O que há por trás dos projetos atrelados aos
megaeventos e como isso afeta os direitos, a saúde e a vida urbana
Célio e Felipe vão vestir laranja no mês dos Jogos Olímpicos. Laranja é a cor dos garis. Maria de Lourdes, a Maria dos Camelôs,
fechará a barraquinha de roupas femininas que mantém no Centro da
Cidade nos três feriados municipais decretados pelo Prefeito — mas seu
espírito olímpico não é mais o mesmo de quando torcia pelo Brasil com
churrasco e roda de samba. Dona Irone,
a mãe de Vitor Santiago, terá pouco tempo para ver os atletas
disputando medalha pela TV.
Ela agora se dedica integralmente aos
cuidados do filho baleado pelo Exército quando voltava para casa, na
favela Vila Pinheiro, no Rio de Janeiro. Rodrigo, o motorista da linha 804, que atravessa a zona oeste da capital fluminense, estará em trânsito, como sempre. O vigia Altair Antunes,
que perdeu a casa durante a remoção da Vila Autódromo, achava que tinha
o direito de ficar ali por "99 anos". Anda desacreditado do país da
festa olímpica.
Desde
que o sotaque carregado do membro do Comitê Olímpico Internacional
(COI) anunciou o Rio de Janeiro como cidade-sede da Olimpíada de 2016,
já se passaram sete anos. Antes, em 2007, a capital fluminense havia
recebido os Jogos Panamericanos e, em 2014, viria a sediar a Copa do
Mundo da Fifa.
A sucessão de megaeventos gerou uma série de
transformações no espaço urbano da cidade, deixando o Rio mais dividido.
Às vésperas da abertura dos jogos, o muro que separa um conjunto de
favelas da principal via de acesso ao Aeroporto Internacional ganhou
adesivos coloridos. Autoridades dizem que as placas cumprem a função de
isolar acusticamente o local e impedir o acesso dos moradores das
comunidades próximas às vias expressas. Para os moradores, é maquiagem
para turista ver.
Nesta
reportagem, Radis discute o direito à cidade e o impacto dos grandes
eventos no cotidiano de seus habitantes. Ouviu pesquisadores e
especialistas, mas também conversou com esses heróis anônimos que contam
a cidade do cartão-postal pelo avesso.
Cidades para quem?
Millôr
Fernandes, humorista, escritor e atleta nas horas vagas, costumava
elogiar o frescobol como o mais democrático dos esportes, o único em que
não há vencidos nem vencedores. No frescobol, para que o jogo funcione,
é necessário cooperar com o parceiro. Ao lembrar dessa curiosidade
durante uma aula pública no Centro do Rio de Janeiro, em março, o
urbanista Carlos Vainer utilizou uma metáfora oportuna para um país às
voltas com a realização de uma Olimpíada: nossas cidades estão cada vez
menos tomadas pelo espírito colaborativo do frescobol. Para o professor
do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur-UFRJ), o
modelo de cidade evidenciado pelos megaeventos é competitivo.
De
um lado dessa arena, está um projeto de cidade mais humana, destinada
às pessoas, em que o interesse público fala mais alto e valores como a
solidariedade ainda não viraram um clichê.
Do outro, a
cidade-espetáculo, voltada para os negócios, uma nova forma de regime
urbano que funciona sob a caneta do mercado e da economia. “Ao
aproveitar os jogos como desculpa para transformar uma cidade, o que
está em disputa é um novo projeto hegemônico”, disse Vainer. “E o modelo
que resulta desse processo é segregador e excludente, só acelera as
desigualdades”. Isso o estudioso chama de “cidade de exceção” — numa
referência ao conceito de “estado de exceção”, caracterizado pela
suspensão temporária de direitos e garantias constitucionais.
Na
“cidade de exceção”, esclareceu, a ordem pública sucumbe a uma série de
desvios dos padrões tradicionais. É o que acontece durante os
preparativos para a realização de uma Copa ou de uma Olimpíada, quando
se cria toda uma legislação específica para servir aos interesses do
capital: regime diferenciado de contratação, isenção tributária para
hotéis, leis que permitem que municípios se endividem com obras,
exemplificou. No caso do Rio de Janeiro, para receber os Jogos Olímpicos
de 2016, a cidade passou por transformações que modificaram o seu
desenho urbano e afetaram profundamente a vida de seus habitantes.
“Desculpe os transtornos”
Ao
trafegar pela cidade, o morador se depara com um verdadeiro canteiro de
obras — muitas delas inacabadas — que incluem desde a construção de
instalações esportivas e reforma dos equipamentos até infraestrutura no
campo da mobilidade: modernização e expansão do metrô, construção de
corredores de ônibus e de sistemas de transporte urbano, obras viárias e
reformas de aeroporto.
Muito além dos transtornos temporários, a
passagem do megaevento pela cidade deixa marcas dramáticas. O Comitê
Popular da Copa e Olimpíadas — uma articulação de organizações populares
e sindicais, pesquisadores e atingidos pelas obras dos megaeventos, que
atua no Brasil desde 2010 — estima que, no Rio de Janeiro, por razões
direta ou indiretamente vinculadas às intervenções do Projeto Olímpico,
pelo menos 4.120 famílias já foram removidas de suas comunidades e 2.486
permanecem ameaçadas de remoção.
“Nossas
cidades passam por uma representação ideológica que encobre a
realidade”. Foi o que disse a urbanista e professora da Universidade de
São Paulo (USP), Ermínia Terezinha Menon Maricato, durante uma palestra
realizada no final de junho, na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio
Arouca (Ensp/Fiocruz) — no Rio, os meses que antecederam a Olimpíada
foram tomados por palestras, seminários e atos públicos que discutiram
os impactos dos megaeventos. Ermínia citou o exemplo do Porto Maravilha —
projeto de requalificação da região portuária do Rio — como um emblema
dessa cidade-espetáculo que nega a tragédia urbana varrendo para as
margens da cidade tudo o que não cabe no mercado imobiliário.
De
acordo com o Dossiê “Megaeventos e violações dos direitos humanos no
Rio de Janeiro”, a região portuária, com cerca de 5 milhões de metros
quadrados, abrigava vários prédios públicos da União, do estado e do
município que estavam vazios e ociosos. Sem cumprir a sua função social,
esses imóveis foram ocupados por populações sem-teto, removidas durante
as obras de reestruturação da região. Para Ermínia, em função de um
mercado imobiliário altamente especulativo, cada vez mais a população de
vulneráveis vai sendo expulsa e, em muitos casos, passa a ocupar áreas
ambientalmente frágeis. Foi o que aconteceu em São Paulo, cidade que
também teve o seu traçado urbano alterado por conta da Copa do Mundo da
Fifa, em 2014.
A
urbanista sustenta que as cidades brasileiras vivem um progresso
conservador, com saltos de modernidade que carregam o atraso, o machismo
e o preconceito. Ela apontou um mapa de São Paulo em que se pode ver a
concentração de empregos em uma área central com uma enorme quantidade
de habitações na periferia. “É um massacre passar cerca de duas horas e
40 minutos da sua vida, diariamente, no transporte”, indignou-se,
acrescentando que trabalhador não “evapora” depois da jornada de
trabalho. “Deveria haver um controle do uso e da ocupação do solo com
sistema viário eficaz que te permitisse morar a 100 quilômetros do
emprego e isso não ser um problema”.
Em entrevista à Radis, o pesquisador do Observatório das Metrópoles, Orlando Júnior,
disse que nesse modelo de cidade mercantilizada em que os negócios
falam mais alto que as pessoas, o resultado é uma cidade partida com
espaços urbanos cada vez mais desiguais. “É uma irracionalidade promover
o deslocamento das classes populares construindo periferias ou o que
pode ser chamado de não-cidade”, argumentou. Para Orlando, tudo se
resume a uma questão de prioridades. “Independente de gostarmos ou não
da derrubada da Perimetral, precisamos saber em que medida isso era
prioridade para a cidade do Rio de Janeiro”, diz ele, referindo-se ao
viaduto que veio abaixo como parte do Projeto Olímpico.
Megaeventos
Para
especialistas ouvidos por Radis, não há como discutir projetos de
cidade sem levar em conta os megaeventos, cada vez mais frequentes em
uma dimensão global. O sociólogo Fernando Maldonado, que escreve uma
tese de doutorado sobre o assunto, disse que os megaeventos se
caracterizam por atrair uma enorme quantidade de pessoas para as
cidades-sede, mas principalmente pelas modificações que eles impõem a
essas cidades. “Os megaeventos geram uma preocupação administrativa e de
apresentação pública distinta de eventos que ocorrem em uma escala
menor”, afirmou.
Em
sua pesquisa, Fernando compara a Copa do Mundo realizada na África do
Sul, em 2010, com a experiência brasileira de dois anos atrás. Ele
considera aspectos como infraestrutura, habitação e trabalho informal.
Em relação à cidade do Rio de Janeiro, Fernando aponta que a população
mais vulnerável vai ficando cada vez mais pobre, com menores índices de
desenvolvimento humano e com dificuldade de acesso a direitos básicos
como saúde. “A Copa do Mundo e a Olimpíada são uma forte narrativa
sociopolítica usada para justificar mudanças em nome de um projeto
hegemônico de cidade”, disse, explicando que os megaeventos servem,
portanto, para o poder público efetivar determinadas transformações na
cidade sob a desculpa da manutenção da ordem pública — algo que, sem
eles, seria muito mais difícil de acontecer.
Recentemente,
em entrevista à rede americana CBS Sports (28/6), o governador em
exercício do Rio de Janeiro, Francisco Dornelles, admitiu que os Jogos
Olímpicos podem ser um grande fracasso, alegando os problemas com a
segurança do evento. Na mesma toada, em 14 de julho, depois de
denúncias de corrupção e superfaturamento em obras, o prefeito Eduardo
Paes declarou em entrevista ao jornal inglês The Guardian (14/7) que a
“Olimpíada já é uma oportunidade perdida”, usando como desculpa a crise
política e econômica do país: “Com todos esses escândalos, este não é o
melhor momento para estar nos olhos do mundo”. Mas o prefeito continua
sustentando os impactos positivos que as obras terão na cidade a longo
prazo. “Nunca houve tanta transformação nesta cidade para as pessoas
pobres”, afirmou. “Os Jogos Olímpicos são uma grande inspiração para que
as coisas sejam feitas”.
Cidades rebeldes
Entre
8 e 11 de março, o Rio de Janeiro sediou o evento “Cidades rebeldes,
espaços de esperança”, que contou com a participação do geógrafo
britânico David Harvey, um dos grandes pensadores contemporâneos sobre o
direito à cidade, e de representantes de movimentos que apostam na ação
coletiva para construção de um outro modelo de cidade. Radis acompanhou
o evento. Na ocasião, Harvey foi categórico: “O Rio é uma grande
cidade. Mas é uma cidade melhor sem os megaeventos do que com eles”. O
estudioso comparou o exemplo carioca com o que aconteceu na cidade
espanhola de Barcelona, durante os jogos de 1992 e cujo modelo inspirou o
brasileiro. “Barcelona se tornou uma commodity. O custo de uma
cidade-commodity é muito elevado. Os preços sobem e as pessoas comuns
não podem viver no Centro da cidade. Elas não se beneficiam de nenhuma
forma”.
Para
Harvey, o direito à cidade emerge como uma pauta capaz de unificar os
diversos movimentos sociais que lutam pelo direito a saúde, educação,
moradia, passe-livre e por mais democracia. Para o professor e ativista
de Direitos Humanos, Leonardo Cisneiros, o direito à cidade significa
não apenas usufruir dessa cidade, mas também participar de sua
construção. “A cidade é uma obra coletiva”, disse o integrante do
Movimento Ocupa Estelita, que surgiu no Recife, em 2012, contra a
privatização do cais José Estelita, uma área de 100 mil metros quadrados
estrategicamente situada às margens do Rio Capibaribe. “Nossa
desobediência, ao ocupar o terreno, fez com que o projeto das
empreiteiras não fosse cumprido”, resumiu. “Precisamos lutar contra um
certo analfabetismo urbanístico e deixar a cidade acontecer à revelia”.
Saúde e megaeventos
O
processo acelerado de urbanização das cidades e as grandes intervenções
urbanas provocadas pelos megaeventos também deixam marcas na saúde da
população. Para o pesquisador da Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (Unirio) Rodrigo Machado Vilani, as grandes intervenções
urbanas ainda privilegiam opções mercadológicas em detrimento da
melhoria da qualidade de vida da população, provocando o adiamento de
ações governamentais na área de saneamento, por exemplo. Ao se referir à
Olimpíada do Rio, ele diz que o atraso nas obras de saneamento do Eixo
Olímpico e mais um fracasso em relação à despoluição da Baía de
Guanabara prejudicam qualquer discurso que se proponha otimista em
relação a um legado para saúde e meio ambiente.
Rodrigo
lembra ainda o descaso com o meio ambiente, ao citar a construção de um
campo de golfe dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA), no
Parque Natural Municipal de Marapendi. “Estas situações reforçam a ideia
de que as intervenções possuíram uma clara orientação mercadológica e,
fora dessa lógica, aspectos como saúde e meio ambiente foram relegados a
segundo plano”, disse. Para superar a lacuna entre o planejamento do
ambiente urbano e a melhoria das condições de saúde da população,
Rodrigo considera que as decisões políticas não podem se dar fora de um
modelo participativo e democrático. “Transparência e participação no
processo, abertura ao diálogo com a sociedade e as instituições de
ensino e pesquisa, substituição de cargos e opções políticas pela adoção
de prevenção e precaução na definição das ações são opções favoráveis
para retirar o planejamento público do obscurantismo em que se
encontra”.
Para
Orlando Júnior, para que a relação com os megaeventos se dê de forma
diferente, é preciso negar o modelo imposto por instituições como Fifa e
Coi. Do contrário, segundo ele, esse modelo vai promover processos de
mercantilização e de difusão neoliberal em qualquer cidade que acolha
esses megaeventos. “Para fazer diferente, é necessário adotar a
transparência, ouvir as pessoas, discutir prioridades, utilizar os
instrumentos de participação disponíveis”, argumentou. “Nós perdemos a
oportunidade de fazer isso”. Mas ele ainda acredita na construção de uma
cidade mais justa, colaborativa e democrática. Como no frescobol.
Autor:
Ana Cláudia Peres
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