórios amazônicos!
Nos termos do PL, se a Terra Indígena objeto de exploração não estiver com a sua demarcação já homologada por decreto presidencial, as comunidades ocupantes não precisam ser sequer ouvidas. Do ponto de vista local, o impacto mais direto seria o aumento da entrada de não indígenas (incluindo garimpeiros) nas TIs e, consequentemente, um crescimento significativo dos conflitos territoriais e da violência contra os indígenas.
Dizer que a mineração em grande escala vai necessariamente impedir a atuação dos garimpeiros e da mineração ilegal é uma falácia. Como falamos anteriormente, não necessariamente essas atividades são concorrentes. Portanto, não haveria garantia de que a entrada da mineração formal inibiria a extração ilegal. A mineração de aluvião ou de reservas de baixo teor, principalmente em áreas remotas, apresenta pequena atratividade para grandes empresas mineradoras.
Para ser economicamente viável, a extração dessas reservas depende de condições precárias de operação, tais como pistas de pouso clandestinas e inseguras, alojamentos insalubres, alimentação insuficiente, ausência de estrutura médica, uso de tecnologia poluente, inexistência de controle ambiental etc. Assim, elas não atrairiam empreendimentos industriais e continuariam sendo exploradas de forma precária e irregular, apesar de um verniz de legalidade concedido pela eventual regulamentação.
“Uma das principais resistências em defesa da Amazônia e em apoio aos povos indígenas deve ser contra o PL 191. É preciso garantir o direito ao consentimento prévio, livre e informado a estes povos”
Infraestrutura: caminhos para mais mineração ilegal
Além disso, a construção de infraestrutura de apoio para as atividades industriais (estradas, aeroportos, hotéis, mercados, centros comerciais etc.) facilitaria o acesso às TIs e reduziria o custo de instalação das mineradoras ilegais. Ainda nesse sentido, deve ser levado em consideração que os projetos minerais são caracterizados pela ocupação temporária de mão de obra. A dinâmica econômica de expansão/retração das operações minerais geraria excedentes de trabalhadores não-indígenas desempregados dentro das TIs que, provavelmente, optariam pela extração ilegal até um novo ciclo de contratação.Por exemplo, a redução da produção mineral na região de Ciudad Guayana, na Venezuela, causou um grande desemprego no setor, liberando milhares de mineiros que foram buscar trabalho na mineração ilegal no entorno. O município de El Callao foi considerado em 2017 e 2018 o mais violento do país, com a atuação de grupos armados e facções criminosas.
“Estudos recentes apontam que 476 assassinatos de pessoas indígenas em conflitos por terra entre 2010 e 2018”
Violência contra indígenas
Cabe lembrar que as violências contra pessoas indígenas no Brasil já são um grande problema que, infelizmente, é ignorado pelo Estado. Estudos recentes apontam que houve 476 assassinatos de pessoas indígenas em conflitos por terra entre 2010 e 2018. Ao longo do ano de 2019, ganhou notoriedade o aumento nas invasões e casos de violência vinculados à mineração ilegal. Nesse sentido, parece haver maior probabilidade de a liberação da mineração em TIs aumentar a violência nesses territórios do que diminuí-la.Danos ambientais
Para além do aumento da violência, conforme mencionado anteriormente, outro problema diretamente associado à entrada da mineração em TIs serão os impactos ambientais decorrentes do desmatamento. O crescimento da derrubada de florestas teria impactos significativos em escala local, regional, nacional e global. Localmente, ela diminuiria a biodiversidade, limitaria a disponibilidade de caça para os Povos Indígenas e aumentaria o assoreamento de igarapés e rios, prejudicando o abastecimento de água, a pesca e a navegação. Em escala regional, a redução da área florestada impactaria negativamente a umidade e a incidência de chuva, aumentando a probabilidade de grandes incêndios e intensificando a savanização da Floresta Amazônica.Do ponto de vista nacional, a perda de área de Floresta Amazônica impactaria diretamente a quantidade de chuva no país, prejudicando o abastecimento de água, a agricultura e a geração de energia hidrelétrica. Ainda, no nível global, deve-se considerar a contribuição desse desmatamento para as mudanças climáticas, uma vez que as florestas existentes nas TIs na Amazônica brasileira retêm cerca de 13 bilhões de toneladas de carbono.
Apesar de a mineração em TI ainda ser proibida, alguns povos já sofrem com impactos diretos da mineração e de sua infraestrutura sobre a saúde indígena e modo de vida. É importante trazer à memória o conflito entre o povo Xikrin do Cateté e a mineradora Vale, que instalou 14 empreendimentos de cobre, níquel e outros minérios ao redor de suas terras. Em sete anos de atividade, a extração e o beneficiamento de níquel pelo projeto Onça Puma contaminaram com metais pesados o rio Cateté e inviabilizaram a vida dos cerca de 1.300 Xikrin. Casos de malformação fetal e doenças graves foram comprovados em estudos.
O procurador federal Felício Pontes testemunhou: “O chão treme com as bombas advindas da operação do empreendimento, afugentando a fauna e prejudicando a caça. O rio está completamente contaminado, o que tem acarretado doenças nos indígenas que não eram registradas entre eles, como lesões dermatológicas, angioedemas deformantes e cefaleias”.
“Se a ANM não tem controle sobre as barragens que existem em Minas Gerais, o que dirá da situação na Amazônia”
Dário Bossi, Bruno Milanez e Luiz Wanderley – Considerando os estados da Amazônia Legal, existem cadastrados no banco de dados da ANM 274 barragens de mineração. É importante frisar que esse banco não inclui todas as barragens existentes, devido à falta de capacidade de fiscalização da Agência. Por exemplo, em junho de 2020, foram “descobertas” 10 barragens “fantasmas” de propriedade da Vale nos municípios de Sabará e Nova Lima em Minas Gerais. Se a ANM não tem controle sobre as barragens que existem em Minas Gerais, o que dirá da situação na Amazônia.
Dentre aquelas que estão cadastradas no sistema da ANM, 65 são consideradas de dano potencial alto; dessas, 13 estão classificadas em categoria de risco médio e alto. Deve ser levado em consideração, porém, que essas categorias de risco podem ser questionadas uma vez que, em 2014, a barragem de Fundão em Mariana foi classificada como de risco baixo, assim como a B1, em Brumadinho em 2019.
Se assumirmos que essa classificação deve ser usada apenas para chamar atenção para os casos críticos, esses seriam as barragens BR Ismael e Santa Maria, localizadas em Poconé e Nossa Senhora do Livramento, no estado do Mato Grosso. Ambas são usadas na mineração de ouro, possuindo potencial e categoria de risco alto. No caso específico da BR Ismael, ela se encontrava em nível 3 de emergência em agosto de 2020. Nesse contexto, vale ainda lembrar o rompimento da barragem TB01, outra barragem classificada como de risco baixo, também em Nossa Senhora do Livramento, em outubro de 2019. O rompimento apesar de não ter deixado vítimas fatais provocou grande impacto ambiental e deixou ilhada uma comunidade rural.
Portanto, dadas as falhas no controle e fiscalização das barragens de mineração, os dados indicam que, onde houver barragens de rejeito, há risco de rompimento, sendo a intensidade do desastre dependente do tamanho das barragens, das características do relevo e da ocupação populacional a jusante.
(EcoDebate, 03/09/2020) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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