Recentemente descoberto na China e também encontrado em países da
Europa, da Ásia e da África, o gene mcr-1, que causa resistência a uma
classe de antibióticos utilizados justamente para tratar infecções por
bactérias multirresistentes, foi identificado pela primeira vez no
Brasil em cepas da bactéria Escherichia coli isoladas de animais de
produção.
Os pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de
São Paulo (ICB-USP) responsáveis pela identificação da bactéria também
reportaram o primeiro caso de infecção humana no Brasil, em um hospital
de alta complexidade em Natal (RN), por uma cepa da bactéria portadora
do gene e resistente a Colistina (polimixina E), um dos mais poderosos
antibióticos, considerados como último recurso no tratamento de
infecções produzidas por bactérias que não respondem a outras drogas.
“A aparição desse gene no Brasil pode contribuir para o surgimento de
bactérias totalmente resistentes aos antibióticos, com risco de
enfrentarmos uma situação similar ao que foi a era pré-antibiótica,
quando doenças comuns, como uma infecção urinária ou um ferimento
profundo na pele, levavam facilmente a óbito”, alerta Nilton Lincopan,
responsável pela pesquisa Monitoramento de bactérias Gram-negativas
multirresistentes de importância médica (humana e veterinária): impacto
clínico/ambiental e desenvolvimento de alternativas terapêuticas e
produtos de inovação tecnológica, realizada com apoio da FAPESP.
Os resultados da pesquisa foram publicados nas revistas científicas
Eurosurveillance, do European Centre for Disease Prevention and Control,
e Antimicrobial Agents and Chemotherapy, da American Society for
Microbiology.
Superbactéria
Descoberta em 1949, a produção de Colistina foi descontinuada entre a
década de 1970 e o ano 2000 por sua elevada toxicidade, ficando o
antibiótico restrito ao uso veterinário. No início do século,
entretanto, com a emergência de bactérias produtoras de enzimas
responsáveis por provocar resistência a praticamente todos os
antibióticos beta-lactâmicos, como as penicilinas, a Colistina voltou a
ser utilizada como última alternativa terapêutica no tratamento de
infecções produzidas por microrganismos multirresistentes,
principalmente associadas a surtos de infecção hospitalar.
Por muito tempo, conta Lincopan, a comunidade científica internacional
acreditou que o desenvolvimento da resistência bacteriana a Colistina
seria um processo difícil. “Porém, ao final do ano passado, um artigo
alarmante foi publicado na revista Lancet Infectious Diseases, em que
pesquisadores chineses descreveram a identificação de um novo gene (o
mcr-1) que confere resistência contra polimixina E e polimixina B.”
Ainda mais preocupante, de acordo com o pesquisador, foi a descoberta de
que o gene é facilmente transferível de uma espécie bacteriana a outra
por meio de plasmídeos, fragmentos de DNA extracromossômicos que podem
se replicar autonomamente e que podem ser transferidos entre diferentes
espécies bacterianas por conjugação – processo de reprodução das
bactérias por meio do qual pedaços de DNA passam diretamente de uma para
a outra. O fragmento de DNA transferido se recombina com o material
genético da bactéria receptora, produzindo novas combinações genéticas
que serão transmitidas às células-filhas na próxima divisão celular.
Cepas bacterianas carregando o gene mcr-1 foram encontradas tanto em
animais de produção como em seres humanos, levantando suspeitas sobre a
existência de uma cadeia na disseminação da resistência a Colistina que
começa a partir do uso do antibiótico na alimentação animal,
propagando-se para os animais abatidos, os alimentos derivados e o
ambiente.
Diante da ameaça de que muitas infecções poderiam se tornar intratáveis,
um alerta mundial foi emitido no início do ano pelo Centro de Controle e
Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), agência do Departamento
de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. Segundo Lincopan,
papers de pesquisadores de diferentes países reportaram em seguida a
identificação do gene mcr-1 em cepas de bactérias clinicamente
importantes, como Escherichia coli, Salmonella spp. e Klebsiella
pneumoniae.
“O aspecto mais assustador sobre o gene é a facilidade com que ele é
transferido entre diferentes espécies bacterianas. Consequentemente,
algumas bactérias hospitalares têm alinhado este gene junto a outros de
resistência a antibióticos, favorecendo que a espécie bacteriana
receptora fique resistente a praticamente a totalidade dos medicamentos.
Assim, se um paciente estiver gravemente infectado, por exemplo, por
uma E. coli, não haverá nada que se possa fazer”, diz o pesquisador.
Urgência epidemiológica
De acordo com Lincopan, suspeita-se que a principal razão para o
surgimento e a propagação do mcr-1 seja o uso exacerbado de Colistina na
produção agropecuária, como promotora de crescimento. Entretanto, a
presença do gene também foi descrita em amostras de animais domésticos,
alimentos e ambientes aquáticos, evidenciando a disseminação para
diversos ecossistemas.
“No Brasil, no início deste ano, nosso grupo de pesquisa identificou
pela primeira vez a presença do gene mcr-1 em animais de produção das
regiões Sudeste (São Paulo e Minas Gerais) e Sul (Paraná e Santa
Catarina), o que deve ser considerado uma urgência epidemiológica e um
alerta para as implicações no agronegócio, visto que o país é um grande
produtor e exportador de produtos de origem animal.”
Para os pesquisadores, os órgãos reguladores do setor deveriam reavaliar o uso de antibióticos como a Colistina.
“O impacto real da resistência bacteriana no Brasil também precisa ser
avaliado pelo poder público e pela comunidade científica. Além disso,
devemos privilegiar a educação sobre o uso racional de antibacterianos.
Clinicamente, muitos estudos e reuniões científicas têm alertado que
bactérias multirresistentes estão adquirindo um caráter de endemicidade
em centros hospitalares, sendo frequentemente associadas a altas taxas
de falha terapêutica e subsequente morbimortalidade”, conta Miriam
Fernandes, aluna de doutorado da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da
USP e primeira autora dos artigos publicados. “Estes esforços poderiam
evitar uma situação irreversível”.
Um plano de ação global contra o risco do colapso dos antibióticos,
avalia Lincopan, deve incluir “o uso racional desses fármacos na saúde
humana e animal, o reforço da vigilância epidemiológica e o estímulo de
pesquisas na área, a educação da população e dos profissionais da saúde
humana e veterinária, assim como fazendeiros e produtores, sobre o uso
adequado de antibióticos e o desenvolvimento de novos compostos e
ferramentas de diagnóstico”.
Os resultados da pesquisa podem ser acessados no artigo First Report of
the Globally Disseminated IncX4 Plasmid Carrying the mcr-1 Gene in a
Colistin-Resistant Escherichia coli ST101 isolated from a Human
Infection in Brazil, disponível em
aac.asm.org/content/early/2016/07/19/AAC.01325-16.abstract, e no artigo
Silent dissemination of colistin-resistant Escherichia coli in South
America could contribute to the global spread of the mcr-1 gene,
Fonte: Fapesp
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