Publicado em
agosto 5, 2016 por Redação
[EcoDebate]
Venho reclamando, há tempos já, por meio de artigos, de entrevistas e de livros
publicados, a falta de preocupação com os fundamentos hidrológicos aplicados a
pequenas bacias hidrográficas, formadoras e mantenedoras de nascentes e
córregos.
É a hidrologia
de pequenas bacias, que precisa ser incentivada no país. Com o anúncio
do programa Novo Chico, visando revitalizar o rio, retornam os conceitos gerais
de conservação de nascentes, muito centrados nos reflorestamentos ciliares. As
preocupações (ou reflexões) que passarei a fazer decorrem da percepção de que
as tecnologias disponíveis no País para revitalização da capacidade de produção
de água são geralmente adotadas sem levar em conta as especificidades dos
ecossistemas hidrológicos das bacias a serem trabalhadas.
1) Em razão
da obrigatoriedade de fazer licitações para execução de quaisquer atividades de
conservação no âmbito dos Comitês e das Agências de Bacias, os termos de
referências das chamadas ficam concentrados nas especificações de números de
barraginhas, de terraços, de áreas a serem reflorestadas etc.
Exigem
espaçamentos, diâmetros, georreferenciamentos e chegam, até mesmo, a pedir
explicações sobre a maneira com que os moirões vão ser fixados no solo. Mas
quando vamos ver os fundamentos, a descrição de solos é muito genérica e não há
referências a velocidades de infiltração ou a ocorrências de camadas adensadas
próximas das superfícies. Sequer são mencionadas, explicitamente, as
possibilidades de infiltração para recarga de aquíferos. Julga-se, como suficiente,
a diminuição da erosão do solo, o que é um erro, pois as enxurradas poderão
estar sendo simplesmente substituídas por escoamentos subsuperficiais e os
aquíferos não serão abastecidos.
Sem
conhecimento da hidrologia da pequena bacia, as estruturas de conservação
poderão ser mal dimensionadas, ou locadas erradamente. Por exemplo, barraginhas
e caixas de captação de enxurradas não podem ser locadas erraticamente, pois se
colocadas próximas de nascentes e córregos terão seus armazenamentos drenados rapidamente
( ver artigo “Sobre barraginhas, terraços e caixas de captação de enxurradas”,
com referência no final deste artigo).
Cuidado,
também, com fórmulas que usam coeficientes de correção não compatíveis com os
comportamentos hidrológicos da pequena área. Os modelos matemáticos podem ser
belíssimos, mas acabarem produzindo péssimos resultados pelo uso de
coeficientes inadequados. Pequenas bacias hidrográficas são mais bem entendidas
com o uso de modelos físicos, facilitando o trabalho de quem milita no campo e
precisa entender o que está acontecendo ao seu redor. Qualidade de
observação e acúmulo de prática são características fundamentais para quem se
dispõe a trabalhar na produção de água;
2) Nas propostas de reflorestamentos, não há nenhuma
referência à eficiência de sistemas radiculares na exploração do perfil do
solo. Se a capacidade de armazenamento de água no perfil do solo for, por
exemplo, de 1mm/cm, as raízes explorarem até 100cm de profundidade e ele
estiver com 50% de deficiência de umidade, as chuvas precisarão repor os 50mm
de deficiência antes de começarem a abastecer o aquífero subjacente. Melhor,
então, que as raízes explorassem apenas 50cm.
Quanto aos
reflorestamentos ciliares, há um erro em superestimar suas ações em prol da
quantidade de água. Reconheço, é claro, os benefícios ambientais das matas
ciliares, o que justifica a sua existência, mas eles não contemplam aumentos de
vazões de nascentes e córregos, em quaisquer situações Pelas exigências do
Código Florestal, as áreas ciliares protegidas vão ficar em torno de 10% das
superfícies das pequenas bacias, o que é muito pouco para garantirem suprimento
de aquíferos.
Além do
mais, como estão muito próximas de nascentes e córregos, os volumes nelas
infiltrados serão drenados rapidamente, não ficando armazenados para garantirem
vazões de estiagens. Mas o encantamento com as matas ciliares é tão grande e arraigado
que já virou dogma ambientalista. Aumentos de vazão de córregos debitados a
reflorestamentos ciliares recentes, são, na maioria dos casos, provenientes de
práticas mecânicas também implantadas; estas, sim, capazes de responder
rapidamente.
Parece
haver, portanto, uma exagerada preocupação em prestigiar as matas ciliares,
mesmo que, no caso de quantidade de água, elas estejam agindo ao contrário,
pelo efeito oásis, por exemplo. Efeitos positivos na produção de quantidade
de água só virão em longo prazo e sempre na dependência das condições
regionais em que se encontram as pequenas bacias; dos entornos, portanto. Para
entender melhor isso, será bom que o leitor se disponha a ler os artigos “Mata
Ciliar – parte I: da metragem ao sonho”, “Mata Ciliar – parte II: efeito oásis
e consumo de água”, “A vegetação, o solo e a água em pequenas bacias
hidrográficas” e “Floresta e produção de água”, com referências no final deste
artigo;
3) Não é
suficiente a informação apenas dos totais anuais de precipitação, pois como as
chuvas precisam ser confrontadas com as velocidades de infiltração de água no
solo, há necessidade de se conhecer as intensidades mais comuns. As tecnologias
precisam ser planejadas para, se possível, reter e infiltrar os volumes recebidos
em tais intensidades. Ou, pelo menos, estabelecer as proporções que poderão ser
retidas. Em regiões onde as chuvas são concentradas em pequenos períodos ao
longo do ano, deve ser redobrada a preocupação em reter o máximo possível dos
volumes precipitados;
4) As ações
de conservação, mesmo quando fazem referências a princípios hidrológicos, usam
os aplicáveis a grandes bacias e que não são suficientes para explicar os
comportamentos de pequenas (aquelas de ordem 1, 2, preferencialmente, ou no máximo
3, em áreas muito drenadas). Nestas há uma prevalência de tempo de escoamento
sobre a superfície em relação ao escoamento nos leitos dos córregos,
possibilitando entender as relações solo/água/planta e agir para que elas
favoreçam os aquíferos subterrâneos. Esses aquíferos são as caixas d’água que
garantem os fluxos das torneiras (nascentes) e das tubulações (córregos).
Aproveito
para chamar a atenção para um movimento que anda se espalhando pelo país e que
propõe tecnologia para conservar nascentes (há muitos vídeos no YouTube).
Trata-se, na verdade, de simples conserto da torneira, com sua limpeza e
proteção. Nada com relação à garantia de abastecimento de água na caixa
(aquífero). E o pior é que há muitas organizações e entidades embarcando nessa
canoa furada, demonstrando desconhecimento do processo de produção de água das
bacias hidrográficas. Não custa insistir que nascentes e córregos são
produtos das interações entre as chuvas e os componentes físicos e bióticos
distribuídos por toda a superfície das pequenas bacias hidrográficas;
5) A grande
concentração de nascentes e córregos está em propriedades rurais, maioria
pequenas, indicando que as tecnologias devem chegar a elas pela metodologia de
extensão rural. Não funciona a ideia de contratar uma empresa para executar as
tarefas e outra para fiscalizar. Quando o canteiro de obras é desmanchado,
começa o desmanche, também, dos equipamentos implantados, pois as Agências e os
Comitês não estão aparelhados para dar assistência pós-execução.. Os
procedimentos de educação ambiental exigidos nos termos de referências são
meros paliativos, pois não estão apropriados às culturas das comunidades. Além
disso, não são palestras e poucos encontros que vão mudar comportamentos. O
trabalho precisa de consolidação ao longo do tempo, o que só pode ser feito por
quem tem o campo como trabalho contínuo e permanente. As preocupações expostas
ficam mais acentuadas quando se pensa em estabelecer o “Pagamento por Serviços
Ambientais”;
6) Todos os
estados, e muitos municípios, possuem uma ou mais instituições ligadas ao campo
e que poderiam ser envolvidas nos trabalhos de conservação. Em Minas Gerais,
por exemplo, que conheço melhor, há a Emater (Empresa de Assistência Técnica e
Extensão Rural) , a Epamig (Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais) e
o IEF (Instituto Estadual de Florestas), que já atuam em todo o estado e que
poderiam formar uma força-tarefa para trabalhar com os Comitês e Agências ( por
meio de convênios e contratos dentro do programa Novo Chico, por exemplo). Esta
força-tarefa voltaria para a sala de aula para discutir hidrologia e manejo
de pequenas bacias e sistematizar procedimentos de atuação, evitando
que divergências e vaidades corporativas possam vir a prejudicar as atuações no
campo.
A
força-tarefa passaria a ser responsável pelo planejamento, pelo acompanhamento
da execução e pela consolidação das práticas de conservação. Assim, quando o
executor de uma atividade específica (licitada) desmontar o canteiro de obras,
a força-tarefa estará presente para garantir o funcionamento das estruturas
implantadas. Acho isso tão óbvio que há momentos em que penso fazer papel
ridículo em levantar o assunto.
Também acho
óbvia a perda de tempo com a criação de comissões formadas com ajuntamento de
muitas instituições, um representante daqui, outro dali, mais um de acolá,
etc., etc. O resultado são reuniões e mais reuniões, desfiles de vaidades e
pronto. Como colegiados, bastam os Comitês de Bacias e os Conselhos de Recursos
Hídricos. Ainda tenho ojeriza com a criação de programas e mais programas, pois
no País temos a mania de criar um novo programa para encobrir o fracasso de
outro, ou dar uma nova denominação para velhas demandas;
7) É
importante que a contabilidade de água da bacia seja feita, confrontando
valores de precipitações com os das vazões dos córregos drenantes ( ver artigo
“UTI ambiental: contabilidade de água em pequenas bacias hidrográficas”, com
referência no final deste artigo). Também, sempre que possível, pesquisar um
pouco da história do comportamento do córrego ao longo dos últimos anos.
Moradores antigos do lugar sempre terão alguma coisa interessante para contar.
Com tais análises, é possível estabelecer metas para a vazão desejada nos anos
futuros e planejar as atividades com esses objetivos.
Daí a
importância de medições contínuas dos parâmetros meteorológicos e hidrológicos
para o acompanhamento das reações. Fico incomodado com avaliações de resultados
onde predominam qualificativos como: melhorou, aumentou, os resultados são
excelentes, etc. Quero sempre saber de quanto foi a melhora, o aumento ou o
resultado considerado excelente. Por exemplo, a vazão do córrego era de 80
L/min e passou, depois de dois anos, para 104 L/min, com aumento de 30%. Quem
vai fazer esse acompanhamento? Alguma instituição da força-tarefa.
Publicações
do Autor (relacionadas com o tema)
1) Artigos
no Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br); podem ser encontrados também no
Google:
– UTI para
nossas águas
– UTI
ambiental: diagnóstico da água I
– UTI
ambiental: diagnóstico da água II
– UTI
ambiental: diagnóstico da água III
– UTI
ambiental: contabilidade de água em pequenas bacias hidrográficas
– UTI
ambiental: práticas de manejo de bacias hidrográficas I
– UTI
ambiental: práticas de manejo de bacias hidrográficas II
– UTI
ambiental: revitalização de bacias hidrográficas I
– UTI
ambiental: revitalização de bacias hidrográficas II
– Mata
Ciliar – parte I: da metragem ao sonho
– Mata
Ciliar – parte II: efeito oásis e consumo de água
– A
vegetação, o solo e a água em pequenas bacias hidrográficas
– Floresta e
produção de água
– Sobre
barraginhas, terrações e caixas de captação de enxurradas
2) Livros
(Editora Aprenda Fácil; www.afe.com.br)
–
Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas
– Das chuvas
às torneiras – A água nossa de cada dia
3)
Monografia (disponível por e-mail)
–
Fundamentos hidrológicos da recarga artificial de aquíferos de pequenas bacias
hidrográficas
*Osvaldo
Ferreira Valente , Articulista do Portal EcoDebate, é engenheiro
florestal, professor titular aposentado da Universidade Federal de Viçosa e
especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas
(valente.osvaldo@gmail.com)
in EcoDebate, 05/08/2016
"Preocupações
de um conservador de nascentes e córregos, artigo de Osvaldo Ferreira
Valente," in Portal EcoDebate, ISSN 2446-9394, 5/08/2016, https://www.ecodebate.com.br/2016/08/05/preocupacoes-de-um-conservador-de-nascentes-e-corregos-artigo-de-osvaldo-ferreira-valente/.
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