Projeto que flexibiliza o licenciamento ambiental é aprovado na Câmara dos Deputados. Agora, segue para o Senado
Por 300 x 122 votos, a Câmara dos Deputados aprovou, ontem à noite, o texto-base da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, que tem sido chamada por ambientalistas de “a mãe de todas as boiadas” e foi denominada por nove ex-ministros do meio ambiente, esta semana, como “a Lei do NÃO-Licenciamento Ambiental”.
Assim, com o argumento vil de que o país está se livrando da burocracia, o Projeto de Lei 3729/2004 passou.
A votação começou no final da tarde de ontem e foi até meia noite. Passava um pouco desse horário quando Arthur Lira, presidente da casa, deu a sessão por encerrada. Mas ainda falta analisar os destaques, o que será feito hoje e pode alterar o texto final.
Depois, ele segue para análise do Senado Federal. Se os senadores fizerem objeções, o projeto volta para a Câmara para ajustes. Portanto, apesar do cenário tenebroso, a luta ainda não acabou.
A oposição tentou obstruir os trabalhos e tirar a matéria da pauta em três momentos por meio de requerimentos rapidamente derrubados. Protestou contra o fato de o texto não ter sido debatido com a sociedade, nem na Câmara, e entrado em votação em regime de urgência.
Durante a votação, ambientalistas e ONGs divulgaram as hashtags #PL3729Não e #LicenciamentoFica nas redes sociais.
Dispensa da licença ou autodeclaração
Num clima de muita tensão e acirramento dos ânimos, a maioria dos parlamentares desmantelou o licenciamento ambiental, mudando as regras e instituindo um novo marco geral no país, favorecendo empresas e empreendimentos.
Tendo como relator o deputado federal Neri Geller (PP-MT) – vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária ou bancada ruralista e proprietário rural -, o novo texto dispensa 13 tipos de atividades econômicas da exigência de obter uma licença para prosseguir com sua obra, respeitando regras de proteção ao meio ambiente.
Entre as atividades estão: usinas de reciclagem de lixo, obras de distribuição de energia elétrica, estações de tratamento de água e esgoto e, inclusive, obras de melhoria de infraestrutura em instalações já existentes, como estradas e hidrelétricas.
Parte do relatório de Geller ainda isenta a atividade agropecuária do licenciamento ambiental. Claro! Estão dispensados o cultivo de espécies de interesse agrícola (temporárias, semiperenes e perenes), além da pecuária extensiva e semi-intensiva. E, assim, o deputado demonstra que advogou em causa própria e da bancada ruralista, que preside.
O texto ainda propõe a criação de uma Licença por Adesão e Compromisso (LAC), ou seja, uma espécie de licença por autodeclaração do responsável pelo empreendimento, desde que este não seja “potencialmente causador de significativa degradação ambiental”.
E as regras que poderão definir o que deve ser obrigatoriamente licenciado ficarão a cargo de municípios e estados.
Os argumentos da oposição
Como contei acima, os parlamentares da oposição tentaram tirar a matéria da pauta, sem sucesso. Aqui, destaco algumas de suas falas que resumem bem sua indignação e argumentações.
Para o deputado Nilto Tatto (PT-SP), mesmo que o projeto passe no Senado, será futuramente judicializado.
“O que não me deixa muito triste com a votação de hoje, porque está tudo armado, porque tudo vai passar com os 300 votos, é que a gente sabe que quando você tira a possibilidade de fazer consulta para 87% dos quilombos, ou 60% dos povos indígenas, porque não têm seus territórios demarcados, o STF vai derrubar. Então, nós estamos perdendo tempo aqui. Por que o absurdo que vocês estão enfiando goela abaixo aqui é de tamanha irresponsabilidade que vai contra o país”, declarou.
Tatto ainda afirmou que os parlamentares que aprovaram o projeto estão colocando em risco a economia do país já que os debates sobre licenciamento integram as pautas da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), da qual o Brasil faz parte.
“Vocês vão matar o agronegócio com o trator que vocês estão passando por aqui, hoje!”.
Para a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), foram defendidos argumentos falsos durante os pronunciamentos dos deputados. De que o debate é antigo, isso não é verdade! E de que a oposição não quer o desenvolvimento e não quer prazos. Nós queremos o desenvolvimento sim e nós queremos prazos. É uma irresponsabilidade, depois de Mariana, depois de Brumadinho, depois das crescentes queimadas na Amazônia, do bioma do Pantanal, da desconstrução dos órgãos ambientais, votarmos um relatório desse tipo. Pelo amor de Deus, esse parlamento precisa ter responsabilidade!”.
E acrescentou, visivelmente emocionada: “Nós não podemos avançar com o relatório dessa forma. Nós estamos descoordenando as exigências nacionais, criando uma brutal insegurança jurídica”.
Por sua vez, o deputado Alexandre Molon (PSB-RJ), que já foi presidente da Frente Parlamentar Ambientalista, destacou que o projeto destrói um dos principais pilares da proteção ambiental: o licenciamento.
“Falaram aqui que não há nenhuma brecha no projeto para o desmatamento. Não é só uma brecha, é uma porteira toda aberta para o desmatamento. Afinal de contas, a permissão para a pavimentação de estradas, que é um dos principais fatores de desmatamento da Amazônia, está dada nesse projeto de lei. Basta a autodeclaração, a autolicença, a promessa de que não se infringirá nenhuma regra ambiental!”.
Ele lembrou que, enquanto “o mundo inteiro caminha para tornar as regras ambientais mais rígidas, para fazer o meio ambiente ser melhor protegido e cobra do Brasil mais proteção ambiental, o que se quer aprovar aqui é transformar a exceção em regra. Essa lei transforma o licenciamento ambiental, que deveria ser a regra, em exceção”.
Molon ainda classificou o PL como “um tiro no pé” do agronegócio já que ameaça a imagem internacional do país e, consequentemente, as exportações do setor.
Joenia Wapichana (Rede/RR) alertou que o projeto defendido por Geller é inconstitucional e devastará biomas protegidos pela atuais regras. “A proposta, primeiro, pode ser considerada ‘a mãe de todas as boiadas’. O PL é inconstitucional, é um drástico retrocesso na previsão constitucional. É estratégia escancarada, via desmonte ambiental, para beneficiar exclusivamente os grandes empreendimentos, agronegócios, hidroelétricas, ferrovias, mineradoras, linhas de transmissão de energia.
Em nota, a Frente Parlamentar Ambientalista, coordenada pelo deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), declarou: “Provavelmente, com a aprovação desse projeto, o Brasil irá presenciar novos episódios de acidentes socioambientais. Além disso, a medida poderá enfraquecer a segurança jurídica e a judicialização desse importante instrumento ambiental”.
Repercussão
Antes da votação, ambientalistas, organizações socioambientais (como noticiamos aqui), cientistas (por intermédio de carta divulgada pela SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e ex-ministros do meio ambiente – que atuaram nos seis governos anteriores, de FHC a Temer – fizeram declarações a respeito da proposta do texto substitutivo do PL 3729/2004.
Em carta, Carlos Minc, Edson Duarte, Gustavo Krause, Izabella Teixeira, José Carlos Carvalho, José Goldemberg, José Sarney Filho, Marina Silva e Rubens Ricupero chamaram “a obra” de Geller de ‘Projeto de Lei Geral do NÃO-Licenciamento‘, destacando que “promove insegurança jurídica e ameaça agravar a crise econômica brasileira”. E alertaram que, com ele, a falta de fiscalização será a regra no país, também em propriedades de médio impacto e porte.
Hoje cedo, representantes de organizações não-governamentais de diversos setores se manifestaram em suas redes sociais e artigos. Reproduzo abaixo:
“Com a aprovação da Mãe de Todas as Boiadas, a Câmara dos Deputados, sob a direção do deputado Arthur Lira, dá as mãos para o retrocesso e para a antipolítica ambiental do governo Bolsonaro. É o texto da não licença, da licença autodeclaratória e do cheque em branco para o liberou geral. Implodiram com a principal ferramenta da Política Nacional do Meio Ambiente. Quem pagará a conta da degradação são os cidadãos brasileiros, para sustentar a opção daqueles que querem o lucro fácil, sem qualquer preocupação com a proteção do meio ambiente e com as futuras gerações. Judicialização e insegurança jurídica é o que eles terão como resposta” Suely Araújo, analista sênior de políticas públicas do
Observatório do Clima
“É uma afronta à sociedade brasileira. O país no caos em que se encontra e os deputados aprovam um projeto que vai gerar insegurança jurídica, ampliar a destruição das florestas e as ameaças aos povos indígenas, quilombolas e Unidades de Conservação. Assistimos, hoje, a uma demonstração clara de que a maior parte dos deputados segue a cartilha do governo Bolsonaro e vê a pandemia como oportunidade para ‘passar a boiada’ e atender a interesses particulares e do agronegócio”
Luiza Lima, assessora de políticas públicas do Greenpeace Brasil
“O texto aprovado é tão nefasto que, de uma só vez, põe em risco a Amazônia e demais biomas e os recursos hídricos, e ainda pode resultar na proliferação de tragédias como as ocorridas em Mariana e Brumadinho e no total descontrole de todas as formas de poluição, com prejuízos à vida e à qualidade de vida da população. Por fim, pode se transformar na maior ameaça da atualidade às áreas protegidas e aos povos tradicionais” Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental
“O texto não considera a Avaliação Ambiental Estratégica, o Zoneamento Econômico Ecológico e a análise integrada de impactos e riscos, além de excluir o controle social dos princípios do licenciamento ambiental.
Dessa forma, afeta diretamente as políticas públicas de
recursos hídricos e unidades de conservação”
Malu Ribeiro, diretora de Políticas Públicas da
Fundação SOS Mata Atlântica
“É a Lei do Deslicenciamento. Esse projeto instala no Brasil o autolicenciamento ambiental como regra. Para dar apenas um exemplo, dos 2 mil empreendimentos sob licenciamento ambiental em curso na capital do Brasil, 1.990 passarão a ser autolicenciados a partir do
primeiro dia de vigência da nova lei”
André Lima, coordenador do
Instituto Democracia e Sustentabilidade
“O texto aprovado produzirá uma avalanche de problemas sociais e ambientais não avaliados e não mitigados por empreendimentos de significativo impacto ambiental. Os órgãos ambientais não terão condições de se manifestar em tempo, pois o prazo é impraticável, além de estarem sucateados e silenciados. Os parlamentares aprovaram um
desastre que precisa ser revertido no Senado, ou no STF”
Alessandra Cardoso, assessora política do
Inesc –Instituto de Estudos Socioeconômicos
“Lamentável o desmonte do licenciamento ambiental.
Um texto enviesado, discutido a portas fechadas com governo, ruralistas e industriais, que ignora o princípio da precaução e atropela os fundamentos do direito ambiental. É repleto de inconstitucionalidades e vai gerar enorme insegurança jurídica para os empreendedores. Liberar geral
para depois responsabilizar é um contrassenso total, que o digam
os povos e comunidades tradicionais impactados em todo o país,
as vítimas de Brumadinho e Mariana”
Guilherme Eidt, assessor em políticas públicas do
ISPN – Instituto Sociedade, População e Natureza
As principais questões do texto aprovado
O Instituto Socioambiental listou oito questões do texto substitutivo do projeto de lei defendido por Neri Geller, que facilitam a compreensão de seus efeitos nefastos. Reproduzo a seguir:
- Dispensa de licenciamento para agricultura, pecuária e silvicultura, além de mais 13 tipos de atividades com impactos ao meio ambiente.
- Brecha para disputa entre estados e municípios, que poderão estabelecer regras de licenciamento menos rígidas do que as de outras unidades da federação para atrair empresas e investidores.
- Licença autodeclaratória (LAC), emitida automaticamente sem análise prévia de órgão ambiental, passa a ser a regra. Na prática, torna o licenciamento exceção ao invés de regra.
- Restrições à participação popular no licenciamento, inclusive das comunidades impactadas por empreendimentos.
- Ameaça às Unidades de Conservação, Terras Indígenas não totalmente demarcadas (41% do total) e territórios quilombolas não titulados (87% do total), porque a análise dos impactos dos empreendimentos sobre essas áreas não será mais obrigatória.
- Restrição à participação no licenciamento de órgãos como Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Funai, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Ministério da Agricultura e Ministério da Saúde.
- Bancos e outras instituições que financiam os empreendimentos não terão mais nenhuma responsabilidade socioambiental, ou seja, caso haja danos ao meio ambiente ou tragédias, como a de Brumadinho, eles poderão dizer que não têm nada a ver com o problema.
- O PL não trata de qualquer questão ligada às mudanças climáticas.
Agora, assista ao vídeo muito esclarecedor que o Observatorio do Clima produziu para explicar a importância do Licenciamento Ambiental. Se você ainda tiver alguma dúvida a respeito do tema, depois dele, com certeza vai ficar sem nenhuma:
Fontes: Câmara dos Deputados, Agência Brasil, Observatório do Clima
Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
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